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A vida e a pós-vida de Ezra Pound na Itália

Ezra Pound fotografado por Henri Cartier-Bresson

 

Em 24 de maio de 1945, o famoso poeta norte-americano Ezra Loomis Pound encontrava-se preso em uma cela especial – uma jaula, na verdade, no United States Army Disciplinary Training Center (USDTC), em Metato, ao norte da cidade de Pisa.

A prisão do USDTC – que jornais americanos apelidaram como sendo “o repositório dos sedimentos sujos de nossas tropas no teatro mediterrâneo” era usada para encarcerar os militares dos EUA que tinham perpetrado crimes de guerra sérios e estavam aguardando o julgamento da corte marcial ou a transferência para uma instituição carcerária nos EUA ou mesmo sua própria a execução.

A maioria dos prisioneiros era abrigada em tendas, mas os que eram suspeitos de portarem tendências homicidas, considerados um perigo para os outros, os passíveis de tentativas de fuga ou condenados à morte, eram detidos nas assim chamadas “celas de observação”, conhecidas pelos presos como “celas da morte”. O destacamento de número 7103.a, da Companhia Disciplinar de Treinamento, comandada pelo tenente coronel John  L. Steele,  graduado da Harvard University,  cuidava de todo o  acampamento.

Pound era o único civil nessa prisão. Instruções das autoridades mais altas rezavam que ele devia ser colocado “sob vigilância especial e permanente, para evitar a fuga ou o suicídio. Nenhum contato com a imprensa, nenhum tratamento privilegiado”.

De acordo com essas ordens, Pound foi colocado numa das “celas da morte“ do acampamento. Eram gaiolas (ou jaulas) externas de malhas de aço de 18x18ms, abertas para serem vistas por todos os lados e cobertas, no alto, por uma lâmina de metal. Lâmpadas iluminavam as gaiolas a noite toda e seus ocupantes eram mantidos em isolamento, com guardas proibidos de lhes dirigir a palavra. A jaula de Pound havia sido reforçada com o tipo de malha metálica usada para fixar as pistas de aviões nos campos de aviação de zonas bélicas temporárias. A explicação, dada posteriormente, era que isso havia sido feito para frustrar as tentativas dos fascistas para resgatá-lo.

Para evitar tentativas de suicídio, os presos não podiam usar nem cintos, nem cordões de sapatos, nem camas e, por isso, dormiam como podiam, no chão de laje de concreto, com cobertores. Eram alimentados uma vez por dia e usavam uma lata, colocada num dos cantos da jaula, para suas necessidades. Uma vez a cada três dias, Pound era levado para tomar uma ducha e andar no recinto dos chuveiros. Nenhum livro ou leitura eram permitidos, além da Bíblia.

Um dos vizinhos de cela de Pound era um soldado que, supostamente, já havia sido julgado e condenado à morte e que, desesperado, blasfemava de modo contínuo em voz alta. Ezra Pound não podia saber ao certo o motivo pelo qual seu vizinho estava tão agitado. Os guardas, que também não conheciam os detalhes da prisão de Pound, então com 60 anos, que era mantido como um perigoso delinquente, estavam intrigados, porque a conduta dele, embora errática e, às vezes, estranha, era pacífica, gentil e não ameaçadora. Depois de duas semanas nesse ambiente, por volta de 7 de junho, Pound – ao que tudo indica – sofreu um colapso nervoso. O calor de junho, na Toscana – cerca de 32 graus Celsius –, as noites um tanto frias, a poeira, a falta de privacidade e o isolamento o haviam abalado.

 

PERIGOSO

 Alguns anos mais tarde, quando Pound teve ocasião de falar sobre sua prisão em Pisa ele disse: “ Sim, acreditavam que eu era uma pessoa perigosa, imprevisível, e eu tive a impressão que, de fato, os assustava. Às vezes notava que os guardas me olhavam como juízes. Eu traduzia o olhar deles como sendo “ Gorila, fique em sua jaula”. Quando os soldados estavam de folga, eles vinham me olhar com surpresa. Às vezes me atiravam um naco de carne, ou algum doce, como se eu fosse um animal. O velho EZ: “uma visão excitante, fascinante”. Com efeito, era uma figura mais triste do que perigosa. Das barras de sua jaula, ele conseguia ver longe, através do ar quente cintilante, as baixas colinas perto de Pisa, cobertas de pinheirais. Pound havia visto esses mesmos morros em 1898, quando, aos 13 anos, havia acompanhado sua tia numa viagem à Itália. Mais tarde, em 1932, havia visitado os mesmos lugares com Ernest Hemingway e sua mulher, num longo giro pela península italiana. Seu isolamento, agora, tornava-o melhor observador do ambiente que o envolvia e com isso foi perdendo a arrogância enérgica que o sustentava e sua autoconfiança otimista. Como ele escreveu em um dos Cantos:

Quando a mente balança qual lâmina de grama

Uma pegada de formiga poderá salvá-lo

A folha do cravo cheira e tem sabor de flores ácidas.

Mesmo assim, vivendo nessas terríveis condições, o poeta continuou a escrever, rabiscando alguns dos poemas conhecidos em sua totalidade como Cantos Pisanos em poucas folhas de papel higiênico. Ele foi mantido na gaiola de malhas de aço por cerca de três semanas, até que sua condição degradada se tornou inevitavelmente evidente. Tornou-se apático, comendo pouquíssimo e mal conseguindo sair do cobertor. Em 14 e 15 de junho o psiquiatra do acampamento o visitou e detectou sinais de perda de memória, de depressão e de desequilíbrio geral. No passado, Pound havia mostrado pouco interesse pela psiquiatria, e costumava chamar seu grande expoente, Sigmund Freud, de “Sigmund, o charlatão”, acrescentando que “ Graças a Freud e a Dostoiévski temos agora um exército de mulherzinhas, extremamente preocupadas com sua vida emocional insignificante…”. Mas foi graças aos psiquiatras que ele foi transferido para uma “Tenda piramidal”, isto é, uma espécie de tenda onde eram colocados os oficiais acusados de crimes e lhe foi então permitido ler bem como foi facultada a visita de sua esposa e, até mesmo, o uso ocasional da máquina de escrever da enfermaria. Na tenda ele continuou a escrever os Cantos Pisanos e a traduzir do chinês os trabalhos de Confúcio.

Em certo sentido, Pound tornou-se um tipo sui generis de residente do acampamento. Ele escolhia seus próprios exercícios, fingia duelar e jogar tênis com um velho cabo de vassoura e se mostrava gentil e amigável com os guardas, que retribuíam sua atenção se mostrando benevolentes em relação a ele. Ele havia dito ao pessoal médico que cuidava dele que nunca seria julgado por traição pelo governo, pois “eu conheço gente graúda em Washington” e, quando deixou o acampamento para ser levado a Roma, e dali para Washington, ele fez um sinal com a mão em seu pescoço, dando a entender que alguém ia ser enforcado. Ele ficou detido no acampamento até 15 de novembro, quando foi embarcado num avião para Washington, via Roma, para enfrentar as acusações de traição à pátria.

Quem seria esse irreconhecível Ezra Pound, tão distante das reputadas antologias de poesia onde o encontramos hoje? Por que ele foi preso em uma jaula na Toscana, acusado pelo crime de alta traição pelos Estados Unidos?

 

DOROTHY SHAKESPEARE E OLGA RUDGE

Apesar de seu casamento, em 1914, com Dorothy Shakespear, Pound nunca deixou de se interessar para outras mulheres e costumava associar a sedução à criatividade artística. Dorothy sabia das aventuras extraconjugais do marido, mas resolveu não as levar em consideração. No outono de 1922, quando Pound estava com 36 anos, conheceu a violinista americana Olga Rudge e, mais tarde, iniciou uma relação amorosa com ela, que durou até a morte dele, em 1972. Ela era uma concertista famosa que costumava trabalhar com o compositor italiano Ildebrando Pizzetti e a pianista Renata Borgatti. Pound, que, de vez em quando, trabalhava como crítico musical, escreveu uma resenha de um dos concertos de Olga, mas os dois só se encontraram formalmente em 1923, na casa da dramaturga e escritora Natalie Barney.

