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Póstudo – a poesia brasileira depois de João Cabral – Remix

– Apresentação e explicação da forma do texto

Em 2005 fui convidado por Abel Barros Baptista para organizar uma antologia da poesia brasileira posterior a João Cabral de Melo Neto. A antologia integraria o Curso Breve de Literatura Brasileira, publicado pelas Edições Cotovia, de Lisboa.

Animado pela oportunidade de oferecer aos leitores portugueses um panorama da poesia brasileira contemporânea, pus-me ao trabalho, com o objetivo de compor um quadro significativo e dotado de alguma coerência, que permitisse ao leitor estrangeiro a compreensão das principais linhas de desenvolvimento da poesia aqui produzida no segundo pós-guerra.

A antologia, embora inteiramente composta – foram selecionados os poemas, redigidas as biografias e organizada a fortuna crítica essencial de cada autor – nunca chegou a ser publicada, apesar dos esforços e argumentos do coordenador da coleção, por motivos que não vêm ao caso explicitar, ainda que sua explicitação pudesse fornecer algum material de reflexão e de pasmo.

Restou, do projeto desenvolvido ao longo de mais de um ano, a introdução, que foi publicada no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa – editado pela Ateliê Editorial em 2007.

As três primeiras partes dessa introdução foram posteriormente incorporadas e desenvolvidas em outros estudos, um dos quais é “Poesia e técnica: poesia concreta”.

Uma vez que esse texto já se encontra disponível nesta mesma revista, julguei que não seria o caso de repetir as 3 primeiras partes, e ir diretamente às seguintes, onde há, em relação ao que publiquei já neste lugar, alguma possível novidade.

Daí que, nesta versão “remix”, o trabalho inicie, como os velhos discursos em que se narravam as proezas dos heróis, in medias res. Neste caso, na seção 4.

IV. Decorrências da Poesia Concreta

Do grupo inicial concretista logo se cria uma primeira dissidência, centrada na recusa ao “cientificismo” e ao “positivismo” dos Noigandres. Na verdade, uma recusa à opção pela intransitividade e pela assunção do lugar vanguardista, com prejuízo da integração do poema na vida quotidiana, que se afirma em 1958, quando do lançamento do “Plano-piloto para a Poesia Concreta”.

A reação, cujos principais autores são Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim, tem, do ponto de vista da prática poética e do debate de idéias, seu ponto de maior interesse na concepção do poema como “não-objeto”, isto é, como experiência que inclui necessariamente a participação construtiva do leitor, por meio da interação física, da manipulação dos seus materiais, etc.

Embora vá originar, a partir de 1959, uma significativa produção artística, o Neoconcretismo, em poesia, não apresenta, a não ser do ponto de vista de uma copiosa e pouco convincente argumentação teórica, real novidade em relação ao que foi apresentado na Exposição de 56/57 e à obra posterior do núcleo principal da Poesia Concreta.

Na seqüência, o Neoconcretismo se vai aproximar bastante da instalação artística, da arte conceitual. E é nisso que reside a sua originalidade, no que toca ao desenvolvimento das premissas concretas: na expansão do conceito de poema a um conjunto de atitudes e práticas não-verbais. O melhor exemplo dessa originalidade talvez seja o “Poema enterrado”, de Ferreira Gullar. Essa obra de 1959 era um cômodo subterrâneo, de forma cúbica, no centro do qual havia um grande cubo vermelho; este envolvia, por sua vez, um cubo menor, de cor verde, que envolvia um terceiro, de cor branca, em cuja face inferior o leitor poderia descobrir a palavra “rejuvenesça”.

A dissensão neoconcretista ergue uma bandeira que também é brandida pela Poesia Práxis, movimento poético surgido no começo dos anos 60.

A Poesia Práxis, que se autodenominava “vanguarda nova”, pouco tem a ver com a primeira Poesia Concreta, tanto do ponto de vista dos pressupostos, quanto dos procedimentos compositivos. Mas é, como o “salto participante”, uma tentativa de síntese ou compromisso entre as duas maiores tendências da poesia dos anos 60: a “participação social” e a “vanguarda”, isto é, o formalismo programático.

Seu principal expoente, Mário Chamie, é poeta de notável coerência de processos, pois já em poemas dos seus primeiros livros se encontram as principais características do movimento futuro. Um bom exemplo é “Olho no espelho”, do volume Configurações (1956). Aí já se encontra o desenvolvimento paralelístico do poema, tão característico da Poesia Práxis, que faz da estrofe a unidade principal, sem prescindir, necessariamente, do verso discursivo. Nos livros posteriores do autor, já na fase programática, apenas se acentua o caráter autodemonstrativo do poema, que explicita desde logo a sua própria dinâmica formal.

Na sua estrutura básica, o poema-práxis, tal como praticado por Chamie, consiste numa sentença nominal justaposta a outra sentença nominal, de modo a produzir um contraste e um choque – uma montagem, portanto. Os segmentos justapostos, por sua vez, se organizam de forma a valorizar o paralelismo sintático e/ou a paronomásia.

O custo, para o leitor, é o aumento da previsibilidade das combinações e desenvolvimentos, pois é tal a sua rigidez e regularidade que a leitura parece usualmente apenas a confirmação do já anunciado. Também é constante e ostensivo o caráter “participante” ou “social” da Poesia Práxis, que incessantemente denuncia a desumanidade da vida moderna, do capitalismo, da exploração do operariado e do campesinato, etc.

Como boa parte da poesia “engajada” do tempo, também a Poesia Práxis testemunha, além do imperativo ético da denúncia da injustiça social, a necessidade catártica da consciência burguesa ilustrada nos anos de chumbo do Brasil. Necessidade essa que freqüentemente se resolve num tipo de poesia que sobrevive mal ao momento e às razões da sua produção.

Dos poetas ligados originalmente ao projeto Práxis, construiu obra pessoal Armando Freitas Filho. Embora nos primeiros livros permanecesse prisioneiro da paronomásia e da aliteração – que constituíram a marca da filiação ao campo das vanguardas –, o poeta foi gradualmente caminhando de volta às dicções maiores de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Editor de Ana Cristina Cesar, Armando Freitas Filho ouviu também o chamado da poesia de notação existencial e confessional que caracterizou uma tendência da poesia brasileira dos anos 70 e 80. O ponto alto de sua obra, no qual os vários vetores de força se conjugam, é Fio-terra (2000), livro estruturado de modo a potencializar o movimento que é o geral da sua poesia: dissolver a energia bruta captada no registro do quotidiano na energia coletiva da tradição poética. Do ponto de vista técnico, o traço distintivo do poeta é maestria com que maneja um tipo de verso baseado no suspense e surpresa da quebra sintática e rítmica e que parece, por isso, de corte arbitrário. Operando a suspensão brusca do discurso no final do texto ou no meio de um bloco de sentido, dando destaque à palavra rara, alterando subitamente o registro, e empregando o anacoluto e a elipse como princípios de composição, sua poesia de maturidade representa uma superação seja da dicção previsível da Poesia Práxis, seja da dicção lacunar por ausência de estrutura e método, que caracterizou a quase totalidade da chamada “poesia marginal” dos anos de 70 e 80.

