Skip to main content

Relendo Augusto de Campos

verso reverso controverso, que já na grafia de seu título nos propõe um desafio à transposição para a sintaxe vulgar, é, por que não?, um clássico de Augusto de Campos. Os estudos ali contidos foram originalmente publicados entre 1964 e 1967 e reunidos em livro mais de 10 anos depois, em 1978, pela coleção Signos (dirigida por Haroldo de Campos) da Editora Perspectiva.

Trata-se de um livro sobre o qual não faltam leituras de grande porte, assim como o campo da tradução é abundante acerca dos irmãos Campos, e mais reconhecido lá fora que aqui. Ainda assim, essa obra permanece viva, restando-nos degluti-la no que ele tem de nova. Somente desse modo é possível acompanhar a tradição poundiana/concreta no que ela tem de libertária e no que ela tem de arbitrária. Vivo, novo.

 

Vivo, reverso

A cor da fonte acompanha a capa, azuis. Esta, por sua vez, funciona como um poema concreto, abrindo-se e juntando-se ao fim por meio de um looping galopante. Trata-se de um dos casos raros em que sabemos estar diante de um bom livro só de olhar a capa. Um cavaleiro, novamente por que não?, barroco, carrega seu estandarte nos braços e sua corneta a tiracolo, com seu cavalo a apontar um caminho linear, horizontal, em direção a um espelhamento do título: verso reverso controverso.

Quando deveria se encerrar a leitura, em consequência da repetição da segunda orelha do livro, repete-se o cavaleiro, agora apontando em direção ao começo. É como se a gravura nos conduzisse em direção ao fim e nos trouxesse de volta ao início quando terminássemos de ler. Também é essa a sugestão que o espelhamento do título sustentado pelo eixo “verso” nos dá.

Na horizontal, esse espelhamento indica um alargamento desse eixo, que segue de cima para baixo, sentido de leitura consagrado no Ocidente. Quando esse alargamento ocorre, temos então o advento dos prefixos “contra” e “re”: reverso, controverso.

Ou seja, temos um percurso de leitura semelhante ao da sintaxe tradicional, linear, de cima para baixo, espacialmente disposto em um conjunto de elementos simples: um conjunto de linhas perpendiculares, meia dúzia de palavras, um pequeno texto e uma gravura, além do nome do autor (incluindo-se na leitura com sua grafia também espelhada) e da editora. Adianto que, aqui, “autor” refere-se apenas ao indivíduo que assina a obra, no caso, Augusto de Campos.

Com isso, ocorre um rearranjo de funções e disposições gráficas do livro. As orelhas, que habitualmente são usadas para a “apresentação” da obra e do autor e são vistas como o espaço mais próximo entre o livro e o leitor, tornam-se um reflexo da capa e tela para uma gravura com implicações semânticas!

A subversão do formato “livro” ou do verso propriamente dito, operada por meio desse rearranjo, indica antes uma ironia que uma negação, como seria de esperar de um poeta concreto. Vale lembrar que a vanguarda, neste caso, comportou-se organicamente, adquirindo contornos mais ou menos ortodoxos ao longo do tempo com relação ao verso.

Esse estranhamento causado pela nova funcionalidade de elementos básicos do formato de livro impresso não apenas aproxima como seleciona o leitor. Este, diante da curiosidade, ao manusear o objeto – de uma forma diferente da convencional, que prossegue página a página –, acaba por descobrir uma unidade gráfica na qual a junção de partes específicas – capa e orelhas – forma um sistema coeso que dá o teor dos textos ali contidos.

O primeiro desses textos remete à Provença e à busca pelo novo. A recuperação da poesia provençal exercita, com todas as particularidades do ofício de traduzir em Augusto de Campos, uma continuidade ao trabalho de Pound, trazendo Guilherme IX, bisneto de Ricardo Coração de Leão, para a língua portuguesa e para uma tradição que, passando por Gregório de Matos, desemboca em Oswald de Andrade e daí para a poesia concreta (via tradução).