Embora Pound e Rudge frequentassem círculos sociais diferentes, encontraram-se sexual e intelectualmente e Rudge chegou mesmo a tocar algumas composições musicais de Pound. Em 1924, os Pounds, que não eram felizes em Paris, resolveram mudar-se para a Itália. Em fins de 1924 e começos de 1925 eles estavam na Sicília, viajando com o poeta irlandês W.B. Yeats e sua mulher Georgie Hyde-Lees, mas estes, o casal Yeats, acatando a recomendação de Pound, dirigiram-se para o norte e se estabeleceram em Rapallo, uma cidade na Riviera da Ligúria, próxima de Gênova. A cidadezinha de Rapallo, em virtude de seu clima e da atmosfera amistosa, havia, desde muito, se tornado um lugar favorito de artistas e escritores. Entre os que viveram algum tempo lá, no século XX, estão Hemingway, Yeats, T.S. Eliot, Gerhardt Hauptmann, Max Beerbohm, e James Laughlin.

Pound, que havia vivido antes, na Itália, disse a um amigo: “a Itália é o lugar onde eu começo as coisas”. Pouco depois, Pound e sua mulher Dorothy alugaram um apartamento no ático do Palazzo Baratti, um edifício imponente à beira-mar (a entrada para o edifício era pela rua de trás, Via Marsala) e lá viveram até 1944. Yeats, que havia se estabelecido em Rapallo em 1928, recorda: “Ezra Pound… um homem com quem eu discutiria mais do que com qualquer outro se não houvesse o afeto que nos une, viveu durante anos em cômodos que se abriam para um telhado de laje, em frente ao mar. Durante nossa última conversa, ficamos sentados nesse telhado que é também um jardim, discutindo esse imenso poema “Os Cantos” do qual 27 fragmentos já foram publicados”.

Olga Rudge foi a Rapallo encontrar Pound. E sua ligação amorosa proseguiu, apesar de ele continuar vivendo com a esposa. Olga ficou grávida e, em 9 de junho de 1925, ela deu à luz a uma menina, Mary Pound (mais tarde, Mary de Rachelwiltz). Para dar à luz discretamente, Olga viajou até Bressanone, no Tirol meridional, e deixou a criança na aldeia de Gais, aos cuidados de uma mulher de fala alemã cuja filha havia morrido. A mulher concordou em cuidar de Mary por 200 liras por mês e Mary ficou com ela até os dez anos.

            Finalmente, Dorothy, agastada pelo comportamento do marido, deixou Pound, após uma discussão violenta, e foi passar um tempo com a mãe, em Siena. Mais tarde viajou para o Egito e lá ficou, de dezembro de 1925 até março de 1926. Ela deve ter tido um caso com um egípcio, pois ficou grávida. Reuniu-se a Pound em Paris, em junho de 1926, por ocasião de uma ópera escrita por ele Le Testament de Villon, mas não o acompanhou quando ele deixou a França para retornar à Itália. Quando Dorothy deu à luz, foi Pound quem a levou ao Hospital Americano de Paris, onde Omar Shakespear Pound nasceu, em setembro.  Aparentemente, tanto Dorothy quanto Olga não possuíam a paciência e a resistência que as mães costumam ter para cuidar dos filhos, de modo que o pequeno Omar ficou entregue à mãe de Dorothy, Olivia, para que dele cuidasse, na Inglaterra. Ela cuidou dele até que ele foi enviado para um internato.

Enquanto esteve sentimentalmente ligada a Pound, Olga Rudge viveu em Veneza, numa pequena casa que o pai lhe legara, em 1928. Pound a visitava, quando ele podia sair de Rapallo. Era uma viagem de 168 milhas só de ida, e Pound chamava Veneza de “Ninho escondido”.  Em 1930, Rudge alugou um apartamento na vizinhança de Sant’Ambrogio, um lugar nas colinas, sobre Rapallo, apartamento que se chamou Casa 60, por causa da numeração da rua. Rudge viveu descontinuamente ali, de 1930 a 1985, e lá viveram também Ezra e Dorothy, de 1944 a 1945. O apartamento de Rudge situava-se no terceiro andar do prédio onde, no primeiro piso, havia uma empresa com aparelhagem para extração de azeite. Hoje, a casa, que pertence a particulares, é servida por ônibus e outros meios de transporte, mas – na época – só podia ser alcançada a pé, depois de uma caminhada a meia hora de Rapallo, em subida, em uma estrada apertada, e não contava inclusive com energia elétrica. Rudge continuou cuidando de sua carreira musical. Em fevereiro de 1927, ela esteve com o ditador italiano Benito Mussolini, que também era um bom violinista e ambos discutiram as diferenças entre música para violino e música para piano. A partir de 1931, ela e Pound organizaram e atuaram nos Concerti Tigulliani, em Rapallo. Essa iniciativa permitiu a ambos promover a música do compositor veneziano Antonio Vivaldi, na época meio esquecido, e apresentar os quartetos de cordas de Bela Bartok ao público italiano, bem como apresentar-lhe composições musicais do próprio Pound.

Devido à crítica situação econômica dos anos 1930, que – obviamente – repercutiu também no âmbito musical, Olga aceitou, em 1933, atuar em Siena, como Secretária da Academia Musicale Chigiana, um centro de estudos musicais avançados, fundado em 1931 pelo conde Guido Chigi Sarracini. Olga, com a assistência ocasional de Pound, começou a transcrever partituras originais de Vivaldi, identificando mais de 300 novas peças e – em 1938 – fundou o Centro Studi Vivaldiani, dentro da Accademia Chigiana. No período, Pound, além de ser um grande poeta, um bom crítico literário e um estudioso e compositor de peças musicais, ainda se julgava um expert em economia política e um monetarista, crenças essas que o levaram a ver conspirações que visariam a controlar a produção e as finanças nos países capitalistas… e, por isso, alinhar-se com o fascismo, sistema político que – em termos teóricos – podia pôr um freio aos excessos do livre mercado. Ele foi ficando obcecado com o suprimento de dinheiro e com as taxas de juros e passou a atacar a elite de Wall Street que, segundo ele, havia causado a depressão e estava ameaçando a recuperação econômica dos EUA. Como muitas das principais figuras do mercado financeiro eram de origem judaica, Pound passou então ao antissemitismo. Finda a Segunda Grande Guerra, Pound declarou que sua intenção era, na época, a de educar Mussolini em questões econômicas e, mais tarde, ele confidenciou ao poeta Allen Ginsberg: “Meu pior erro foi aquele tolo preconceito suburbano do antissemitismo – ele pôs tudo a perder…”. Giuseppe Prezzolini, um escritor italiano que viveu na Itália fascista e nos EUA, acreditava que “tio Ez(ra)” sabia menos sobre o fascismo do que os fascistas sabiam sobre o poeta.

 

SIMPAZANTE DO FASCISMO

A visão da economia que tinha Pound vinha dos escritos de Silvio Gesell, um economista alemão, que – por um breve tempo – havia sido Ministro das Finanças da República Esquerdista da Bavária, e do major Clifford H. Douglas, um inglês que popularizou as ideias de uma filosofia econômica chamada Crédito Social. Um dos principais postulados dessas crenças era que o dinheiro devia ser taxado regularmente, de maneira a diminuir o incentivo à sua acumulação. A única implementação parcial em larga escala das políticas monetárias do Crédito Social ocorreu na província de Alberta, no Canadá, entre 1932 e 1935.

Em seus escritos sobre economia – O ABC da Economia (1933), O Crédito Social e Para que serve o dinheiro? (1935), Pound se referia aos banqueiros como sendo tubarões e os acusava de estarem causando o declínio da democracia americana; o presidente Franklin Delano Roosevelt era pintado como um fantoche, próximo a um ditador que os EUA jamais tiveram. Conforme explicava Pound: “a História, vista por um economista monetarista, é um conflito contínuo ente produtores e não-produtores, e aqueles que tentam viver inserindo um sistema falso de contabilidade entre os produtores e sua recompensa justa… Os usurários atuam por fraudes, falsificações, superstições, costumes e, quando esses métodos não funcionam, eles desencadeiam uma guerra. Tudo depende dos monopólios e os monopólios em si dependem da grande ilusão do monopólio monetário”. Com isso, Pound denunciava a cooperação entre os financistas e os governos que lhes permitiam –acreditava ele – defraudar o “monopólio monetário” público. Monopólios não podem existir sem a aprovação dos governos e os monopólios financeiros são parasitários, uma vez que eles não produzem bens tangíveis.

