“A impotência para nomear é sintoma de distúrbio”
Roland Barthes
Entre a dor & o alento, tenho refletido muito sobre o tema/sobre o dilema do grupo Alento (grupo do Facebook do qual participo): o difícil problema do suicídio. O meu amadorismo em psicologia e psiquiatria, ou em antropologia e sociologia, me desautorizam a tratar “tecnicamente” da questão. Aliás, isso deixa pressuposto, ao menos, que eu entendo o “suicídio” como um evento de natureza complexa, em que se combinam elementos de ordens desiguais, em que concorrem fatores diretos ou indiretos de causalidade (psíquicos e psicológicos, econômicos e sociais, de gênero e de orientação sexual). Enfim, consciente de que o tema tem um caráter multidisciplinar, e não sendo eu especialista em nenhuma dessas áreas, gostaria de tentar contribuir, ao menos um pouco, com o que desconheço um pouco menos, propondo um olhar sobre o “suicídio” como um “interdito” que se manifesta também no nível da linguagem, no plano do discurso.
Antes de entrar no mérito, quero recordar, primeiro, a certeira observação de Régis Bonvicino quando postei no grupo uma reportagem sobre o suicídio de Kelly Catlin (a atleta americana tricampeã de ciclismo se matou aos 23 anos, no dia 8 de março): o título noticiava laconicamente que ela “morreu”, ocultando que, na verdade, a jovem havia se suicidado. Isso me faz lembrar, também, o importante comentário de Leandra Zonzini no post sobre o filme “Depois” (em que um casal de idosos enfrenta a dor do suicídio do filho), questionando “sobre as chamadas políticas públicas diante dessa epidemia que insistem em refutar”. Conforme ela apontou com muita propriedade, “no Brasil existem tantos problemas que o suicídio é deixado de lado por acharem que deve ficar no âmbito privado”.
Outro aspecto que me chama a atenção, e que está diretamente relacionado aos que foram levantados por Régis e Leandra, diz respeito ao fato de que como os pais e as mães – cujos filhos e filhas se mataram – falam dessas mortes com os parentes e amigos. Recentemente, quando eu comecei a participar do grupo “Mães que vivem o luto do suicídio” (Facebook), confirmei o que já havia notado no grupo “Alento”: a grande dificuldade das mães, o enorme embaraço dos pais, sempre que são interrogados sobre a causa da morte deles. Como em grupos dessa natureza a experiência comum da perda e a cumplicidade na dor deixam a todos mais à vontade, não são poucos os que costumam confessar a incômoda hesitação para dizer a verdade a quem lhes faz a indesejada pergunta. Não são raros os que confidenciam aos pares (das perdas ímpares) não conseguir falar que os seus filhos se mataram, que relutam – em luto – para dizer que a morte das suas filhas foi fruto (proibido) do suicídio.
Nesses três exemplos, enfim, apesar dos diferentes contextos, observo um traço comum: o “silenciamento” da palavra suicídio. A questão, contudo, é bem mais sutil, já que existem distintas “formas do silêncio” sobre esse “matar-se”. Recorrendo ao sintomático trocadilho da linguista Eni Orlandi, para tentar localizar as duas faces dessa “tragédia silenciosa”, acho que os posts problematizam tanto a “falta do dizer” quanto o “dizer da falta”. Confesso que, como Barthes, “sofro de uma doença, eu vejo a linguagem”: isso significa que eu leio essas mesmas palavras, em posições invertidas, refletindo e refratando distintos tons de sentidos no espelho discursivo da ausência. Em outros termos, ouço, de um lado, que a “falta do dizer” quer dizer não falar a palavra “suicídio”; e escuto, de outro, que o “dizer da falta” quer falar sobre o não dizer a palavra “suicídio”. Não me passa despercebido, enfim, que esse trocadilho seja uma figura de linguagem chamada “quiasmo”, e que essa inversão de termos seja representada graficamente pelo X, e que a “falta” e o “dizer”, no caso, sejam (in)exatamente o “xis” desta tortuosa e torturante questão (sem esquecer Lacan, para quem o inconsciente se estrutura como linguagem, o X reflete e refrata não a “cicatriz” e a “ferida”, mas o silêncio do intervalo entre elas).
