Skip to main content

O efeito Honduras na América Latina

O golpe de Honduras – que aflora alguns complicadores para o jogo político americano – é manifestação violenta da burguesia local contra Manuel Zelaya, que intentou dar uma guinada populista em seu governo. Os capitalistas latino-americanos não vivem sem o Estado, que lhes subsidia, e os políticos deles dependem, para suas campanhas eleitorais etc.

O economista, autor de Primero la gente, ao lado do Nobel Amartya Sen, prevê um aumento de desemprego, o que já ocorre no Brasil, e, sobretudo, desemprego para os jovens, o que os tornará presas mais fáceis do tráfico de entorpecentes e do crime organizado; prossegue dizendo que as mulheres vão ser mais discriminadas ainda no mercado de trabalho e que, ante o desemprego masculino, serão as principais responsáveis pela manutenção de suas casas. Assinala ainda: “Também pode produzir-se um aumento das já muito altas taxas de violência doméstica, que oscilam de 10% a 38%, de acordo com cada um dos países”. Como quarto efeito, aponta a elevação do número de trabalhadores pobres, pela concorrência dos desempregados. Prevê mais 5 milhões de trabalhadores pobres ainda este ano.

Se o Estado brasileiro não consegue prover saúde, educação, justiça e segurança pública nem à altura dos impostos que arrecada, o que se pode dizer de Honduras – um país de 7,5 milhões de habitantes? Kliksberg, afirmando que a cobertura social dos países latino-americanos é mínima, existente para quatro em cada dez pessoas no máximo, antevê pioras na saúde pública e nas redes de proteção sociais. Para ele, essa vulnerabilidade potencializará “o aumento da pobreza em suas várias expressões”. O autor de Primero la gente argumenta ainda que aumentará a evasão escolar, com danos agudos para o futuro dessas nações: “A América Latina tem 110 milhões de indivíduos que não terminaram o curso primário”. Consequência imediata: elevação das taxas de trabalho infantil.

Kliksberg informa que o continente terá, em 2009, mais 6 milhões de pobres: “O círculo perverso que se produz é conhecido. Crianças pobres deverão trabalhar, abandonando a escola, e só terão acesso a empregos marginais, sem qualquer proteção social”. O que lhes resta então? Reproduzir a pobreza, segundo as corretas observações do economista. E acrescenta, o que serve à maravilha à situação brasileira: “A região tem, apesar de seus avanços macroeconômicos, um enorme calcanhar de Aquiles social”.

Kliksberg se esquece do efeito mais grave do despreparo institucional da América Latina para enfrentar o crash econômico: a devastação da natureza, pela ação da burguesia e dos novos pobres. Penso, por exemplo, no ecocídio colombiano: o cultivo da cocaína dizima o meio ambiente. A Colômbia está entre os dez países do mundo com mais biodiversidade; possui 300 mil espécies de plantas e 2 mil espécies de peixes de água doce, neste caso, 10% de toda a diversidade da Terra.

O economista assinala que “a crise requer máxima atenção ao social” – o que não vai acontecer, destaco. E aduz que políticas econômicas ortodoxas podem ser o golpe de misericórdia a essa região. Nada indica que tal não possa ocorrer ante surtos de inflação (Venezuela), no plano econômico e no político; por outro lado, o golpe de Estado em Honduras abre um precedente sedutor para a Venezuela, a Bolívia, o Equador, a Nicarágua – o eixo bolivariano. Reafirma, indiretamente, as políticas corruptas do peronismo “democrático” na Argentina. Instiga a direita paraguaia contra Fernando Lugo. O PRI retomará o poder no México. E assim por diante. Provavelmente, o golpe em Honduras impedirá uma reaproximação dos Estados Unidos com Cuba etc. Na Ilha, há hoje fila de espera de caixões, para enterrar os seus mortos!

Kliksberg fala de políticas públicas de qualidade, a partir de reformas tributárias, para afastar a América Latina dos piores efeitos da crise. Devaneio! Haja vista o exemplo brasileiro. As prioridades, na área, são apenas eleitorais, de manutenção de certos personagens no poder (tanto faz qual P seja), para subsidiar uma burguesia fracassada, que vive do Estado – ao contrário dos Estados Unidos, onde o capitalismo de mercado existe.