Na Europa de 1930, com ditadores instalados na Alemanha e na Itália, Pound reparou que com a direção do Estado e sob o controle totalitário, muitas vezes, dos bancos e dos negócios, o desemprego e a inflação haviam baixado, enquanto haviam aumentado os gastos públicos na educação, saúde e outros serviços.

 Embora não fascista de caderneta, Pound simpatizava com as teorias e com muitas práticas fascistas. Por haver estudado, nos anos 1920, as teorias do etnólogo alemão Leo Frobenius, que acreditava que a cultura seria o produto de certas raças, Pound concluíra que Mussolini era a encarnação genuína da cultura italiana: ele havia derrubado os plutocratas gananciosos, transformado a política numa espécie de arte, e apoiado o renascimento da cultura.  Ele declarava: “Mussolini disse a seu povo que a poesia é uma necessidade do Estado, e – nisso – exibiu um nível de civilização em Roma, que é superior ao de Londres ou ao de Washington”. Pound ficou de olho em Mussolini por bastante tempo, esperando valer-se dele para divulgar suas ideias econômicas e quem sabe, fazer com que fossem adotadas. Um mês após a posse de Mussolini, (23/04/1923), Pound pediu uma audiência com ele, mas ela lhe foi recusada.

Mais tarde, em fevereiro de 1927, Olga Rudge deu um concerto na residência de Mussolini. Como foi dito, ele, Mussolini, era um violinista competente e gostou da iniciativa. Uma informação contemporânea de Younstown (Ohio), onde nasceu Rudge, reza que ele tocou com ela nesta ocasião, afirmando apreciar “sua técnica e sentimento musical e afirmando também ser raro encontrar tamanha profundidade e precisão de tom, especialmente, em uma mulher”. Foi então que Pound teve a ideia de que Mussolini poderia ser levado a se tornar um promotor dos escritores e artista de vanguarda.

Em dezembro de 1932, ele solicitou de novo uma audiência, anexando a seu pedido uma cópia de um roteiro sobre o nascimento do fascismo; essa tentativa também não deu certo, mas alguns dias depois Pound solicitou de novo outra audiência, com a intenção de mostrar a Mussolini um artigo que ele havia escrito como resposta a uma crítica às ideias de Mussolini, publicada por um jornal americano, ideias essas expostas na conversa de Mussolini com Emil Ludwig. Dessa vez Pound foi atendido e no dia 16 de fevereiro de 1936 ele teve sua audiência com o ditador. Pound mostrou a Mussolini alguns dos Cantos e ficou deliciado quando Mussolini achou os poemas “ divertidos”; de fato, ele imortalizou o comentário informal no Canto 41, escrevendo:

“Ma questo”, disse o Boss, “ è divertente”, acertando o alvo, antes que os estetas o tivessem feito…”

Pound falou também de seus estudos chineses e do conceito de Confúcio que, para chegar a formular definições corretas e clarificar suas próprias ideias, era necessário “colocar em ordem as palavras”. Mussolini não entendeu o que Pound estava dizendo e lhe perguntou: “Por que você quer pôr suas ideias em ordem?” Pound achou esta resposta genial. Pound ficara fascinado pelo Duce e, de tempos em tempos, enviava-lhe cópias de seus escritos, juntamente com propostas de mudanças políticas e econômicas. Num livro de 1935, Pound comparava o Duce a Thomas Jefferson e declarava: “Não acredito que nenhum julgamento de Mussolini possa ser válido, a não ser que se comece por sua paixão pela construção. Tratem-no como ARTIFEX e todos os outros detalhes cairão por terra…A revolução fascista foi em favor da preservação de certas liberdades e da cultura…”.

Em julho de 1935, Pound enviou a Mussolini uma cópia do seu Jefferson e/ou Mussolini, junto com a proposta da fundação de uma nova Liga das Nações. O secretariado de Mussolini comentou assim a proposta: “ Esta é uma proposta excêntrica, pensada por uma mente obnubilada, completamente fora da realidade. Tendo em vista o afeto que Pound nutre pela Itália e o entusiasmo que o motiva, é suficiente fazer-lhe saber que sua interessante proposta está sendo estudada…”. Uma carta de Pound, que o Duce leu, datada de 10 de maio de 1943, falava das reformas monetárias propostas por Gesell e Douglas. O Duce pediu a seu staff um briefing sobre o assunto, mas diante das caóticas condições do período da guerra, a coisa não foi adiante. Está claro que os fascistas nunca pensaram em Pound como fonte de ideias políticas a serem tomadas a sério, mas sim como um tipo de propaganda útil contra seus inimigos.

Embora sempre fosse excêntrico e não convencional, os velhos amigos que visitavam Pound em Rapallo começaram a achar que, em meados da década de 1930, a personalidade de Pound estava visivelmente se deteriorando. Ele se tornou intolerante com os que não concordavam com ele e também egoísta, achando que não apenas sua poética, mas também suas ideias econômicas e políticas mereciam mais atenção. James Joyce, entre outros, achou que Pound poderia estar doente; o poeta inglês Robert Fitzgerald, que estava bastante familiarizado com os escritos de Pound nesse período, declarou que Pound: ”tem o tom de uma pessoa que está fora de si …. O que antes parecia de alta qualidade e olimpicamente engraçado começou a parecer infantil e fora de propósito. Apenas um homem trabalhando em solidão, distante de qualquer crítica ou ignorando-a poderia não ter visto a pobreza do argumento”.

 

CONTRA A GUERRA

Em abril de 1939, Pound, que havia ido à Inglaterra para o funeral de sua sogra, decidiu ir também a New York, na esperança de seguir depois para Washington e falar com o presidente dos EUA para convencê-lo a não se envolver com a guerra incipiente na Europa. Em Washington não viu o presidente, mas encontrou apenas alguns deputados e senadores que receberam friamente suas ideias. Em junho de 1939, ele retornou, então, para a Itália e continuou sua campanha para fazer o possível para impedir aos EUA de entrar no conflito europeu iminente, alegando que os financistas eram responsáveis pela guerra incipiente e que o conflito beneficiaria apenas os banqueiros internacionais.

Poucos meses após a entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial (junho de 1940), Pound começou por própria conta a escrever scripts para serem divulgados por rádio aos EUA, que eram lidos em inglês por funcionários do Ministério da Cultura Popular da Itália, mesmo a despeito do SIM (Serviço de Inteligência Militar Italiano) que considerava Pound um possível espião. Em 1941, teve, então, permissão para gravar seus próprios discursos que eram irradiados duas vezes por semana, de 21 de janeiro de 1941 a 25 de julho de 1943, o dia em que Mussolini foi afastado pelo rei e levado à prisão. Ao todo, Pound enviou mais de 125 discursos radiofônicos, com 10 a 15 minutos de duração, e, de acordo com o câmbio da época, isso lhe rendia de $ 15 a $ 20 por discurso. Era sua única fonte de renda nesse período, pois nenhum direito autoral podia ser enviado a ele em período de guerra. Pound tinha o hábito de preparar seus discursos em casa e praticá-los com Olga como ouvinte, na Casa 60. Uma vez por mês ia a Roma e os gravava em discos, nos estúdios do Ministério da Cultura Popular (a propaganda, a censura da imprensa também cabiam a esse Ministério), em Via Veneto, 56, a poucos passos da Embaixada dos EUA, onde ela está agora. Seus discursos cobriam um grande número de temas: política, economia, cultura, história, e neles havia inserções de reminiscências pessoais e referências poéticas. Suas transmissões folclóricas e avunculares, que faziam uso de pausas e mímicas verbais eram eficazes como performance, mesmo que o fluxo dos assuntos pudesse criar confusão no ouvinte.

Um de seus biógrafos, Charles Norman, assim escreve: “Com seu dom para a mímica, Pound proferiu uma porção de discursos com o acento de certas regiões da América: se se tratava da região dos yankees, era mais nasal do que qualquer coisa que se tivesse ouvido ao norte de Boston; se fosse dirigido ao oeste, tinha um acento mais folclórico (folksy), e mais arrastado do que jamais se ouvira a oeste do Missisipi; isso, em si, já significava muito. Mas para a Pensilvânia o acento era vituperativo, com certo grau de abuso que parecia impossível encontrar em um homem com sua educação. Em suas apresentações via rádio, Pound geralmente louvava Mussolini, advogava os méritos do sistema de Crédito Social Monetário, e atacava o FDR, Churchill, o Banco da Inglaterra e mesmo alguns compositores de quem não gostava, como Puccini e Beethoven.