Uma última decorrência da vanguarda concretista é o Poema-Processo, cujo vulto proeminente é Wlademir Dias Pino, um dos participantes da Exposição de 1956. Lançado em final de 1967, com a usual exposição e os necessários manifestos, o Poema-Processo caracteriza-se desde o início pela recusa radical à discursividade. Tão radical que chega à literalidade: no início de 1968 os criadores do Poema-Processo destroem publicamente livros de poetas “discursivos” seus contemporâneos nas escadarias do Teatro Nacional, no Rio de Janeiro.

Propondo-se a combater tanto a discursividade, quanto a poesia “tipográfica” concretista, o Poema-Processo visa, em última análise, a uma poesia sem palavras, ou, pelo menos, a uma poesia em que o signo verbal ocupe um lugar de importância secundária. Por isso mesmo estende de forma inaudita o sentido da palavra “poema”, a ponto de poder denominar “poema” a uma passeata ou outra performance coletiva, bem como um objeto gráfico desprovido de letras ou palavras. Nesse sentido, o Poema-Processo representa a retomada e a exacerbação do ideal integrativo do momento de formulação do projeto concretista. “Só o consumo é lógica. Consumo imediato como antinobreza”, lê-se num de seus documentos principais [1].

Visto de hoje, o Poema-Processo, do ponto de vista da produção e da reflexão sobre a cultura, parece, no que ele teve de significativo, apenas um eco exacerbado e espetacular – “o poema/processo é uma posição radical dentro da poesia de vanguarda. É preciso espantar pela radicalidade”, dizia o seu documento matricial [2] – das formulações e experiências mais conseqüentes e radicais levada a cabo, pouco antes ou simultaneamente, pelos poetas concretos do grupo Noigandres e pelo neoconcretismo de Ferreira Gullar.

V. O outro lado da Geração de 45

Embora a denúncia da incomunicabilidade da poesia seja recorrente a partir da conferência de João Cabral e produza como corolário a afirmação da existência de um fosso entre o poeta e o público, a queixa de ausência de público para a poesia se produz e restringe a um âmbito específico: o da poesia que não abdicava do que Mário de Andrade, numa conferência de 1942, entendia como a grande conquista modernista, “o direito permanente de pesquisa estética” [3].

Ao mesmo tempo, ao lado e ao largo dos debates teóricos da vanguarda, continuava a existir no Brasil um público significativo para a poesia. Especialmente para a que repetia ou renovava as formas, os temas e mesmo a dicção da poesia de extração romântica ou parnasiana, como, por exemplo, em nível alto, a coletânea Livro de sonetos, que Vinícius de Moraes publicou em 1957,e, em nível baixo, a obra completa de um fenômeno editorial hoje esquecido, J. G. de Araújo Jorge [4].

Mesmo para contemporâneos de João Cabral, integrantes da vertente socialmente empenhada da Geração de 45, a questão da ausência de público aparecia de forma menos dramática, ou não aparecia. Era o caso, para só referir os mais conhecidos, de dois poetas que dispuseram, e ainda dispõem, de público fiel e relativamente amplo: Thiago de Melo e Moacyr Félix [5].

A “poesia participante”, aliás, será talvez, em fins da década de 1950 e início da seguinte, mais característica da chamada “Geração de 45” do que a produção erudita ou intimista, mas em qualquer caso distanciada da tematização dos problemas sociais, com que a tradição historiográfica brasileira fixou o seu retrato. Tanto é assim que, quando o Centro Popular de Cultura lança os “Violões de Rua” (1962-1963), na coleção Cadernos de Cultura, entre os colaboradores principais se encontram, além de poetas egressos do Modernismo, como Cassiano Ricardo e Vinicius de Moraes, expoentes daquela geração: Paulo Mendes Campos, Moacyr Félix e Geir Campos.

Do ponto de vista da reflexão sobre o tema, central nos anos de 1950-70, da relação do poeta com o seu público e das estratégias poéticas derivadas dessa reflexão, a leitura do “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura”, de 1962, é imprescindível. Contra o pano de fundo das discussões da vanguarda, o Manifesto vem propor “o dever de impor limites à atividade criadora”, sempre que houver conflito entre a sua dinâmica própria e “o que é exigido pela luta objetiva” [6]. A idéia de público é agora uma idéia de eleição de público. A comunicabilidade, portanto, não é um valor abstrato, pois só faz sentido tendo em mente o público correto, isto é, “o povo”. A subordinação da criação e das questões formais ao destinatário justifica o controle completo da produção: “feitas as contas, a troca de uma liberdade vazia de conteúdo por uma atividade consciente e orientada a um fim objetivo é feita a favor dos interesses do próprio artista em sua qualidade de criador”. E o argumento prosseguia: “de modo algum somos artistas impedidos de dizer o que queremos pelo fato de só dizermos o que pode ser ouvido”.

Concebido como combate ostensivo contra “a liberdade do artista de minorias”, o texto repõe a questão aflorada por Cabral, na conferência de 1954:

“a chave que elucida todos os problemas relativos às possibilidades formais da arte ilustrada e da arte revolucionária é descoberta quando se compreende que o ato de criar está determinado em sua raiz pela opção original a que nenhum artista pode se esquivar e que consiste no grande dilema entre a expressão e a comunicação.” [7]

A solução proposta no manifesto do Centro Popular de Cultura, assim, radicaliza a proposta de Cabral no sentido oposto ao operado pela Poesia Concreta. Agora, o caminho para a comunicação não passa pela incorporação dos mass media, mas sim pela exploração sistemática e exclusiva das formas literárias tradicionais e mais difundidas entre o público-alvo do discurso revolucionário. Daí o ressurgimento instrumental do poema em versos medidos e das formas e gêneros mais vulgarizados. Daí também a aproximação, ao CPC, de poetas emblemáticos da Geração de 45, cultores de formas e gêneros tradicionais.

A década de 1960 – em cujo centro se situa o golpe militar que extinguiu a vida democrática por 20 anos no Brasil – vai se articular, do ponto de vista artístico, em torno desses dois pólos contrários de atração: a vanguarda autonomista e o imperativo de submeter a dinâmica própria da arte ao objetivo de ação política. Se a eles se acrescentar um terceiro, que é a integração da arte ao mercado de consumo, propiciada e exigida pelo avanço dos meios de comunicação de massa, obtêm-se as balizas entre as quais se moverá a mais significativa produção literária brasileira de meados do século XX.