O link para tudo isso está nos temas amor & humor, na “arte de conquistar o belo sexo” com sua devida dose de ironia e de autocrítica, que rende um punhado de traduções memoráveis e em perfeita sintonia com a proposta do prefácio: “dor por dor, som por som, cor por cor”.

Aliás, é o prefácio o primeiro passo ao livro antes dos estudos propriamente ditos, e merece atenção à parte. Em uma página e meia, Augusto dispõe o necessário para quem queira uma teoria completa da tradução. Parte do novo, prossegue pelo estabelecimento de uma linhagem tendo a novidade como referência e indica três pilares: Oswald de Andrade, Fernando Pessoa e Pound. Em comum entre eles: o outro, persona.

A invenção & rigor, nesse sentido, orientam tanto a forma de lidar com o poema como, na hora de traduzir e/ou criticar, norteiam a escolha dos poetas: “Os intraduzidos e os intraduzíveis. Os que alagaram o verso e o fizeram controverso, para se chegar ao reverso”.

Essa relação com o outro, sempre em caráter de invenção, arejada por Augusto, não à toa, é sucedida pela constelação de amor/humor da qual faz parte a poesia provençal, sobretudo de Guilherme IX.

Com relação às traduções propriamente ditas, até é possível condená-las em alguma forma rasteira de impressionismo, pelas escolhas dessa ou daquela técnica empregada. Entretanto, toda vez que o texto original foge ao “clássico”, torna-se intraduzível, o tradutor lança mão de uma experiência que visa a um impacto semelhante no leitor contemporâneo.

Assim, é notável que, em uma mesma versão, encontremos maior ou menor desempenho, mas sempre com uma indicação de que, naquela altura do texto, a versão original contém rigor e invenção.

Enquanto no original “Vers” de Guilherme IX lemos um verso ótimo em termos de ritmo, como “Anc no li diz ni bat ni but,” a versão de Campos produz um fraco “Eu não disse nem ba nem bi,”. No mesmo poema, o corte de

 

Sor, per amor Deu, l’alberguem,
Que bem es mutz,
E ja per lui nostre conselh
Non er saubutz.

acaba sendo a origem de um majestoso enjambement:

Pelo amor de Deus, o detém.
O homem é mudo.
Estamos garantidas. Ele
Calará tudo.

Na mesma linha, há outro poeta controverso do amor: Marcabru. Ele todo uma aula da arte de trovar, mais especificamente, do trobar clus:

Poesia sintética, antidiscursiva, produto de elipses e associações bruscas, o trobar clus era fechado para os ouvidos acostumados à retórica palavrosa, e oposto ao trobar plan ou plat, plano ou simples (ou chato, quem sabe). Hoje, a síntese é um dos parâmetros fundamentais do texto poético. “Concisão e precisão”, disse Maiakóvski, prescrevendo esses atributos das “fórmulas matemáticas” como única forma admissível para a poesia. Dichten = Condensare, escreveu Pound, para quem a poesia seria também uma espécie de “matemática inspirada”. Marcabru está vivo. (verso reverso controverso, p. 31)

Dos provençais, Augusto deglute ainda Bertran de Born via Pound, Bernart de Ventadorn, Peire Cardenal e Artaud Daniel, este atingindo em verso reverso controverso uma persona sem parâmetros entre os literatos ao nosso redor.

Depois disso, há uma reviravolta e acabamos nos deparando com os “cancioneiros medievais galego-portugueses”, encabeçados por Gregório de Matos, mas ainda com a presença do “amor” e do “humor”, somados agora ao “temor” no comentário sobre uma Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, montada por Natália Correia e Fernando Ribeiro de Melo.

O “temor”, no caso, é devido ao conservadorismo com relação ao sexo, que não apenas decepou grande parte da poesia (inclua-se a Academia Brasileira de Letras entre os decepadores), como ainda hoje é responsável pelo apedrejamento de mulheres no Irã.

Dos provençais a Gregório de Matos aos poetas “metafísicos”. Aqui, e ainda sem abandonar Gregório, o livro deixa de lado a discussão em torno do amor e do humor para coçar duas feridas da poesia concreta: a desumanização do poema e a conotação de um barroco “mais amplo”, colocado em oposição a um classicismo (entediante, quem sabe), como um elemento dissonante ao longo da história da poesia: “Renovadores da sensibilidade, quer no domínio da linguagem, quer no da estrutura poemática” (verso reverso controverso, p. 129).