As emissões de Pound, cuja abertura era: “Europa chamando! Ezra Pound vai falar” eram parte do programa chamado A Hora Americana, dirigido pelo romano-americano Giorgio Nelson Page, descendente de uma importante família da Virgínia a qual tinha entre seus membros, um almirante da Confederate Navy, o general Robert E. Lee e o autor e embaixador na Itália Thomas Nelson Page.  O pai de Page era um executivo de um banco, em Roma, e a mãe dele era italiana. Ele renunciou à cidadania americana em 1933 e se tornou mais fascista que os fascistas, chegando a ser o funcionário encarregado da imprensa estrangeira na Itália. O Ministério da Cultura Popular gostava da segurança arrogante, folclórica e desembaraçada com que Pound declarava ter a América suficientes problemas internos ela mesma para se intrometer nas querelas europeias. Mas muitos de seus amigos, nos EUA, achavam suas falas no rádio confusas, bombásticas e muito cruas e – às vezes – cheias de ódio. Elas eram quase sempre seguidas de música clássica. Ironicamente, uma de suas falas mais venenosas, a de 18 de maio de 1942, que apreciava as teorias racistas de Hitler, foi acompanhada pela peça Mefistófeles, de Arrigo Boito.

 

TRAIDOR DA PÁTRIA?

Depois de Pearl Harbor e da declaração de guerra aos EUA, feita pela Itália em 11 de dezembro de 1941, a posição legal de Pound mudou drasticamente: já não era mais a de um cidadão privado que exercia seu direito de livre expressão, mas a de um americano vivendo em território inimigo, inimigo a quem poderia estar ajudando. Diferentemente do que ocorreu com outros estrangeiros inimigos na Itália, ele não foi expulso, nem preso, mas continuou vivendo na Itália, em sua rotina de passar, todo mês, três semanas em Rapallo e uma semana em Roma, gravando seus programas e frequentando seus amigos, como o compositor Giancarlo Menotti, o filósofo George Santayana, Olivia Rossetti Agresti, neta do poeta Dante Gabriele Rossetti, e o conspícuo jornalista inglês Reynold Packard. A única mudança que houve na irradiação das falas depois de Pearl Harbor foi uma introdução lida por um locutor da rádio: “A Rádio italiana, atuando em concordância com a política fascista de liberdade intelectual e livre expressão de opinião pelos que são qualificados para tanto, seguindo a tradição da hospitalidade italiana, ofereceu ao Dr. Ezra Pound o uso do microfone, duas vezes por semana. Entende-se que a ele não será pedido que diga nada que possa contrariar sua consciência ou que seja incompatível com seus deveres de cidadão dos EUA”.

Pound achava que isso o imunizaria contra qualquer indiciamento criminal nos EUA, mas se enganou. Ele asseverou, inclusive, haver tentado, diversas vezes, deixar a Itália e voltar aos EUA, mas seu retorno teria sido impedido tanto pela Embaixada Americana como por outras instituições. É difícil averiguar se essas tentativas foram ou não realizadas. De qualquer maneira, a decisão de Pound de permanecer na Itália pode ter sido influenciada pela situação de seus pais, que viviam em Rapallo e que, se ele partisse, no poderiam acompanhá-lo:  o pai, de 83 anos, tinha uma fratura na bacia e há dois anos não saía de casa, e a mãe tinha 82 anos.

Contrariamente ao fato de que pouquíssimos americanos poderiam ter estado interessados nos discursos bissemanais de Pound, o U.S. Foreign Broadcasting Monitoring Service estava ouvindo-o e mais: gravando-os e traduzindo-o, nem sempre em termos corretos. Em 25 de julho de 1943, o Grande Júri Federal, em Washington, indiciou Pound como traidor. A acusação afirmava que Pound: “em plena consciência e vontade, adere traiçoeiramente aos inimigos dos EUA, a saber, o Reino da Itália”.

Pound ficou sabendo da acusação em poucos dias e, em 4 de agosto de 1943, enviou uma carta à Advocacia Geral dos EUA, dirigida a Francis Biddle, proclamando sua inocência: “Eu não falei em relação à guerra, mas em protesto contra um sistema que cria uma guerra atrás da outra… [EU] não falei às tropas, nem sugeri que as tropas deveriam se amotinar ou rebelar; a ideia do livre discorrer torna-se uma zombaria se não inclui o direito de irradiar por rádio”. A carta não foi respondida pela Advocacia Geral. Nesse meio tempo, em julho de 1943, Mussolini tinha perdido o poder e fora preso. A Itália havia mudado de lado. Em oito de setembro de 1943, Mussolini, que havia sido libertado pelos comandos de Hitler, constituiu uma república no norte da Itália, chamada Repubblica di Salò, nome de um lugarejo às margens do Lago de Garda, onde o Duce mantivera um seu escritório.

Pound, que havia estado em Roma em 25 de julho, deixou apressadamente a cidade e partiu para o Tirol, onde morava sua filha. Depois de pouco tempo, viajou com ela para Rapallo e, junto com Dorothy, abandonou seu apartamento e foi para a Casa 60, juntamente com Olga. Obviamente as duas mulheres, a esposa e a amante, não podiam se dar bem, mas os apertos da guerra não deixaram outra escolha a não ser ir levando. Pound, que considerava uma traição a ação contra Mussolini e sua prisão, apoiou a causa da criação da República de Salò e continuou, ocasionalmente, a irradiar seus discursos. Mais importante do que isso, ele começou a escrever roteiros para outros artigos em jornais e panfletos de propaganda, recebendo 8.000 mil liras por mês. Um desses panfletos, publicado em italiano em 24 de março de 1944, tinha o título de: “Os Estados Unidos, Roosevelt e as Causas da Guerra atual”. Pound estava em correspondência frequente com o ministro do Ministério da Cultura Popular, Fernando Mezzasomma, a quem não apenas ajudava com conselhos de propaganda, mas junto a quem também insistiu para que republicasse livros de que ele gostava, incluindo suas traduções de textos filosóficos chineses.

De volta aos EUA, em 24 de janeiro de 1945, Biddle informou ao Secretário da Guerra Henry L. Stimson que os EUA ainda estavam interessados em prender Pound e em interrogá-lo, tendo em vista a acusação do Grande Júri. Em 9 de fevereiro, Stimson fez chegar uma cópia da carta ao general Jacob L. Dever que, na época, era o Comandante-em-chefe do Teatro de Operaçãos Norte-Africano. Devers fez circular a informação a seus comandos subordinados e relatou isto a Washington. Contudo, nesse momento das operações, com os Aliados avançando a custo na Itália Central e do Norte, lutando contra os alemães em retirada lenta, prender Pound não era alta prioridade para o exército dos EUA. Em abril, tropas americanas aterrissaram na Riviera italiana e por volta do fim do mês haviam tomado Rapallo. Em 28 de abril, Mussolini, sua amante Clara Petacci e alguns de seus fiéis, entre os quais o amigo de Pound, o ministro Mezzasomma, foram fuzilados pelos partisans. Em 2 de maio o comando alemão na Itália concordou em render-se. Pound iria comentar o horrível fim de Mussolini, mais tarde, no Canto 74:

 

“ A enorme tragédia do sonho nos ombros vergados dos camponeses…

Assim Ben e Clara, em Milão

Pelos pés, em Milão”

 

Pound sabia que ele também deveria se render, e, na manhã de dois de maio, ele foi a pé da Casa 60 até o destacamento do exército norte americano em Rapallo, com o intuito de se entregar. Como no posto de comando ninguém sabia quem ele era, nem cuidava de sabê-lo, ele retornou à colina onde se situava sua casa. Na manhã seguinte, enquanto Olga estava fora cuidando de arranjar comida e Dorothy havia ido visitar sua sogra, alguns partisans, acreditando haver uma recompensa por quem capturasse Pound, invadiram a Casa 60 e levaram o poeta consigo, para Zoagli, um lugarejo próximo onde havia um comando. Quando um dos oficiais do posto informou aos capturadores que não havia recompensa alguma, Pound foi solto, mas conduzido com Olga, que o havia alcançado, ao comando americano na cidade próxima de Lavagna.  Lá Pound foi reconhecido ao se apresentar dizendo: ” Eu sou Ezra Pound e creio que vocês estejam me procurando”. Dessa vez ele foi detido e transportado para Gênova, no escritório do Corpo da Contra Inteligência dos EUA. Lá, o agente do FBI, Frank L. Amprin, que havia recebido ordens do diretor do FBI, J. Edgar Hoover, para reunir indícios para o processo de traição de Pound, passou a interrogá-lo. Olga, contra quem nada havia, foi solta e levada de volta à Casa 60, em Rapallo. No dia cinco de maio, Pound pediu permissão para enviar um telegrama ao presidente Harry S. Truman, para oferecer-lhe ajuda e conselho para negociar a paz com o Japão. Obviamente, o pedido foi negado.