Para ilustrar essas “formas do silêncio”, retomo o primeiro exemplo: quando a manchete do jornal divulgou a notícia de que a tricampeã americana de ciclismo “morreu”, e não que ela “se matou”, a escolha do verbo é uma estratégia discursiva de silenciamento do suicídio. É isso que a linguista formalizou como “falta do dizer”, referindo-se aos “modos de apagar sentidos, de se silenciar e de se produzir o não-sentido onde ele mostra algo que é ameaça” (Eni Orlandi, “As formas do silêncio: no movimento dos sentidos”, Editora da Unicamp, Campinas, 2002, p. 14). O comentário do Régis Bonvicino, assim, protestando contra a manobra verbal do dizer que não diz, evidencia o jogo ideológico de dissimulação da linguagem, o “ocultamento” de uma espécie de morte culturalmente condenada. A réplica crítica à “falta do dizer” manifesta o contradiscurso do “dizer da falta”, jogando luz no que a sociedade esconde, mostrando a morte que ela não quer ver, porque vê o suicídio como uma “ameaça” que desestabiliza o imaginário coletivo do que é (ou deve ser) a “vida”.
Na verdade, o problema é bem mais complexo, já que a própria noção de morte é tabu em nossa cultura, que tem dificuldade de enxergá-la até como uma das pontas inevitáveis da existência humana. O suicídio, nesse contexto, só poderia mesmo ser (mal) visto como o tabu do tabu, representando o paradoxo do desejo do indesejável: ou seja, o “querer morrer” estaria se contrapondo à lógica naturalizada culturalmente do “querer viver”. Em outros termos, nesse universo de valores, o “não querer viver” só poderia ser julgado, obviamente, como incompatível com o princípio básico de conservação da vida: que implica, no fundo, “não querer morrer”. Sendo mais direto, levando em conta o pressuposto de que o “normal” é “querer viver”, a morte parece menos absurda ao senso comum quando acontece “sem querer”, como um fato independente da vontade humana.
Nessa perspectiva, portanto, não é difícil reconhecer que não foi por mera coincidência que o verbo “morrer” tenha sido usado no lugar de “suicidar-se” para noticiar a morte da ciclista americana. A partir da materialidade linguística marcada como cicatriz na superfície textual, a primeira questão é entender que essa “falta do dizer” é “sintoma de distúrbio” (conforme diagnosticou Barthes), para então tentar compreender o significado do “dizer da falta”. A propósito, esse “dizer” sobre o “não dizer” – vale sublinhar – não está apenas no comentário de Régis Bonvicino, mas também no de Leandra Zonzini, ao denunciar a “falta da falta”: em suas palavras, “o suicídio é deixado de lado”, ignorado pelo poder público como se fosse uma morte episódica, sem sentido (inevitável e sem relevância social), e não uma preocupante “epidemia”. O que se deve ouvir atentamente nesse duplo “dizer da falta”, enfim, é que romper o silêncio sobre o suicídio é condição necessária para reivindicar políticas públicas de prevenção a ele.