A trajetória de Ferreira Gullar dá bem uma idéia da tensão entre esses lugares de força e do seu poder de atração: tendo sido um dos criadores do Concretismo e o principal expoente do Neoconcretismo, abandona a vanguarda em nome da participação social, no começo dos anos 60, dedicando-se à composição de poemas panfletários, escritos na forma do poema de cordel (João Boa-Morte, cabra marcado para morrer; Quem matou Aparecida), e à redação do ensaio Cultura posta em questão. Já no final da década de 1970 e início da de 1980, trabalhará para a Rede Globo de televisão, realizando adaptações de obras teatrais e escrevendo capítulos para programas seriados exibidos pela emissora. Por fim, será colaborador da grande imprensa, atuando hoje como cronista da Folha de S. Paulo.

Ao longo desse trajeto acidentado, de mudanças bruscas de orientação, Gullar afirma, a partir de Dentro da noite veloz (1975), a sua dicção característica e a forma particular do seu verso, que persistirá até os seus livros mais recentes: a partição da frase em segmentos breves, de intenção icônica, semafórica ou simplesmente rítmica, na qual as orações se organizam segundo as cadências básicas da tradição do verso português. Ou seja, a sua não é apenas poesia para ser lida em voz alta. É poesia para ser lida em voz alta e cadenciada segundo os metros preferenciais da tradição portuguesa: aqueles cujo ritmo, ao longo dos séculos, tornou-se quase uma segunda natureza. Talvez por conta disso, Gullar acrescenta tanto os seus poemas, quando os oraliza. Ouvindo-o, a entonação levemente oratória impõe a dicção própria dos seus versos, que submete a superfície do desenho do poema na página às seqüências mais características da tradição da língua portuguesa: as redondilhas e, principalmente, os dois tipos de decassílabos definidos no Renascimento.

Nesse sentido, e também pelos temas e pelo tratamento deles, Gullar se apresenta como herdeiro direto da poesia do segundo Modernismo. Nessa poesia que se afirmou, ao longo do tempo, como a de mais amplo e fiel público dentre as suas contemporâneas, destacam-se, como constantes, o gosto de nomear as ações do quotidiano e aferir o seu peso na memória individual, a busca do sentido pessoal e contingente em todo ícone cultural ou religioso, a celebração do imperfeito, do sujo, de tudo o que traz a marca da luta do homem pela vida, bem como a afirmação da solidariedade e do espanto frente à beleza.

VI. A persistência da memória

Também ligado às vanguardas, porém mais próximo da Geração de 45, é Mário Faustino, uma das figuras importantes da poesia brasileira no início dos anos de 1950. Prematuramente desaparecido, sua poesia, de extração poundiana, não teve talvez tempo de amadurecer e afirmar-se num caminho próprio. Companheiro de viagem dos poetas concretos, teve, entretanto, participação muito marcante na atualização do repertório poético brasileiro, por meio da atuação na imprensa periódica: entre 1956 e 1959, manteve no Jornal do Brasil uma página literária intitulada Poesia-Experiência, na qual desenvolveu intensa atividade de crítica e de tradução de poesia, que ajudou a determinar os rumos da literatura brasileira subseqüente [8].

Da Geração de 45, a vertente convencional e classicizante, teve, ao longo do período, a sua melhor realização na poesia de Hilda Hilst. Nela, não há que procurar uma dicção própria – a não ser talvez nos poemas de inspiração grotesca. A qualidade maior dessa poesia é a sua competência técnica, que a destaca como um ponto alto de realização da poética de 45, com seu gosto pela língua castiça e pelo exercício das formas tradicionais. De sabor lusitanizante, essa poesia tem ganhado leitores, nos últimos anos, principalmente a partir da projeção – graças a um esforço editorial bem-sucedido – da autora como prosadora de primeira linha.

Já a vertente propriamente neoparnasiana da Geração de 45 responderá, ao longo da segunda metade do século XX e até hoje, por uma ampla floração poética facilitadora e mesmo medíocre, que entende a “tradição” como domínio escolar da rima, da métrica e de algumas formas fixas. Por fazer do conservadorismo sua bandeira e apresentar-se, portanto, como simultâneo antídoto às vanguardas dos anos 50/60 e à desqualificação literária que terá lugar nos anos de 1970, seus integrantes vêm progressivamente conquistando um lugar ao sol na Academia e no mercado editorial.

Nessa linha de força da poesia contemporânea brasileira, que atende à persistência do gosto beletrista, o mais consistente é Bruno Tolentino. Mas afora o interesse isolado de alguns poemas narrativos de caráter didático ou ensaístico, e de passagens nas quais o tom geral elevado cede à irrupção do coloquial e do banal, produzindo um efeito cômico e grotesco, a leitura da sua poesia é de regra tediosa [9]. Especialmente a mais recente, que se esgota na demonstração de sua grande habilidade no manejo do verso e das formas fixas tradicionais e na abundante referência a lugares, obras de arte e pessoas célebres.  O resultado da conjugação dessas características dominantes é um travo persistente de novo-riquismo cultural, que já foi descrito como “deslumbramento do poeta de província acolhido nos salões dos grandes, no centro da cultura”.

Distinguindo-se, por um lado, dos herdeiros diretos das vanguardas e, por outro, da aluvião dos neoparnasianos, e tampouco mantendo laços estreitos com a poesia engajada, destacam-se, no período, alguns poetas que conseguiram, no influxo da Geração de 45, encontrar caminho próprio e voz pessoal, algumas vezes por meio da renovação do diálogo com a obra dos poetas surgidos nas décadas de 1920 e 1930.

Apresentando-se em continuação de certo coloquialismo modernista, com a novidade de ser uma espécie de poesia do alumbramento doméstico, da apologia do pequeno, do simples e quase do simplório, a poesia de Adélia Prado foi, há algumas décadas, amplamente lida e acolhida na instituição universitária, sendo objeto de várias comunicações e teses acadêmicas. No entanto, não é uma poesia que pareça sofrer bem a passagem do tempo. Hoje a sua leitura joga para o primeiro plano sobretudo aquilo que envelheceu, mas que responde pela ressurgência do interesse da obra, já agora no registro dos livros de sabedoria de apelo popular.

Deve-se ainda referir aqui José Paulo Paes, o mais velho dos integrantes desta antologia, que desenvolveu, a partir de uma estréia no âmbito da Geração de 45, um sincretismo curioso, que faria ampla escola: uma poesia na qual o gosto pelo poema-piada de extração modernista e do aforismo se combina a uma estilização elegante do minimalismo e da visualidade concretista.

Menos conhecido, Armindo Trevisan é poeta muito desigual, passando do pieguismo pietista ou moralizante a poemas de grande originalidade e sopro lírico no interior de um mesmo livro. Nos momentos altos, é poeta de peso, mostrando-se capaz de renovar o arsenal metafórico tradicional, na linha dos segundos modernistas, como Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt. Sofre, porém, além da irregularidade, do mal de ser, voluntária ou involuntariamente, um poeta quase confinado ao seu torrão, publicado o mais das vezes por editoras de distribuição regional, o que talvez explique que não tenha ainda recebido a atenção que merece.