 

2

Em seu Dicionário de política, Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino definem soberania do seguinte modo: “O conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra esse poder supremo, exclusivo e não derivado”. Soberania, acrescentam, é a transformação da força em poder político, de poder de fato em poder de direito. É – ainda segundo eles – o conceito jurídico-político que possibilita ao Estado moderno, mediante sua lógica absolutista interna, impor-se, inclusive, externamente. O monopólio da força (exército) e da edição de leis, por exemplo, decorrem da soberania. No mundo contemporâneo ela foi solapada pelo poder econômico.

Há dois pesos e duas medidas no que se refere à soberania dos Estados. Exemplo disso é o silêncio da ONU em relação ao genocídio dos uigures, os “chineses” muçulmanos, de Xingjiang. Não houve sequer condenação formal das violações brutais de direitos humanos praticadas pelo governo de Hu Jintao, que os trata como escravos. Jintao abandonou a reunião do G8 em virtude de sua “revolta”, visando contê-la. A China registrou crescimento de 7,9% de seu PIB no segundo trimestre deste ano; os maiores diários do mundo lançaram manchetes entrevendo o fim da crise global. A China foi o único país que cresceu, economicamente.

Na Chechênia, outra militante dos direitos humanos, Natalia Estemirova, foi assassinada, agora em julho, por denunciar a participação de dirigentes russos no genocídio local. Outra jornalista, Anna Politkovskaya, foi igualmente assassinada por se confrontar com Vladimir Putin, em 2006, e até agora não se encontraram seus algozes. Dmitri Medvedev e Putin foram poupados pela comunidade internacional. Interessa aos Estados Unidos e à Europa um pacto com a Rússia, para neutralizar o Irã e a Coreia do Norte. A Rússia é, hoje, uma confederação de máfias.

Chego ao ponto. A Organização dos Estados Americanos (OEA) interferiu, desde o primeiro minuto, no golpe de Estado de Honduras, condenando Roberto Micheletti, apesar de Manuel Zelaya estar – de acordo com a mídia internacional – vinculado ao narcotráfico. Zelaya é amigo de Hugo Chávez, e os Estados Unidos, semana passada, advertiram o mundo da “conversão da Venezuela em narcoestado”. Tanto a União Europeia quanto os próprios Estados Unidos suspenderam empréstimos para Honduras. Hillary Clinton telefonou ontem para Micheletti de Nova Déli, lembrando-lhe que haverá consequências pela inaceitação da proposta do presidente da Costa Rica, Óscar Arias, que prevê governo hondurenho de união nacional, com Zelaya, e eleições em 2010. José Miguel Insulza, o presidente da OEA, vislumbrou ontem também cenário de guerra civil, caso Micheletti não negocie.

O curioso é que George Bush elegeu-se mediante um golpe – fraude eleitoral – em 2000. O então concorrente democrata Al Gore tanto quanto seu partido calaram-se e assistiram – muitas vezes concordes – à supressão de direitos civis básicos dos cidadãos norte-americanos. Hillary Clinton, atual ministra das Relações Exteriores do governo Obama, votou pela invasão ao Iraque, em virtude de Saddam Hussein controlar “perigosas armas químicas”. Até hoje, o governo estado-unidense mantém uigures, presos na China, enjaulados em Guantánamo, sob a acusação de serem terroristas ligados a Osama Bin Laden.

É evidente que sou contrário a qualquer golpe de Estado. O de Honduras reatualiza no imaginário mundial a ideia de uma América Latina bananeira – ideia conveniente, por um lado, num período em que os países ditos mais desenvolvidos precisam de matérias-primas baratas para se reerguerem. A China e a Rússia são soberanas, Honduras não o é. Insulza chama Micheletti de “ditador”, mas, certamente, calar-se-ia diante de Vladimir Putin e Hu Jintao.

O que há, em suma, é uma soberania econômica, que minou o conceito de soberania política, e que faz parte do desmonte de uma democracia, digamos, mais democrática no mundo. O que há é uma democracia sem cidadãos. A China pratica um capitalismo de Estado, sem liberdades civis, mas isso importa pouco para os países que “defendem” o liberalismo (Estado mínimo), enquanto ela estiver liderando a retomada do crescimento. O mundo continua o mesmo.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.