É exatamente isso o que também diz uma especialista no tema, a psicóloga e socióloga Maria Luiza Dias, na dissertação de mestrado publicada parcialmente sob o título “Suicídio: testemunhos de adeus”. Investigando primeiro o tabu da morte, em geral, para depois analisar o tabu do suicídio, em particular, a autora nos chama a atenção não só para os conteúdos recalcados na “falta do dizer”, mas também para os efeitos danosos desse silêncio. Em suas palavras, eis a questão que nos interessa especificamente aqui:
“Na verdade, não se considera que todos morrem a cada dia na medida em que uma experiência vai deixando lugar a outra, e que, embora se tente fugir da morte, todos os dias nos aproximamos dela. A vida se torna mais difícil porque ela não é encarada como um morrer constante, onde a morte é uma transformação final, e não um processo abrupto e dilacerante. A morte não é vista mais como uma mudança, como foi o nascimento (…). A mudança é uma ocorrência regular na vida das pessoas e envolve também a vivência dos lutos no decorrer do ciclo vital. Desta forma, podemos supor que o tabu imposto ao falar da morte repercute sobre o suicida, impedindo-o de se comunicar sobre seus motivos – o que, de um lado, impossibilita a ajuda social na superação de seus impasses, se for o caso, e, de outro, contribui para a constituição de um grande enigma em torno do tema” (Maria Luiza Dias, “Suicídio: testemunhos de adeus”, Brasiliense, São Paulo, 1991, p. 38).
O silêncio é o principal adversário
Destaco deste fragmento, para que fique ainda mais claro, a seguinte constatação inicial do parágrafo: “o tabu imposto ao falar da morte repercute sobre o suicida”. Esse “não dizer”, segundo a conclusão da pesquisadora (nunca é demais repetir), “contribui para a constituição de um grande enigma em torno do tema”. Eu acrescentaria uma palavra que rima com “enigma” e distancia da solução: “estigma”. No imaginário do suicídio, como indicia o silenciamento da palavra, ele é repelido como uma espécie de “doença contagiosa”: por isso, é como se falar sobre ele fosse um estímulo aos potenciais suicidas, provocando um aumento na estatística dessa morte trágica. Não são poucos, aliás, os que defendem o silêncio baseando-se nessa tese rasteira do “contágio” pelo discurso, como se o “dizer” disseminasse o “vírus do suicídio “, como se a palavra fosse o agente responsável pela epidemia. Sobre esse olhar míope, sobre essa leitura simplista, vem bem a calhar um trecho de um clássico ensaio sobre o tema: “Suicídio, modo de usar: história, técnica, notícia” (Edições Antígona, Lisboa, 1990). Na análise incisiva de Claude Guillon e Yves Le Bonniec, eis a fragilidade dessa linha de raciocínio:
“O suicídio propaga-se como a peste, os males da alma matam tão eficazmente como outros quaisquer. A ideia do contágio é simples, segura e permite visualizar um fenômeno de outro modo inexplicável. De fato, a medicina, ainda hoje, muito pouco sabe acerca dos mecanismos que, por comodidade, agrupa sob o mesmo argumento de contágio (…). Primeiro vem tapar o vazio de um argumento científico incapaz de descrever e, mais ainda, de explicar a doença. Admitamos que o contágio se reduz à probabilidade de um indivíduo provocar sobre terceiros o desencadeamento de uma afecção que, a ele, não o atinge obrigatoriamente, sem que se possa prever quem será contaminado e como. Podemos, pois, admitir essa probabilidade quanto ao suicídio. Sem compromisso (…). A terapia está à vista: eliminar o mal fazendo silêncio à sua volta” (obra citada, p. 25).
Os pesquisadores franceses, nesse trecho, estão discutindo exatamente essa justificativa que algumas vozes “autorizadas” deram para o “não dizer” nos veículos de imprensa, advogando a proibição da divulgação das mortes por suicídio. Segundo a dupla assinalou, com ironia, “de há muito que a imprensa é o agente de contágio mais vigorosamente denunciado. Ela propaga o exemplo funesto, é ela a assassina” (idem, p. 25). A posição de Guillon e Bonniec – sublinhemos – é a mesma defendida por Maria Luiza Dias, em sua dissertação de mestrado, e por Régis Bonvicino e Leandra Zonzini, em seus respectivos comentários no grupo Alento: ou seja, que o silenciamento sobre o tema, na verdade, é adversário, e não inimigo da prevenção. Para que não restem dúvidas, enfim, de que a tese do “contágio” é equivocada, melhor ainda do que citar especialistas e pais enlutados é ouvir a crítica da boca de um suicida. Escutemos com atenção o preciso argumento do libertário Ernest Couerderoy (evocado por Yves e Claude no célebre livro):
“Não venham dizer-me que o cheiro é a visão do sangue são contagiantes (…). Claro que não; a imagem da morte violenta não é tão perniciosa como a das doenças incuráveis. Se a cara do suicida é assim tão horrível de ver, só afastará os homens do suicídio, em vez de os instigar. Sede consequentes, criminalistas! Ou não matais vós os assassinos só para chocar a sociedade pelo terror?” (obra citada, p. 26-27).