Também nesse conjunto é preciso destacar o nome de Orides Fontela, que tem em comum com Paes a preferência pelas formas breves e com a Geração de 45 a fixação temática nos emblemas tradicionais do poético. Desde o primeiro livro, de 1969, Orides Fontela, entretanto, manifesta a sua solução própria aos impasses da dicção elevada da poesia atemporal, que se fixa a partir do livro seguinte (Helianto, 1973). Daí em diante, seus poemas se constituem usualmente de poucas frases breves, submetidas ao corte brusco do verso (que às vezes já nem parece verso, pois se compõe de uma só palavra ou sílaba) e ao arranjo espacial dos fragmentos, de modo a destacar palavras isoladas ou paralelismos fônicos ou sintáticos. O que a distingue dos contemporâneos, evidentemente, não é esse aproveitamento amaneirado dos procedimentos vanguardistas (que são moeda comum na época e ao longo de todos os livros da autora), mas o tom da sua poesia. Seu laconismo assume por vezes um caráter oracular, sentencioso, de que não é ausente certa nota de persistente gosto simbolista, e mesmo kitsch,como já se notou [10]; outras vezes, permite a construção de poemas permeados de elipses, nos quais os rápidos traços descritivos produzem o efeito de uma contemplação despojada que lembra a poesia oriental e as atitudes normalmente associadas, na moda do tempo, ao budismo zen [11].

Um poeta de interesse é Leonardo Fróes, que conjuga de modo particular o gosto da forma tradicional do verso e da metáfora de extração surrealista com o apelo à experiência do quotidiano e à contemplação da natureza como fonte da poesia. Dessa conjunção de fatores, resulta uma obra que apresenta alguma proximidade com a de Armindo Trevisan. Nos seus dois primeiros livros, de final da década de 1960, ouvem-se ainda muito distintamente os ecos dominantes no momento. A impressão é de que esse “poeta fino de temperamento participante” tateia o terreno: aqui ressurge João Cabral, ali Drummond, um pouco por toda parte a base metafórica e discursiva da Geração de 45. A partir de meados da década seguinte, instaura-se uma dicção nova, de forte marca surrealista, que se realiza principalmente na prosa poética, que comparecerá intercalada aos versos nos livros subseqüentes. Nesses, porém, nunca deixa de haver um namoro – o mais das vezes irônico, porém outras apenas concessivo – com a dicção empostada de 1945. Os melhores momentos de sua obra, que não é extensa, parecem dividir-se entre os dois pólos mais fortes e, até o momento, não conciliados: os poemas (e principalmente a prosa poética) nos quais o fluxo discursivo se organiza sobre seqüências de metáforas violentas e é sensível a influência da poesia beat norte-americana, à qual se dedicou como tradutor; e os poemas de caráter mais objetivo e descritivo, à maneira de William Carlos Williams ou de alguma poesia clássica oriental, que livremente recriou. Ausente da vida literária e, principalmente, do que nela se confunde tão amiúde com o marketing editorial, Leonardo Fróes vem construindo uma obra de repercussão modesta, mas de bastante individualidade.

VII. O centro e a margem

“Curiosamente, hoje, o artigo do dia é poesia”. Assim começava a apresentação, datada de 1975, de uma antologia que era também um anúncio e balanço precoce do que passará a ser conhecido, no Brasil, como “poesia marginal” [12].

Num texto escrito cinco anos antes, um dos antologiados, Roberto Schwarz, anotava, sobre o período que se seguiu à implantação da ditadura, em 1964:

Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. […] Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um lado para as comissões do governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado – produz para consumo próprio. [13]

Em fins de 1968, o regime militar recrudesceu, promulgando o Ato Institucional nº 5, que inaugurava uma nova fase de autoritarismo, na qual as notícias, os espetáculos artísticos, a publicação de livros e a circulação das idéias no interior da universidade passaram a ser rigidamente controlados.

É com esse quadro em mente que se devem ler e avaliar as proposições da apresentadora da antologia 26 poetas hoje:

Há uma poesia que desce agora da torre do prestígio literário e aparece como uma atuação que, restabelecendo o nexo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público. Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua [sic], opondo-se à política cultural que sempre dificultou o acesso do público ao livro de literatura e ao sistema editorial que barra a veiculação de manifestações não legitimadas pela crítica oficial.
[…]
No plano específico da linguagem, a subversão dos padrões literários atualmente dominantes é evidente: faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e repressiva no nosso panorama literário.

As palavras estão todas aí: subversão, recusa à política cultural, à repressão e ao controle oficial sobre o artista. Seu sentido, porém, já não guarda relação com o que esses termos significavam, por exemplo, na arte engajada dos anos de 1960. As formulações vagas sobre o que seja o público e a política cultural que “sempre dificultou” o acesso ao livro não são privilégio da organizadora da antologia, mas percorrem os textos dos seus representantes, mesmo os mais preparados profissionalmente para lidar com a reflexão sobre a cultura, como o poeta e professor de teoria literária Antonio Carlos de Brito (Cacaso). Nisso, todos parecem falar em uníssono: a “poesia jovem” se define como oposição imediata não em relação ao centro do poder político, mas a um centro muito específico, identificado ao sistema editorial e à “crítica oficial”. A repressão denunciada diretamente por ela, assim, não é a do aparelho do Estado, mas a da aliança da vanguarda ortodoxa com o classicismo, e se daria tanto no campo editorial e crítico, quando no campo da expressão individual.

A propósito, detectava Cacaso, em 1978, “um grave problema cultural e social no Brasil de hoje: a escalada da marginalização, que barra ao escritor, sobretudo se for estreante, e mais ainda se for poeta, o direito de ter seu trabalho editado e distribuído em condições normais” [14]. Do seu ponto de vista, o “poeta jovem” dos anos 70, barrado pelo sistema editorial, e opondo-se a um “mundo oficial” – no qual apareciam confundidas as instituições políticas da ditadura, o discurso neoparnasiano de 1945 e os programas e realizações da vanguarda –, contra eles reagia assumindo uma dupla marginalidade: no plano dos “pressupostos materiais e institucionais de sua existência”, assumia “pessoalmente os riscos de edição e distribuição”; e “no plano independente da linguagem” – talvez mesmo em função dos riscos da distribuição – promovia a desqualificação do propriamente literário, por meio da proposição de “uma quase coincidência entre a poesia e a vida” [15].

O resultado (ou sentido) político dessa marginalidade poética era apresentado nestes termos:

O efeito de distensão e afrouxamento operado neste movimento contém, virtualmente, os germes da atitude revolucionária diante da cultura: esta deixa de ser tratada como fetiche, como algo apartado e alheio à vida, para recuperar seu posto e significado na continuidade viva da experiência social. Tudo somado, aponta para uma situação que contém uma utopia: a distribuição manual do livro, ainda que a troco de algum dinheiro, atenua muito a presença do mercado, modificando funcionalmente a relação entre obra, autor e público e reaproximando e recuperando nexos qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia destruído.