 No dia oito de maio, ele disse a um repórter do Philadelpia Record, repórter que havia conseguido chegar até Pound no conjunto militar onde ele se encontrava, que “Hitler havia sido “uma Joana d’ Arc, um santo” e que Mussolini havia sido “uma personalidade imperfeita que havia perdido a cabeça”. Ele também entregou a Amprin uma declaração de seis páginas sobre seus discursos irradiados durante a guerra. Em 24 de maio, Pound foi transferido de jipe de Gênova para Metato, no Diciplinary Training Facility,  algemado a um assassino, durante toda a viagem. Em 16 de novembro de 1945 foi transferido para Roma e levado de avião para os EUA, onde responderia a processo.

Cela onde Ezra Pound ficou preso em Pisa

 

Em 26 de julho de 1943 Pound foi acusado de traição junto com outros sete cidadãos dos EUA, que haviam transmitido mensagens para os EUA, da Alemanha, durante a guerra. Dos sete, somente três foram processados, condenados e presos. Uma vez que as atividades de Pound, de julho de 1943 a maio de 1945, foram consideradas traição (as outras acusações não se encaixavam em suas atividades tidas como italianas), em 16 de novembro de 1945 foram-lhe feitas 19 acusações pelo Departamento de Justiça, acusações essas de traição e crimes a ela associados. O Departamento de Justiça achou que novas acusações, com maiores detalhes, tornariam o juízo de culpabilidade mais facilmente alcançável. Em 27 de novembro, Pound foi apresentado ao tribunal para pronúncia, mas os procedimentos foram suspensos pois quatro psiquiatras examinaram o detento e aconselharam o juiz Bolitha James Law quanto à situação do detento, que era inapto para o julgamento. Os quatro psiquiatras consideram-no, por razões médicas e outras, não ser possível julgá-lo e os procedimentos processuais foram adiados, sendo Pound enviado de volta ao Hospital Santa Elizabeth para doentes mentais.

 

Condenar alguém por traição, segundo as leis dos EUA, era uma tarefa extremamente difícil. A traição é o único crime que consta da constituição, Artigo III, Seção 3, que diz: “Traição contra os EUA consiste apenas na imposição de guerra contra eles, ou em aderir a seus inimigos, dando-lhes ajuda e acolhimento. Ninguém pode ser acusado de traição a não ser que haja duas testemunhas do mesmo ato, explícito, ou então na corte, aberta. O Congresso terá poderes para declarar a punição para a traição, mas sem perda dos Direitos Civis ou Corrupção de Sangue ou Confisco, exceto durante a Vida da pessoa atingida”.

Os “Pais fundadores” dos Estados Unidos tornaram, de propósito, na Carta Magna do país, muito difícil condenar alguém por traição de maneira a garantir que o governo não fosse arbitrário em suas atividades e atropelasse, por consequência, as liberdades dos cidadãos e, pelo medo da acusação e do castigo, restringisse a liberdade de expressão. Essas restrições deram ao juiz Julien Cornell, que defendia Pound, muitas escolhas nas quais basear sua defesa. Ele poderia invocar o fato de que Pound, como gênio poético, não deveria ser regido pelas leis ordinárias, ou que as ideias de Pound apresentadas em seus discursos radiofônicos haviam sido corretas e que os traidores eram  os oficiais de alta patente dos EUA, que haviam cedido aos bancos e continuado a guerra – mas esses não eram argumentos passíveis de  funcionar. O magistrado achou que o melhor seria manter o argumento que Pound havia se apresentado à Advocacia Geral, em 1943: ou seja, que, ao falar em público, ele estava apenas exercendo seus direitos constitucionais, garantidos pelo Primeira Emenda Constitucional. Isso poderia ter sido tecnicamente correto, mas tanto seu advogado quanto seus amigos não queriam arriscar-se em um júri patriótico, porque o júri poderia considerá-lo culpado e o sentencia-lo a uma longa permanência na prisão, ou mesmo à morte. Deste modo, decidiram que a melhor defesa de Pound seria tratá-lo como clinicamente insano e incapaz de entender os procedimentos do próprio processo. Ernest Hemingway opinou, talvez para tornar o caso da insanidade mais crível, que Pound precisava ir para um hospício e que ele achava isso “e vocês podem recolher as partes de seus Cantos onde ele começa a demonstrá-lo. Ele merece castigo e desgraça, mas o que ele realmente merece é o ridículo”.

 

MENTE CONFUSA

O poeta e o livreiro do Congresso, Archibald MacLeish, que não era um dos melhores amigos de Pound, acrescentou: “É muito claro que o coitado do Ezra é bastante, bastante ameno: traição é um crime sério e digno demais para um homem que se tornou um incrível palhaço e fez tão pouco [para se defender] no processo”. O advogado de defesa, Cornell, que havia encontrado Pound pela primeira vez em vinte de novembro, não encontrou dificuldade na tese de insanidade. Os quatro psiquiatras haviam se dirigido novamente ao juiz com um prontuário unânime atribuindo a Pound “autoilusão”. O promotor, Isaiah Matlack, propôs uma audição de insanidade pública de insanidade, diante de um júri. A audição ocorreu em 13 de fevereiro de 1946 e o júri ouviu do Dr. Winfred Overholser, uma autoridade em psiquiatria, a seguinte síntese: “ [Pound] apresenta uma notável grandiosidade, ele acredita haver sido designado para salvar a Constituição dos EUA para o povo dos EUA, ele acha que tem a chave para a paz do mundo nos escritos de Confúcio, dentro de si ele crê que, como líder de um grupo de intelectuais, ele poderia trabalhar para a ordem mundial. Ele se encontra mentalmente não capacitado de aconselhar-se devidamente ou de participar razoavelmente e inteligentemente de sua própria defesa. Em outras palavras: ele está insano”.

            Depois de ouvir esta e outras declarações dos outros psiquiatras, o júri levou apenas três minutos para concluir que Pound tinha, realmente, uma mente confusa.

O julgamento foi adiado e o juiz ordenou que Pound fosse confinado no Hospital Federal Santa Elizabeth para os Doentes Mentais, em Washington. Pound havia assim evitado um julgamento imediato e uma pena potencialmente severa. Não estava decidido, entretanto, o veredicto de sua culpa ou inocência e ele poderia ser julgado novamente se as autoridades médicas competentes concluíssem haver ele recuperado suas plenas faculdades mentais.

Houve, naturalmente, especulações quanto ao fato que Pound estivesse fingindo, com alegações que ele, embora excêntrico, bizarro, desagradável e presunçoso, não era, na verdade, psicótico. O governo também teve dificuldades para provar que a conduta de Pound poderia passar pelo teste da loucura previsto pela constituição, uma vez que ele estava longe de ser um Benedict Arnold [general norte-americano, que se passou para o lado britânico durante a Guerra da Independência Americana].A promotoria não tinha as duas testemunhas necessárias para a acusação de traição, mesmo havendo o poeta admitido que fizera os discursos radiofônicos e os documentos coletados em sua casa em Rapallo haviam sido tomados sem um mandado de busca e apreensão, fato esse que um juiz poderia considerar inadmissível, na corte. Ezra Pound permaneceu no Santa Elizabeth de 1946 até sua soltura, em 18 de abril de 1958.