Temos então John Donne, George Herbert, Thomas Carew, John Suckling, Richard Crashaw, Andrew Marvell e Blake (consagrado pela disposição gráfica de sua “rosa doente”), todos que lidaram de alguma forma com essa crítica de cerebralismo em detrimento do sentimento.

Ao mesmo tempo em que assumir essa dicotomia entre razão vs. coração ou classicismo vs. barroco redunda em preconceito crítico, às vezes é importante pisar em ovos para descobrir algum pinto vivo em meio às cascas, nem que isso signifique matá-los com os pés. Com sorte, não será este o nosso caso.

O que interessa, aqui, é que Augusto não foge à discussão e, tal qual os românticos com os “metafísicos”, renova-a por meio da defesa dos cerebrais estritamente em caráter de “invenção e rigor”, como um pressuposto.

Da rosa de Blake à “rosa de Marino”, do barroco à metamorfose, ou às Metamorfoses de Ovídio e sua relação com o cinema. Metamorfose, imagem, movimento, montagem. “Metamorfose” e “memória do sujeito”, vide Gonzalo Aguilar (Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada concretista, Edusp, 2005, pp. 269-306).

Aguilar encontra em Flora Süssekind e outros uma “poética da angústia”; em Augusto, que parte de Poetamenos, é “esquecida” na fase ortodoxa do “concretismo” e retorna como uma “memória do sujeito” na última produção do poeta.

Ou seja, desse ponto de vista, podemos sugerir que Augusto de Campos responde a essa “critica da desumanização” que deu origem, por exemplo, ao neoconcretismo (sic) também nos poemas que fez, que caminham do “esquecimento” à “memória”, na qual o sujeito, mesmo ausente, se faz sentir na entrelinha do poema.

Ainda de acordo com esse Barroco “a-histórico, ou supra-histórico” chegamos a Hopkins e, depois, aos simbolistas franceses – se não indico detalhadamente como esses vínculos frágeis permitem a conexão entre uma gama tão variada de poetas, épocas e estilos, é porque essa fragilidade sugere, sobretudo, uma proposta de coesão em outro nível de leitura e que se mantenha atrelada aos pressupostos de rigor e invenção, sendo estes demasiado amplos para servir de recorte à obra.

 

Novo, controverso

A busca incessante por achados linguísticos orienta as traduções e “intraduções” de Augusto da mesma forma que o grupo vanguardista de Noigandres estabeleceu seu calendário em um tempo para além do verso. E, com isso, delimitou o campo de ação para sua poesia, deixando de lado aquilo que não participava de uma ótica de invenção e customizando a história da literatura a seu favor.

A princípio, verso reverso controverso é uma reunião de trabalhos provindos de artigos publicados na imprensa, o que diz pouco das presenças e ausências dessa antologia e apela para uma leitura que ignora as aproximações entre poetas de épocas mais ou menos distantes sugeridas por Augusto no próprio livro.

Por outro lado, essa obra traz consigo o estandarte da tradução, e por essa ótica é lido e citado ao lado de O anticrítico, Linguaviagem, Invenção ou Poesia da recusa. Mas essa noção sedimenta uma fronteira entre criação e tradução, por mais que poetas concretos tenham rompido essa linha diversas vezes, Augusto, Haroldo e Décio à frente. Essa leitura representa muito pouco no universo de metamorfose da literatura contida nesse livro, dos provençais a Rimbaud.

Não obstante, é notável que ao lado desse estandarte figure um texto que foge ao tema da tradução, embora não fuja à obsessão de Augusto pela metamorfose. Trata-se do último estudo – “um dia, um dado, um dedo” –, que fala sobre literatura popular.