Analisado à distância, ressalta desse discurso, em primeiro lugar, a fragilidade conceitual. Em segundo, a alegoria rala do discurso engajado em que ele se constitui, pelo uso sistemático de termos que remetem ao universo político. Em terceiro, a impressão de descolamento da realidade que ele produz, na medida em que o mercado da poesia aparece como sólida instituição capitalista no Brasil. Não espanta, nesse quadro, que os nexos qualitativos a recuperar entre o leitor e o público sejam descritos como “uma conversinha”, que o ideal seja ter a poesia como assunto do mesmo nível do “futebol e a vida alheia” e que, do ponto de vista técnico, a marginal possa ser proposta como “uma poesia que requebra”. O ponto de chegada de tal percurso teórico é a seguinte concepção de poesia, expressa por Cacaso na análise do livro de outro ícone do movimento, Ricardo de Carvalho Duarte (Chacal):

Escrever poesia é o mesmo que brincar com as palavras, do mesmo modo que jogar futebol é brincar com a bola, do mesmo modo que viver é, de certa forma, brincar, vadiar.

Do ponto de vista da realização poética, a obra de Cacaso reduz-se a um explorar sistemático das facilidades modernistas: o coloquialismo extremo, temperado com um fundo de piada e uma percepção “esperta” do traço brasileiro, usualmente reduzido à combinação surpreendente do arcaico com o moderno. A cinqüenta anos de distância, as ousadias de um Oswald ou de um Mário, já plenamente historizadas pela crítica, convertiam-se nos livrinhos de Cacaso, como nos de seu colega Chacal, em receita e eram repetidas com um ar malandro e não desprovido de certa graça infantil [16].

Roberto Schwarz, companheiro de geração e de poesia de Cacaso e Francisco Alvim, disse do primeiro que “ele andava atrás de uma poesia de tipo sociável, próxima da conversa brincalhona entre amigos” [17]. Na mesma passagem, estendia a reflexão à poesia do grupo: “um emendaria o outro, tratando de tornar mais engraçada e verdadeira uma fala que pertencesse a todos, ou não fosse de ninguém em particular. Era um modo juvenil de sentir-se à vontade e a salvo das restrições da propriedade privada.”

A descrição de Schwarz ressalta um aspecto da “poesia marginal”, na sua versão engajada, que parece essencial em qualquer descrição: a sua redução a poesia em curto-circuito, já não agora para um público amplo, como antes de 1968, mas para um grupo restrito de pares, animados dos mesmos referenciais, crenças e objetivos [18].

Desse grupo, o poeta que se destacou ao longo dos anos foi Francisco Alvim. Como Schwarz, Alvim se dirige a um público evidentemente educado, que se diverte no trânsito entre as línguas, ironiza pequenas fofocas palacianas, se reconhece na experiência do tédio burocrático, aprecia a crítica elíptica dos maus costumes nacionais e valoriza uma forma específica de incorporação do popular: o ready-made que, por contraste com o resto, acaba produzindo freqüentemente um retrato entre irônico e sentimental (e às vezes culpado) do vulgar. O melhor leitor previsto nesse tipo de procedimento de montagem é o que é capaz de, desprezando a trivialidade e a repetição exaustiva do procedimento, interessar-se mais pela intenção de alegorizar o país que está presente nestes recortes frasais e nessa sistemática oposição dos registros. Ou seja, o leitor ideal da poesia de Alvim é o que está disposto a descobrir-lhe ou ressaltar-lhe a intenção paródica e política, e a apostar, dessa forma, que nisso reside algum tipo de excelência poética, de que seus poemas participam.

O último livro do poeta, Elefante, representa um momento de afirmação dos vetores de força principais da obra do poeta: de um lado, a afirmação de uma atitude “antipoética”, que se materializa no gosto pela recolha da frase feita, do lugar-comum discursivo ou de expressões típicas de uma classe ou ambiente social; de outro, a manutenção, em alguns momentos, de uma dicção mais alta, em que ressurge uma sintaxe, uma imagética e uma dicção mais tradicionalmente identificadas como “poéticas”. A evolução de Alvim tem-se processado no sentido de reduzir o número de textos desse último tipo – que é onde está, sem dúvida, o melhor de sua poesia – e de acentuar o gosto pelo poema constituído por “achados” irônicos ou mordazes, alegóricos da má-formação brasileira, que se deixa ler como encenação minimalista das “idéias fora do lugar”, conceito-chave da sua geração para interpretar a história nacional e propor um caminho para o país [19].

Ao lado de Alvim, avulta a figura de Ana Cristina Cesar, poeta, tradutora e professora de literatura, que se suicidou aos 31 anos de idade, em 1983.

No prefácio de um de seus livros, A teus pés, escreve seu editor, o poeta Armando Freitas Filho:

‘Escrevo in loco, sem literatura’, afirma A. C. em texto inédito. Esta frase sucinta revela toda sua práxis de escritora.

Na verdade, é o contrário disso o que ressalta da leitura da sua poesia, na qual abundam alusões e apropriações de textos e nomes emblemáticos da cultura ocidental: Baudelaire, Elisabeth Bishop, James Joyce, Gertrude Stein, Walt Whitman, Bandeira e Drummond, para só mencionar alguns [20].

“Sem literatura” é antes a forma literária por excelência de Ana Cristina Cesar. Ou, olhando por outro ângulo: autobiografia, registro imediato, fala confessional são configurações literárias da sua produção in loco. Escrever “in loco, sem literatura” não é, portanto, uma declaração que aspira à descrição da verdade, mas um desejo de estilo. Um desejo de efeito de verdade. Ou seja, um ideal literário. No caso, como mostra a história da recepção ampla da sua obra, um ideal atingido.

O desarranjo interior, a volubilidade da linguagem, o amor proibido, a angústia com a passagem rápida do tempo, tudo isso se conjuga com a estrutura frouxa e lacunar dos textos como índices de impossibilidade. Índices esses que adquirem excepcional força, em virtude do destino da autora, e acabaram por ser lidos de modo muito particular e significativo, num registro próximo do trágico.

Entretanto, a leitura atenta da sua obra publicada e da que ficou inédita e fragmentária permite ver, por cima da sedução biográfica determinada pelo gesto último, um consistente trabalho de elaboração poética, que redunda num estilo próprio, distante do ideal naïf da massa dos autores “marginais” [21]. Um estilo que, por um lado, parece radicar em T. S. Eliot e Ezra Pound, no que diz respeito à incorporação de fragmentos de terceiros, transcritos ou livremente traduzidos; e que, por outro, explora (ou manipula, talvez fosse melhor dizer) o tom e a forma confessional, que é a marca do próprio tempo. O resultado é uma construção ambígua, na qual se misturam as instâncias elocutivas e o que conta é o jogo dos vários tons e registros justapostos, o seu contraponto e o sentido (ou ausência de sentido) que um adquire pela proximidade e contaminação do outro [22].