No início foi hospedado num edifício velho e em ruinas, Howard Hall, que ele costumava chamar “casa de percevejo” ou “buraco do inferno”. O edifício não tinha janelas e possuía uma porta espessa de aço e uma porção de buracos-vigias através dos quais os psiquiatras observavam os doentes. Mesmo nesse ambiente Pound se deu bem com os outros pacientes e com o pessoal do hospício. Ele costumava gracejar: ”Posso me dar bem com loucos, só os estúpidos eu não aguento”. Em junho de 1946 Dorothy, como sua mulher, foi indicada como sua responsável legal. Visitas só podiam vê-lo por 15 minutos. Em janeiro de 1947 e, em outros momentos, depois, o advogado Julian Cornell apresentou uma petição de habeas corpus e pagamento de fiança, mas ambas foram negadas. O Dr. Winfred Overholser, superintendente do Hospital, mudou Pound para Chestnut Hall, onde ele ficou pelos próximos anos. Ele tinha agora seu próprio quarto, nenhuma pressão por dinheiro, e um tempo ilimitado para escrever e exercitar-se. Lá ele traduziu 300 poemas chineses e trabalhos de Confúcio, duas peças de Sófocles, contribuiu com artigos para mais de 20 diferentes publicações e escreveu mais 25 cantos para sua obra magna. Também manteve uma correspondência ativa com um vasto círculo de pessoas, e recebeu um fluxo contínuo de visitantes, às vezes jovens. Alguns eram famosos em seus campos, como o poeta Robert Lowell, o historiador de arte Kenneth Clarck, T.S. Eliot, Marianne Moore, Charles Olson, William Carlos Williams. Apesar dos correspondentes gabaritados, o público, em geral, havia começado a se esquecer dele. Mas ele tinha o dom de se manter no centro de alguma controvérsia. No fim de 1945 e começos de 1946 a editora Random House, que estava planejando uma antologia da poesia americana, decidiu excluir qualquer trabalho dele, alegando que ele era um fascista e que seu trabalho não era suficientemente bom. Bennet Cerf, da Random House, acreditava que, nesse caso, o patriotismo sobrepujava a poesia. A questão enraiveceu os partidários dos dois lados do debate e levantou questões quanto ao significado de americanismo, patriotismo, democracia, censura. A Random House decidiu, enfim, incluir alguns poemas de Pound.

 

BOLLINGEN PRIZE

Em 1948-1949, mesmo sem ser culpado disso, Pound viu-se envolvido em uma controvérsia ainda mais séria. Os poemas que ele havia escrito quando ainda em custódia, em Pisa, ou seja, os Cantos de 74 a 84, estavam sendo publicados e –em junho deste ano – alguns de seus amigos, incluindo T.S. Eliot , Allen Tate, Conrad Aiken, Katherine Anne Porter, Theodore Spencer, propuseram que fosse concedido a Pound um novo prêmio nacional de poesia, o Bollingen Prize, que consistia em mil dólares  e devia ser ser-lhe entregue na Biblioteca do Congresso. Um júri composto de 15 membros das American Letters da Biblioteca do Congresso, a maioria deles amiga de Pound, escolheriam o ganhador. Dos quinze votos, Pound recebeu dez. Seu amigo William Carlos Williams recebeu dois; e um membro votou por um terceiro poeta, falecido havia pouco. Só houve um voto contra a concessão do prêmio a ele, o da poeta Katherine Garrison Chapin, que era também a mulher do advogado da Advocacia Geral que havia acusado Pound de traição em 1943; o poeta Karl Shapiro, que não votaria por Pound devido a seu passado de antissemitismo, se absteve. Quando Pound soube que ele havia sido escolhido para o prêmio de 1949 sua reação foi: “ nenhum comentário da casa do percevejo”.

A concessão de um prêmio importante para um acusado de traição que se supunha fosse mentalmente desequilibrado criou sensação no meio literário e político. O professor Robert Hillyer, então presidente da Sociedade dos Poetas da América, atacou a escolha feita pelo comitê e atacou Pound em artigos no The Saturday Review of Literature, alegando que “ele nunca achou nada pelo qual pudesse admirar Pound, nem uma única linha“, acrescentando que o prêmio de Pound era parte de um complô para minar a literatura americana tradicional. Naturalmente, o caso também apresentava a chance de Hillyer atacar os poetas modernistas, como T.S.Eliot e W.H.Auden, seus rivais. Seus artigos tiveram bastante eco e ouviram-se apelos em muitos lugares a favor dos “Clássicos ingleses” e gritos como ”Eximam nossas moças universitárias de ler T.S. Eliot!”  Malcolm Cowley, poeta, escritor crítico trouxe uma perspectiva razoável para a questão. Ele concluiu que os membros da Biblioteca do Congresso haviam conferido a Pound o prêmio exclusivamente no plano literário e que “eles sentiam que vários autores de segundo plano apenas haviam recebido prêmios por expressarem opiniões corretas”. Mesmo assim, Cowley achava que os Cantos Pisanos de Pound não eram “a maior realização da poesia americana”, em 1948, e haver colocado os refletores em Pound havia sido contraproducente. E concluia: “Após haver sido detido por seus próprios conterrâneos, ele foi enviado a um hospício de doentes mentais sem que lhe fosse garantida a dignidade de um público. Era a retribuição adequada para um castigo danificado e para um crime sujo”. Não há como negar, entretanto, que alguns dos poemas dos Cantos Pisanos sejam soberbos e magistrais. Veja-se nesse trecho do canto 81, a potência elegante, obscurecida pela controvérsia:

 

What thou lovest well remains,
the rest is dross
What thou lov’st well shall not be reft from thee
What thou lov’st well is thy true heritage…
Pull down thy vanity, it is not man
Made courage, or made order, or made grace,
Pull down thy vanity, I say pull down.
Learn of the green world what can be thy place…
Pull down thy vanity
How mean thy hates
Fostered in falsity,
Pull down thy vanity,
Rathe to destroy, niggard in charity,
Pull down thy vanity, I say pull down…

 

[O que amas muito fica,
o resto é escuma
O que amas muito não te será tirado
O que amas muito é tua pura herança…
Abate tua vaidade, não fez o homem
Coragem, ordem, graça,
Abate tua vaidade, eu digo, abate.
Aprende do verde mundo o que é a tua praça…
Abate tua vaidade
Quão vis, teus ódios
Fomentados no falso,
Abate tua vaidade,
Ávida em destruir, avara em dar,
Abate tua vaidade, eu digo, abate…]

 

Será que isso se parece com uma nota de arrependimento por parte de Pound? Alguns acharam que sim, outros, que o poeta não estaria falando de si, mas dirigindo os versos a seu encarcerador, o governo dos EUA e seu exército, enfurecido com o erro de seu tratamento desumano. A celeuma contra o prêmio espalhou-se no mundo político. O senador Jacob Javits, de New York, pediu fosse feita uma investigação para saber como Pound havia sido escolhido para receber o prêmio. O Joint Congressional Commitee da Biblioteca do Congresso considerou a questão e, em virtude de sua recomendação, o congresso deliberou que dita biblioteca não poderia dar mais prêmios ou recompensas. Quem tomou seu lugar foi a Biblioteca Universitária de Yale que tem outorgado o prêmio Bollingen desde 1950.

Depois de 1954, Pound foi novamente notícia quando a Suprema Corte, no processo Brown versus Conselho de Educação de Topeka, derrubou as leis do Estado “ separados, mas iguais”, no que se refere à educação, integrando negros e brancos. Esses regulamentos e tentativas do Congresso de passar uma legislação de direitos civis criou uma onda de oposição branca no Sul, uma ressureição da Ku Klux Klan, levantes, e atos de violência, incluindo assassinatos contra pretos e suas instituições. Uma das vítimas foi Emmett Till, de 14 anos, filho de Louis Till que, como Pound, fora aprisionado em uma das “jaulas” em Pisa e fora enforcado pelo Exército americano, depois de sentenciado por estupro e homicídio. Pound o menciona no Canto 74 de seus Cantos Pisanos:

Till foi enforcado ontem

por homicídio e estupro com aparas…

Alguns jornalistas revelaram que alguns dos racistas brancos implicados na resistência à Lei da Terra, no Tennessee, eram seguidores de Pound, tendo, inclusive, realizado visitas a ele, no Santa Elizabeth, mantido com ele correspondência e sido encorajados por seus conselhos. Uma das figuras mais conspícuas dessa resistência à integração na escola, discípulo de Pound, foi Fredrick John Kasper, um falante garboso, cuja fala arrastada e modo de vestir davam a entender que vinha de New Jersey. Kasper, como Pound, era um antissemita. Embora tivesse sido em tempos anteriores, amistoso com os negros, tornou-se um racista raivoso, jurando proteger e defender a pureza da raça branca.” Por sinal, ele acabou detido em uma prisão federal e, ao ser levado à prisão, carregava consigo um exemplar de Mein Kampf de Hitler, embaixo do braço. A associação ofensiva de Pound com extremistas não ajudou a quem queria garantir sua soltura. Não é que o poeta estivesse tão sequioso de abandonar o ninho de Santa Elizabeth, e sua mulher, Dorothy, desencorajou Julien Cornell de apelar por sua libertação e, quando aqueles que queriam ajudá-lo mencionavam uma possível soltura, ele mudava de assunto. T.S. Eliot, um daqueles que queriam ajudar a libertar Pound, disse a Mary Pound:  “Seu pai não quer aceitar a liberdade em nenhuma das condições possíveis”.