Esse capítulo não deixa de ser uma resposta, em 1967, àqueles que, por este ou aquele motivo, haviam-se desligado, mas não completamente, da poesia concreta para resgatar o sujeito desaparecido na ortodoxia do movimento. O principal é Ferreira Gullar, que escreveu seus cordéis cepecistas no início dos anos 1960, depois de ter sido concreto, depois de ter sido neoconcreto (sic).

Justamente o último capítulo, que não fala explicitamente de tradução – todo contato com o outro é uma forma de traduzir –, traz consigo uma crítica a “alguns poetas urbanos” que, abundantes de sujeito, por assim dizer, tentaram fazer uma correção ideológica em certa literatura popular.

Há outros fluxos de raciocínio sedutores ao longo do livro, a história – embora todos os capítulos tenham sido publicados em intervalos temporalmente próximos, a apresentação dos poetas ali contidos é relativamente sincrônica –, ou o amor e sua relação com o humor, que permite a Augusto colocar em uma mesma linhagem Guilherme IX e Oswald de Andrade. Entretanto, há sempre um elemento dissonante nessas e em outras tentativas de dar unidade ao livro.

O que se mantém constante é justamente a dissonância, que caracteriza na visão de Augusto a poesia de invenção. O que a torna viva, diferente. Quando o poeta diz, logo no prefácio, que só interessa o que não é dele, deixa implícito que não é TUDO o que não é dele que interessa.

Em termos do próprio Augusto, é essa diferença que separa o Barroco do Classicismo, que possibilita ao mínimo da poesia concreta estar ao lado do múltiplo da poesia barroca. É o temperamento autossubversivo da poesia que a torna viva.

E é também nesse ponto de contato que sentimos a arbitrariedade do método, não do que é mencionado, mas do que é omitido. O mesmo tipo de omissão que levou Haroldo de Campos a discutir o “sequestro do barroco” na Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido.

Essa polêmica, que tem em seu histórico as críticas de Afrânio Coutinho a Candido pelo mesmo motivo, encontra em Haroldo – baseado em estrangeiros como Roman Jakobson, Walter Benjamim, Hans Robert Jauss e Jacques Derrida – uma crítica que perpassa as questões do nacionalismo e da “identidade nacional”.

Como se sabe, o cânone estrangeiro da poesia concreta, e também estrangeiro à tradição europeia, quase exclusivamente francesa, de nossas letras e movimentos literários, foi motivo de ira para os mais ufanistas.

E, para além disso, a discussão atingiu sua polarização em Antonio e os irmãos Campos. O estudo de Candido segue em termos de “manifestações e sistemas literários”, que dependem da mútua dependência entre autor, obra, público, consolidada pela formação do Estado, e consequentemente responsável pela criação de uma identidade nacional.

A partir dessa leitura, Augusto sustenta uma lógica de inclusão e exclusão de textos que traz consigo sua forma de autoridade: “formação”. Mas aí fica a pergunta: a customização da história da literatura de forma a culminar na poesia concreta, a partir da escolha de poetas supostamente “vivos”, “inovadores” para seu paideuma, não possui esse mesmo poder?

Candido, ao desconsiderar Gregório de Matos em sua Formação, justifica-se pelo fato de que na época e no local em que Gregório viveu não havia um Estado nacional e que isso exime o poeta de ter “formado” a literatura brasileira.

No caso de Haroldo de Campos, o conceito de literatura brasileira é suplantado pelo de paideuma, no qual o território e o período histórico interessam apenas para fins arqueológicos.

A quem interesse investigar, sem intermediários, a forma como Augusto confronta, indiretamente, essas situações dicotômicas das presenças e ausências da poesia concreta e de si mesmo, e a forma como confronta a própria arbitrariedade, a crítica de sua crítica, um passo largo está na visita constante a essa obra que é, sobretudo, um livro que torna visível a entrelinha do autor – da capa à orelha, da cor da fonte à proximidade entre os trabalhos ali reunidos.

O livro de Augusto de Campos toma o verso por leitmotiv, mas não qualquer verso, apenas aquele que se volta para si mesmo, que se espelha – como o título, na capa, é espelhado na orelha – para se ver de fora, reconhecendo-se ao avesso (branco sobre negro, em negativo), pela diferença, pelo que o torna controverso.


 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.