Fora esses poetas, o valor individual da vasta produção “marginal” do período parece pequeno ou nulo. Ao mesmo tempo, ela é notável como movimento coletivo: animada pela desqualificação e facilitação literária, e apoiada na proposição de que a expressão direta do cotidiano e das angústias juvenis era uma forma de protesto político, a “poesia marginal” encontrou no público universitário crescente um receptor simpático, produzindo no Brasil um momento de grande difusão da poesia, em exposições, revistas e antologias de novíssimos.

Nos círculos “oficiais” (ou, pelo menos, nada “marginais”), por sua vez, o acolhimento não se fez esperar: não só a instituição universitária abrigou e mesmo estimulou a realização de eventos consagrados à nova poesia, mas também o mercado editorial cedeu-lhe o espaço tão almejado nos primeiros tempos, como mostra a publicação dos seus principais poetas por uma editora de prestígio e de mercado [23]. Por fim, coube à indústria cultural difundi-la amplamente, já em 1982, por meio do volume Poesia jovem, anos 70, publicado na coleção Literatura Comentada, da Abril Educação [24].

Nesse sentido, ao menos nos limites da classe média ilustrada, a “poesia marginal” foi bem-sucedida, como estratégia de refazer os laços do poeta com o público, a ponto de tornar o poeta jovem que vendia seus próprios versos e promovia happenings nos lugares consagrados da cultura uma figura conhecida, incorporada inclusive como personagem típico do folclore urbano pela principal forma de cultura de massas no Brasil, a novela de televisão.

VIII. Outras margens

Dentre os poetas arrolados na primeira antologia da “poesia jovem”, um havia que se distinguia dos demais: Roberto Piva. De fato, nada mais distante de sua prática poética do que a facilitação da linguagem para aproximar a poesia do leitor ou a definição da marginalidade como a sonegação de um direito de ocupar o centro. Sua poesia, a de maior originalidade desde os concretos, nada parece ter a ver com qualquer dos quatro pontos cardeais da poesia do período em que começa a escrever: não tem afinidades com as vanguardas, não se aproxima da poesia politicamente comprometida, não tem parentesco com o beletrismo neoparnasiano e apenas pelo fato de não se enquadrar em nenhuma das correntes anteriores deve ter sido assimilada à “poesia marginal”.

Por outro lado, se há, no conjunto de autores apresentados em 26 poetas hoje, algum que poderia fazer jus à denominação “marginal”, esse autor é Roberto Piva. Sua poesia se origina de referências não muito usuais na poesia brasileira sua contemporânea. As mais imediatas e mais importantes são o surrealismo e os beats americanos. Ao mesmo tempo, trata-se de uma poesia que não abdica da referência erudita, que está presente todo o tempo em seus poemas, nem do aproveitamento dos motivos e dos ritmos tradicionais do verso. O resultado da combinação dessas referências é uma poesia poderosa e sensualmente desregrada, caracterizada pela metaforização exuberante, pelo elogio do alucinógeno, do xamanismo, pela composição por livre associação, pela ausência de censura e pelo homossexualismo escancarado, tudo isso vazado em versos cadenciados, sem a contenção prudente encontrável nos descendentes da vanguarda, nem na gaiolinha dourada das fórmulas neoparnasianas. Perto dessa obra, que permaneceu de fato marginal (senão maldita até muito recentemente), os “poetas marginais” seus contemporâneos de antologia acabam mesmo por parecer garotos instalados na “perspectiva estável de uma sala de jantar da classe média”. [25]

A segunda antologia que reuniu e difundiu a “poesia marginal” (mas não só) – o volume Poesia Jovem, anos 70 – incluiria no grupo um poeta que seria, nos anos seguintes, um dos mais populares e marcantes da literatura brasileira recente: Paulo Leminski.

Seu traço de ligação com a poesia de Alvim, de Chacal ou Cacaso é o informalismo do registro lingüístico, que ora se compraz na frase feita, ora no registro imediato de uma situação vivencial, ora na construção de epigramas que soam mais como slogans. Já sua aproximação à Poesia Concreta não deixou rastros significativos na sua poesia, sendo mais sensível na sua obra em prosa, amplamente tributária do experimentalismo vanguardista.

João Cabral de Melo Neto, na conferência de 1952, fez uma observação que poderia aplicar-se à “poesia marginal” como um todo, mas que parece especialmente talhada para definir a de Paulo Leminski:

… o autor é tudo. É o autor que ele [o poeta inspirado] comunica por debaixo do texto. Quer que o leitor sirva-se do texto para recompor a experiência, como um animal pré-histórico é recomposto a partir de um pequeno osso. A poesia deles é quase sempre indireta […] O poema desses poetas é o resíduo de sua experiência e exige do leitor que, a partir daquele resíduo, se esforce para colocar-se dentro da experiência original. [26]

“Caipira cabotino”, “polilíngue paroquiano cósmico”, “caboclo polaco-paranaense”, no dizer de Haroldo de Campos, Leminski foi uma personalidade de grande projeção de media: letrista de música popular, tradutor, romancista, biógrafo de Bashô, John Lennon e Jesus Cristo, lutador de judô, poeta, conferencista e agitador cultural. Publicitário de formação, soube tirar o máximo proveito dos meios de comunicação e, ao mesmo tempo, desenvolver uma poesia de caráter epigramático que conjugou, sobre a base da frase de efeito (palavra de ordem, “sacada” esperta ou lema irônico), numa retórica da libertação pessoal, a contestação contracultural, o espontaneísmo e o apelo à irracionalidade “zen-budista”, em moda desde a descoberta do pensamento oriental pelos beats norte-americanos.

Lida hoje, a poesia de Leminski se ressente da ausência do seu criador. A consideração objetiva dos seus gestos verbais nem de longe permite ter uma idéia da energia que os animava, e que provinha daquilo que não era texto: a construção de uma figura pública de alto poder de sedução, graças ao brilho da inteligência, ao ecletismo de princípios e procedimentos e à eficácia da carreira de poeta pop, capaz de transitar à vontade entre os mass media e os redutos da cultura erudita. Sua poesia tinha assim um caráter essencialmente performático, que tornava já efetivo aquilo que apresentava como ideal futuro: “vai chegar o dia / em que tudo o que diga / seja poesia”.

A obra poética de Leminski, por isso, tanto a publicada em vida, quanto a reunida postumamente, exibe com mais clareza, a cada ano, os seus limites, enquanto texto autônomo; ao mesmo tempo, num movimento complementar, vem ganhando maior interesse crítico a sua obra em prosa.