 

LIBERDADE

Um outro problema para a obtenção da libertação de Pound era o fato que o Dr. Overholser fora convidado a informar ao departamento de Justiça quanto a seu relatório anual das condições mentais de Pound. Era uma situação de armadilha: caso o doutor concluísse que Pound havia recobrado suas faculdades mentais, ele seria julgado por traição; caso certificasse estar ele ainda mentalmente doente, não poderia sair da instituição. A situação estava beirando o ridículo, uma vez que muitos dos que haviam sido julgados por traição e comprovados traidores, inclusive muitos criminosos nazistas, haviam sido libertados. Em 1957, quando Pound estava relativamente quieto em seu canto, Archibald MacLeish e Robert Frost convenceram, aos poucos, os funcionários da administração Eisenhower que a questão tinha que ser resolvida, tanto mais que Pound já estava com 72 anos e estava sendo considerado para o prêmio Nobel. O Dr. Overholser encontrou a solução que agradou a todos. Ele declarou, num affidavit  jurado, que Pound estava incuravelmente insano, mas que  não era perigoso e que ele não poderia prever quando Pound estaria em condições de ser levado a julgamento. Mantê-lo preso, portanto, não fazia mais sentido, e era, inclusive, uma despesa para os que pagam impostos. O governo não levantou objeções à proposta do juiz Bolitha J. Law de desconsiderar as acusações de traição e em 18 de abril de 1958 a corte ordenou a soltura.

Pound ao chegar em Nápoles

Pound estava livre, agora, mas legalmente incompetente para cuidar de seus negócios, uma vez que havia sido considerado incuravelmente doente mental. Ele não deixou o hospício de imediato, uma vez que tinha que submeter-se, ainda, a um tratamento dentário gratuito e queria fazê-lo. Assim, só foi solto em sete de maio de 1958. Na sua ficha de soltura constava: “Condições ao sair: não comprovadas”. Pound e sua mulher não deixaram logo os Estados Unidos  como se esperava que  fizessem. Eles demoraram um tanto, visitando amigos, e passando um tempo em Wyncote, Pensilvânia, a pequena cidade em que Pound havia vivido quando criança. Foi somente em 30 de junho de 1958 que Dorothy, Ezra e uma jovem de nome Marcella Spann embarcaram de New York, no navio Cristoforo Colombo da Linha Italia, rumo a Nápoles. Quando o navio chegou lá havia uma multidão de fotógrafos e jornalistas à sua espera. Pound fez-lhes uma súbita saudação fascista e disse a um jornalista que lhe perguntava quando ele tinha deixado o hospital:  “Eu nunca deixei o hospital enquanto estive na América, pois a América toda é um hospício de loucos”. Marcella Joyce Spann vinha do Texas e estudou lá. Apresentada à poesia de Pound por um de seus professores, ela escreveu ao poeta no Santa Elizabeth e pediu-lhe uma entrevista. Pound concordou e, após visitá-lo, a relação continuou por correspondência. Em 195, Spann mudou-se para Washington e trabalhou com instrutora de inglês junto ao Marjorie Webster Junior College (fechado em 1974). A proximidade permitira-lhe visitar Pound regularmente e o poeta se prontificava a aconselhá-la, ensiná-la e ajudá-la a escolher os cursos. Quando Pound foi solto, em maio de 1958, ela abandonou seu trabalho e acompanhou-o à Itália como sua secretária. Pound pode ter estado apaixonado por ela e pode ter-lhe proposto casamento, mesmo com Dorothy ao seu lado, como ainda sua mulher. Pound, agora, tinha três mulheres: Olga Rudge, sua mulher Dorothy e Marcella Spann. Enquanto havia estado nos EUA ele não havia encorajado Olga a visitá-lo e – de fato – ela só estivera no Santa Elizabeth duas vezes, em 1952 e em 1955.  Entre 1955 e 1959 seu relacionamento deteriorou-se a ponto de mal se corresponderem. Olga ainda vivia na Casa 60 em Rapallo e no “ Ninho escondido” em Veneza.

 

Ao chegar em Nápoles, Pound e as duas mulheres, Dorothy e Marcella, viajaram para o norte e se instalaram no castelo de Brunnenburg, próximo a Merano, na borda ítalo-austríaca, convidados pela filha que Pound teve de Olga Rudge. Em 1946, Mary Pound havia-se casado com Boris de Rachewicz, um egiptologista russo-italiano. Em 1955, eles haviam comprado o castelo arruinado do século XIII, reformando-o e transformando-o em sua residência. O mulherengo Pound estava agora à mercê de quatro mulheres: sua filha Mary, sua neta Patrizia, sua mulher Dorothy e sua namorada Marcella. As quatro não se entendiam e Dorothy, encarregada do controle financeiro dos negócios de Pound, era quem, geralmente, mandava. Pound chegou a comentar a situação insatisfatória no Canto 113:

Orgulho, ciúmes e possessividade

três penas do inferno.

Em dezembro de 1959, Dorothy assegurou-se que Marcella havia voltado aos EUA e Pound, que havia caído em um marasmo emocional, foi perdendo seu interesse pela poesia e começou a pensar que o trabalho de sua vida havia sido por nada. Quando começou a perder peso de forma anormal, achou-se que ele devia estar com demência e foi hospitalizado em uma clínica perto de Bolzano. Recuperou-se um pouco, mas sua saúde estava piorando. Na primavera de 1961, teve uma infecção urinária e, em 1962, Dorothy, sentindo-se incapaz de cuidar dele—ou quem sabe, simplesmente cansada dele – decidiu abandoná-lo. Quando Pound deixou Merano para alcançar Olga em Rapallo, Dorothy também deixou Brunnenburg e foi viver em Londres, com seu filho Omar.

 

SENIL

De 1962, até sua morte, em 1972, Pound ficou com Olga, passando frequentes invernos em Rapallo e verões em Veneza. Continuou pessimista e começou a acreditar que sua vida havia sido apenas uma série de erros. Assim ele disse a uma jornalista italiana, Grazia Levi: “Eu estrago tudo o que eu toco. Sempre me enganei. Durante toda minha vida acreditei não saber nada, sim, não saber nada. Assim as palavras tornam-se vazias de significado”. Em outubro de 1967, ele disse  a Allen Ginsberg, em Rapallo, que sua poesia era “uma confusão, minha escritura, estupidez e ignorância, toda ela” e mais tarde, em Veneza, confiou-lhe:” Depois dos 70 anos de idade eu descobri que eu não era um lunático, mas um idiota. Devia ter sido capaz de fazer melhor…”.

Sua depressão era evidente, e –mesmo nas notas de seu último canto—podia-se ler:

 

 Que eu tinha perdido meu centro

Lutando contra o mundo.

Os sonhos chocam-se

E esboroam-se –

Que eu havia tentado fazer um paraíso

Terrestre…

 

Em Veneza, Pound e Olga tinham que lidar com miríades de visitantes, todos eles querendo ver o velho e excêntrico poeta e conversar com ele. Durante os últimos poucos anos de sua vida, ele já não falava, exceto com os íntimos e só do que era estritamente necessário. Suas ocasionais investidas com palavras faladas haviam assumido um tom oracular. Quando, em raras entrevistas, lhe indagavam porque que falava tão pouco, ele respondia: “Eu não entrei no silêncio, foi ele que me capturou”. Olga Rudge cuidava ciosamente da privacidade de Pound e despachava visitantes indesejáveis pedindo-lhes que recitassem alguns versos de Pound. A quem não os soubesse, era pedido que fosse embora. Um visitante, que esperava um tratamento semelhante, ficou surpreendido quando foi o próprio Ezra quem abriu a porta, de roupão e chinelos. Quando o visitante lhe perguntou:   “Como está, senhor Pound” recebeu como resposta: “Senil”. Depois disso Pound o deixou. De vez em quando Pound viajava. Em 1962 foi até Roma para assistir a uma parada neofascista, onde os que desfilavam vestiam seus uniformes pretos e marchavam com o andar de ganso fascista, o pseudo Passo Romano. Outra vez, em Paris, assistiu à apresentação de Fim de jogo, de Beckett. Comentando a aparição, na peça, do velho que vive em um latão de lixo do qual sua cabeça desponta de tempos em tempos para abocanhar alguma comida e para gritar, ele disse: “Este, sou eu”.