Neste momento, Leminski continua a ser uma presença forte na poesia brasileira, com legião de imitadores, enquanto a poesia de Piva mal começa a ser conhecida fora dos círculos mais estreitos que assistiram ao seu nascimento. Entretanto, tudo indica que será a obra desse último a que, com o decorrer do tempo, acabará por se impor como a mais consistente e original dentre as surgidas à margem tanto do núcleo duro das vanguardas quanto do resistente academicismo beletrista.

IX. Esta história

À medida que se aproximava do momento da escrita, esta narrativa da história da poesia brasileira pós-cabralina precisava estabelecer o ponto de corte, sob pena de a falta de distância crítica dissolver a perspectivação e o comentário dos relevos em mera relação de autores, obras e de tendências ainda pouco definidas. Uma baliza a orientar o corte foi a cronológica, restringindo-se a antologia aos poetas nascidos até 1950 [27]. Delimitado o período, o próximo passo foi definir o escopo da antologia, isto é, estabelecer os critérios que presidiriam à escolha dos poetas e, em cada caso, dos poemas. O primeiro critério de escolha, tanto dos poetas, quanto dos poemas, foi o interesse da leitura hoje. O segundo foi o da representatividade dentro das linhas de força de desenvolvimento da poesia brasileira. A combinação de ambos garantiu a exeqüibilidade do projeto, por meio da eliminação da ambição panorâmica e renúncia ao inventário.

O elenco dos autores se construiu, portanto, a partir de um duplo movimento: a redução do espectro aos poetas que pareceram, na leitura do conjunto da poesia brasileira da segunda metade do século XX, mais representativos de uma tendência dada e a não-inclusão de tendências que representam, sem novidade, apenas a repetição ou continuidade rebaixada de atitudes ou pressupostos anteriores à fase nela compreendida [28].

Com tais princípios, a seleção talvez pareça enxuta demais e prenhe de lacunas, do ponto de vista de alguns leitores; e provavelmente a outros parecerá muito ampla e mesmo concessiva. O próprio autor do trabalho oscilou constantemente entre os dois julgamentos, sendo especialmente sensível ao segundo. A forma atual é, entretanto, a que foi possível, dada a dimensão necessária do livro, por um lado, e o seu objetivo, por outro. [29]


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Notas

[1] “Proposição”, texto de 1967. Reproduzido em Heloísa Buarque de Hollanda. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960-1970, São Paulo, Editora Brasiliense, 1980.

[2] “Processo – Leitura do projeto”, texto de 1968. Reproduzido em Impressões de viagem, op. cit.

[3] “O movimento modernista”. Reproduzido em Mário de Andrade, Aspectos da cultura brasileira, São Paulo/Brasília, Livraria Martins Editora/Instituto Nacional do Livro, 1972.

[4] Vinícius de Moraes (1913-1980) estreou na poesia com o livro O caminho para a distância, em 1933. A partir dos anos 1950, dedica-se também à carreira musical, sendo um dos criadores da Bossa Nova. Foi, também por conta da projeção da música, um dos poetas populares do tempo. J. G. de Araújo Jorge (1914-1987) publicou o primeiro livro em 1934. Até a sua morte, lançou duas dúzias de livros de poemas e organizou antologias de sonetos, nacionais e traduzidos. Versando desde a lírica amorosa mais singela e edulcorada até a poesia social e declamatória, esse locutor de rádio e deputado foi um fenômeno de vendas: por exemplo, de seu livro Amo!, cuja primeira edição saiu em 1938, fizeram-se 9 edições, num total de 80 000 exemplares. Quando se refere a persistência do gosto pela poesia de extração romântica ou parnasiana no Brasil – tanto quando se trata da difusão da prosa romanesca – não é possível esquecer a vastíssima produção espírita nacional. Nesse filão, o caso mais notável é o sucesso duradouro do Parnaso de além-túmulo, volume publicado pela Federação Espírita Brasileira que reúne, “psicografados” por Francisco Cândido Xavier, poemas póstumos de uma grande gama de poetas brasileiros e portugueses românticos, parnasianos e simbolistas. O livro, que vem tendo reedições sucessivas desde 1932, está na 18..ª edição, tendo sido comercializados, até 2006, cerca de 100 000 exemplares.

[5] Thiago de Melo (1926- ) estreou em 1947 com Coração de terra; seus livros mais conhecidos são: Faz escuro, mas eu canto (1965), Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975) e Os estatutos do homem (1977). Moacyr Félix (1926-2005) estreou com Cubo de treva (1948) e publicou, entre outros, Canto para as transformações do homem (1964).

[6] O documento se encontra reproduzido em Impressões de viagem.

[7] Impressões de viagem, cit., p. 135.

[8] A produção crítica e as traduções de Mário Faustino foram cuidadosamente recolhidas em dois volumes por Maria Eugenia Boaventura: Artesanatos de poesia – fontes e correntes da poesia ocidental (São Paulo, Companhia das Letras, 2004) e De Anchieta aos Concretos – poesia brasileira no jornal (São Paulo, Companhia das Letras, 2003).

[9] A leitura generosa desse contraste foi feita por Alcir Pécora, na resenha “Gesto besta, sublime intangível” (Suplemento “Mais!”, Folha de S. Paulo, 11 de maio de 2003), da qual foi retirada ainda a citação que encerra o parágrafo. A propósito, ver ainda o artigo de Marcos Siscar: “Tolentino recusa modernidade e prega ‘contra-reforma’ poética”. Folha de S. Paulo, caderno “Ilustrada”, 22 de julho de 2006.

[10] A persistência simbolista foi registrada por Antonio Candido, no prefácio ao livro Alba. O kitsch,por Vinicius Dantas: “A nova poesia brasileira & a poesia”, Novos Estudos Cebrap, n.º 16.

[11] Vinicius Dantas, no ensaio referido, descreveu assim a combinação particular que constitui essa poesia: “a poesia de Orides persegue os ouropéis do translúcido mas, ao mesmo tempo, não oculta a astúcia da fatura: já que sua poesia é decorativa, ela não evita escolhos do tipo ‘anárquica primavera’ e vulgaridades tais que trufam seus versinhos”. Daí que o crítico a avalie como poesia contemporizadora, capaz de exercer grande fascínio para “os inimigos da vanguarda”, constituindo, na verdade, “mais um romantismo azedo para quem degusta a modernidade poética sob fórmulas convencionais e apaziguadoras” (op. cit., p. 53 e 52).

[12] Trata-se do volume 26 poetas hoje – seleção e introdução de Heloísa Buarque de Hollanda, Rio de Janeiro, Editorial Labor, 1976.

[13] Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969 – Alguns esquemas”, O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 62.