Em 1965, apesar da saúde precária, foi até Londres para assistir às exéquias de Eliot e, em 1967, para New York, para estar presente à abertura de exposição da cópia original do The waste land, que ele havia corrigido para Eliot. Ele visitou também sua alma mater, onde foi recebido com uma recepção tumultuada.  Em 1972,  foi indicado pelo   Hamilton College para receber  a Medalha Emerson-Thoreau da Academia de Artes e Ciências, mas a velha controvérsia sobre suas opiniões sobre o Fascismo e o antissemitismo foram ressuscitadas  e a proposta foi derrotada por 13 votos a 9.

Quando fez 87 anos, em 30 de setembro de 1972, Pound estava doente e fraco, mas quando a gôndola-ambulância veio recolhê-lo para levá-lo ao hospital de Veneza, ele desceu as escadas para ir até ela. Morreu durante o sono, no dia seguinte, com Olga segurando sua mão. Seu funeral foi em quase surdina, com apenas parentes íntimos presentes, com exceção de sua mulher, Dorothy, que não  pode vir de Londres para Veneza. Quatro gondoleiros vestidos de preto remaram até o Cemitério da ilha de San Michele onde ele foi enterrado, no setor dos Protestantes, próximo ao túmulo onde se encontra Joseph Bródski, laureado com o Nobel em 1987, e não longe do setor grego-ortodoxo, onde estão também o compositor Igor Stravínski e o dançarino Serguéi Diaguilév.

Dorothy Shakespear Pound morreu em Londres em 1973, mas Olga Rudge viveu em sua casa em Veneza por mais 24 anos após a morte de Pound, e morreu aos 101 anos, em 1996. Ela herdou a maioria dos papeis de Pound, sua correspondência, seus livros, e se tornou defensora ativa de sua reputação literária e pessoal, participando da vida social e cultural de Veneza. Ela deu a entender, muitas vezes, de ter a intenção de estabelecer uma Fundação que hospedasse os papeis e as obras de Pound, mas nunca lhe foi possível. Em 1986, quando ela já contava 91 anos e estava, aparentemente, perdendo a memória, alguns de seus “ditos” amigos teriam tirado proveito dela, criando uma Fundação Pound, onde Olga não tinha voz, e comprando tanto a casa de Veneza quanto seus papeis por 7.000 dólares. As harpias dessa mitologia, segundo a opinião de alguns observadores, foram Jane Turner Rylands e seu marido Philip Rylands, Diretor da Peggy Guggenheim Collectiom em Veneza. Jane havia-se tornado amiga de Olga, ganho sua confiança e a ajudado de diferentes maneiras em sua vida de todos os dias. A filha de Olga, Mary, que morava a três horas dali, no Tirol, estava aliviada pelos cuidados assíduos que o Rylands tinham para com sua mãe.

Jane Rylands afirmou que, em meados de 1980, Rudge pediu-lhe ajuda no sentido de estabelecer a Fundação Ezra Pound como uma instituição isenta de taxas, que promovesse bolsas de estudo e estudos das obras de Pound. Jane, solícita, contratou um advogado de Cleveland, Ohio, e a fundação foi legalmente estabelecida, em 1986. Tinha três fiduciários/oficiais: Rudge como presidente, Jane Rylands como vice o advogado como secretário. Supostamente, os votos de dois fiduciários teriam soberania sobre o terceiro. Rudge então vendeu a casa de Veneza e os papeis de Pound por U$ 7.000.

Quando Mary descobriu o que sua mãe havia feito e Olga teve consciência do alcance de sua ação, tentou dissolver a fundação e ter de volta tanto a casa quanto os papéis. Ela ficou sabendo que, segundo as leis de Ohio, eram necessários os votos de dois dos trustees (fiduciários) para dissolver a fundação e que, de qualquer maneira, ela não recuperaria nem a casa nem os papéis, que seriam transferidos a outra instituição isenta de taxas.

Ambos os lados então constituíram advogados e se prepararam para lutar em juízo. Foi então que, delicadamente, a Guggenheim Foundation entrou na questão. Pelo fato de Philip Rylands ser funcionário desta fundação e ser marido de Jane Rylands, por sua vez envolvida com a Pound Foundation, e pelo fato de a fundação Guggenheim estar preocupada com a publicidade adversa devido ao antissemitismo de Pound, Philip teria duas alternativas: ou continuar no seu relacionamento com a Guggenheim Collection  ou permitir a Jane continuar na Pound Foundation e então perder seu cargo de diretor da Guggenheim Collection. Solução para essa controvérsia foi encontrada quando a Yale University decidiu comprar os arquivos da Pound Foundation e pagar a ambos os litigantes A quantia foi mantida em sigilo e os documentos inerentes à operação foram mantidos secretos até 2016. Após a venda realizada, a Fundação Pound foi dissolvida. Provavelmente esta foi a melhor solução, dadas as circunstâncias. A Beinecke Rare Book and Manuscript ficou com os papeis de Pound entregues pela  filha dele, Mary, e pode chamar um especialista competente em Pound, para aconselhar na reunião e na análise dos documentos do poeta. O nome do especialista era Donald Gallup. Ele, na época, aposentado, havia passado mais de 30 anos como curador da Yale Collection of American Litterature e, de acordo com seu sucessor, era o “ principal biógrafo de Eliot e Ezra Pound, especializado em encontrar os primeiros exemplares de suas obras e documentar sua criatividade”.

Caso a questão legal tivesse seguido seu curso, o desfecho teria sido imprevisível. Com efeito, em 1940, Pound havia redigido um testamento no qual deixava tudo para sua filha Mary, mas o testamento não havia sido registrado nas cortes da Itália de modo que, tecnicamente, era inválido. Mais tarde, quando Pound se encontrava no hospital de Santa Elizabeth já não era legalmente capaz e não podia redigir outro testamento pois sua mulher, Dorothy, que respondia por ele, não o teria avalizado. Dorothy e seu filho Omar também constituíram advogados, contestaram o testamento de 1940 e terminaram a questão dividindo os bens imobiliários de Pound, dos quais Mary mantinha o controle. De qualquer maneira, qualquer ulterior litígio com Jane Rylands teria sido longo e complicado. Uma coisa que Rudge havia conseguido salvaguardar dessa confusão toda fora sua casa “ Ninho escondido” onde ela continuou a vive até que a doença a obrigou a ir morar com sua filha, em Brunnenburg. E foi lá que ela morreu em 15 de março de 1996. Ela foi enterrada em San Michele, junto a seu amado Ezra. Em seu túmulo estão gravados versos do poema “Litania noturna”, composto por Pound na virada do século:

 

Oh, Deus, o que de tão bom fizemos no passado e o esquecemos,

Que Tu nos deste esta beleza, Oh, Deus das águas?

 

Em 1966, Pound havia escrito outro poema que deveria ser o final do último Canto, louvando a coragem e o afeto de Olga:

 

Que seus atos

Os atos de beleza

de Olga

sejam lembrados.

Seu nome era coragem

E se escreve Olga.

 

Mary de Rachewiltz continua morando em seu castelo no Tirol, dirigindo o Centro Ezra Pound para a Literatura. Seu filho, o doutor Sigifrido Walter de Rachewiltz a ajuda. Ambos e a filha de Mary, Patrizia de Rachewiltz de Vroom, são, eles mesmos poetas. Omar Shakespear Pound, Filho de Dorothy, que foi professor e escritor, morreu em New Jersey em março de 2010. O receio de Pound que sua vida tivesse sido uma longa série de erros, acompanhou-o até o túmulo e se seus testamenteiros tiverem tido, porventura, algumas dúvidas a respeito, eles as mantiveram encobertas por um discreto silêncio. Os versos, sozinhos, conquistaram seu caminho para a imortalidade.

 

Setembro de 2012

Luciano Mangiafico é diplomata norte-americano aposentado.

Tradução: Aurora Bernardini