[14] Antonio Carlos de Brito, “Tudo da minha terra”, Almanaque, n.º 6, 1978; reproduzido em Não quero prosa,Campinas/Rio de Janeiro, Editora da Unicamp/Editora da UFRJ, 1997. Soa curiosa essa reivindicação do direito do estreante ser publicado em “condições normais”, considerando os dados da história recente. De fato, não só os poetas “oficiais” da vanguarda nunca dispuseram de editores para sua poesia – o que fizera Décio Pignatari, usando o mesmo tipo de associação, falar em tradição samizdat da Poesia Concreta –, mas tampouco tiveram editores para os primeiros livros as figuras mais destacadas do período. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, imprimira com as próprias mãos a Psicologia da composição, em 1947; Manuel Bandeira, por sua vez, publicou por conta, em 1936, A Estrela da Manhã, numa edição de cinqüenta exemplares, e em 1940, prestes a ser admitido na Academia Brasileira de Letras, bancou a publicação da Lira dos Cinqüent’Anos; Drummond igualmente publicara em edição particular, como era de conhecimento geral, Alguma poesia, em 500 exemplares, e Sentimento do Mundo, com tiragem de 150 exemplares.

[15] A identificação simultânea da Poesia Concreta e da poesia engajada com o “oficialismo” é proposta por Cacaso em vários momentos, mas com especial clareza e ênfase no artigo “Atualidade de Mário de Andrade”, publicado na revista Encontro com a Civilização Brasileira, n.º 2, de agosto de 1978. O artigo se encontra reproduzido no volume citado há pouco, p. 154 e seguintes.

[16] Um balanço das aporias políticas e do nível de realização da “poesia marginal” se encontra no ensaio de Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas, “Poesia ruim, sociedade pior”, Novos estudos Cebrap, n.º 12, junho de 1985, pp. 48-61. Preciso nas análises de caso, o ensaio sofre, entretanto, de uma visada em última análise tributária da concepção lukacsiana da literatura como reflexo da sociedade, que a hipálage do título só reforça. Dessa perspectiva, a literatura de uma sociedade ruim e, sobre ruim, periférica, tem de ser ruim, tanto quando diz, quanto quando não diz. Está condenada a priori ao fracasso enquanto mimese artística,exceto se encontrar o pulo do gato, que parece ser a sua condição de sobrevivência nos países periféricos: colocar-se ainda mais “fora do lugar” do que a ideologia que tem de superar, assumindo um anacronismo estratégico ou exercendo uma espécie de teratologia voluntária, para colocar-se em fase com a monstruosidade e o atraso que visa representar e, em última análise, criticar.

[17] Roberto Schwarz, “Pensando em Cacaso”, Seqüências brasileiras,São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 212.

[18] Era a esse grupo de pares que Schwarz dava sua contribuição poética e engraçada, na construção de uma fala que “não fosse de ninguém em particular”, com poemas como este: “Jura / Vou me apegar muito a você / Vou ser infeliz / Vou lhe chatear” (26 poetas hoje, cit., p. 71) e Passeata / PAU NO IMPERIALISMO / ABAIXO O CU DO PAPA (Schwarz, Corações veteranos, s/e, 1974).

[19] A propósito das “idéias fora do lugar”, ver Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas,São Paulo, Duas Cidades, 1977. Na avaliação dos rumos da poesia de Alvim, retoma-se aqui o artigo “O poema-cocteil e a inteligência fatigada”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 5 de novembro de 2000.

[20] No final de A teus pés, um “índice onomástico” lista, sem referência de páginas, os autores incorporados ao texto da autora: são 23 nomes, 11 estrangeiros e 12 brasileiros.

[21] E principalmente do poema-piada, sobre o qual escreveu: “A lei do grupo / todos os meus amigos / estão fazendo poemas-bobagens / ou poemas-minuto” (transcrito em Flora Süssekind. Até segunda ordem não me risque nada – os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar, Rio de Janeiro, Sette Letras, 1995, p. 17).

[22] Sobre o método de Ana Cristina Cesar, ver Até segunda ordem….

[23] A Editora Brasiliense publicou, no começo dos anos 1980, Chacal, Francisco Alvim, Wally Salomão, Alice Ruiz, Ledusha, Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski.

[24] Um rápido levantamento das relações da “poesia marginal” com as instituições culturais se encontra no texto “Um quase histórico do movimento – A hora e a vez da poesia”, de autoria de Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira, que abre o volume da Coleção Literatura Comentada. Publicada pelo segmento educacional do gigante da imprensa periódica brasileira, a coleção era vendida em bancas de revista do país todo. Compunham-se os livros de uma breve introdução crítica, uma antologia anotada, um quadro de época e, por fim, exercícios escolares de compreensão dos textos. Com a publicação desse pequeno volume, assim, graças à sua enorme distribuição, a “poesia marginal” passou a ser referência comum e se colocou ao alcance do público, de norte a sul do país.

[25] Aproveita-se aqui a imagem utilizada por Iumna M. Simon e Vinicius Dantas no ensaio já referido, p. 58. Lá, a imagem era usada para contrastar os poetas marginais brasileiros com os representantes da “confessional poetry” americana.

[26] João Cabral de Melo Neto, “Poesia e composição”, Prosa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 59.

[27] A exceção é Ana Cristina Cesar (1952), pois a antologia e a exposição introdutória ficariam prejudicadas sem ela, dado o lugar central que ocupa em certa tendência historicamente importante e dado o fato de que sua obra permanece como referência ativa na definição dos rumos da poesia brasileira de hoje.

[28] Para o leitor português em especial o resultado não representaria grande perda, uma vez que a maior parte dos poetas que não constariam deste volume está publicada em Portugal, senão em livros próprios, ao menos em antologias. Entre as antologias merece destaque a que Carlos Nejar organizou, em 1986, para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, na coleção “Escritores dos países de língua portuguesa” e que cobriu aproximadamente o mesmo período recoberto aqui. Esse livro merece destaque não só pelo lugar institucional que advém de ter sido publicado por aquela editora naquela coleção, mas principalmente porque foi constituído por este gesto crítico: “afasta-se esta Antologia, deliberadamente, do vazio formalismo experimental e de todos os ismos, na tentativa de revelar ao leitor português o que julgo ser a melhor poesia brasileira desse período”. Em face de opções editoriais tão diversas, não espantaria que apenas sete poetas comparecessem simultaneamente entre os cinqüenta e dois do livro de 1986 e entre os dezenove do volume que viria apresentado por este texto.

[29] Para maior clareza, listam-se a seguir, com indicação da data de nascimento, os poetas que integrariam a antologia: J. P. Paes 1926; D. Pignatari 1927; H. de Campos 1929; F. Gullar 1930; H. Hilst 1930; M. Faustino 1930; A. de Campos 1931; A. Trevisan 1933; M. Chamie 1933; A. Prado 1935; R. Piva 1937; F. Alvim 1938; A. Freitas Fº 1940; B. Tolentino 1940; O. Fontela 1940; L Fróes 1941; Cacaso 1944; P Leminski 1944; A. C. Cesar 1952.