Couerderoy denunciou explicitamente, antes de se matar, a hipocrisia por trás da condenação do suicídio, contestando o veredito dos dissimulados juízes (inclusive os dos “tribunais” da vida cotidiana) com a pergunta retórica fundamental: por que o “querer morrer”, como um ato concreto de vontade individual, seria mais chocante do que o “dever morrer”, como pena imputada pelo Estado, expressão abstrata de uma suposta razão coletiva? Indo direto ao “xis” da contradição, por que “irracional” seria o indivíduo que, no papel de seu próprio julgador, se “absolve” ao se matar, mas não a sociedade que o condena, em sentido literal ou figurado, à pena de morte? Não foi por mera casualidade, pois, que o jornal noticiou a “morte”, e não o “suicídio” da tricampeã americana de ciclismo: a “falta do dizer”, por paradoxal que pareça, diz, sob a forma do silêncio, que é permitido morrer (porque, afinal, não se pode evitar a morte), mas que é proibido se matar (porque, afinal, não se pode aceitar o suicídio).
Levando tudo isso em conta, o “estigma” – fabricado historicamente e enraizado culturalmente – ajuda a ponderar sobre o “enigma”, contribuindo para explicar por que “o suicídio é deixado de lado”, por que “acham que deve ficar no âmbito privado” (como bem problematizou Leandra Zonzini). A propósito, sem esquecer o terceiro exemplo, isso ajuda também a entender um pouco melhor por que as mães e pais enlutados quase que só usam o verbo pronominal “suicidar-se”, ou o reflexivo “matar-se”, ainda assim com reservas, na esfera privada: entre si, com os filhos (irmãos dos suicidas), ou com os cúmplices de dor da irreparável perda nos grupos temáticos do Facebook. Enfim, nesses desdobramentos do silêncio, nessas camadas de significado entre o “dizer” e o “não dizer”, é bastante sintomático que a “falta do dizer” seja regra na vida pública, e que o “dizer da falta” seja dito – em voz baixa, em tom de desabafo – “entre quatro paredes” (como na peça de Sartre, “o inferno são os outros”).
Abrindo parêntese, nesse discurso do “dizer da falta” das mães e pais enlutados, as “formas do silêncio” se apresentam em duas dimensões distintas, mas complementares. Recorrendo novamente à Eni Orlandi, vejo aí não só “as palavras silenciadas que se guardam no segredo, sem dizer”, mas também que “o silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge” (obra citada, p. 72). Este último é da ordem do impossível de nomear, que implica a impotência do verbo para “fixar as vertigens”, para descrever o inominável (como diria Rimbaud). O primeiro é o que nos interessa aqui particularmente, no recorte específico deste artigo: a questão é entender o “silenciamento” institucional, que se manifesta, por exemplo, na manchete comentada pelo Régis. Para refletirmos sobre isso, destaco a seguinte passagem da obra de Guillon e Bonniec:
“O suicídio produz com efeito uma ação de tão profunda radicalidade que corre sempre o risco de fazer abrir os olhos a respeito dos aspectos mais verdadeiros da impossibilidade de se viver plenamente, ação essa que evidencia, sem qualquer ambiguidade, as causas da miséria da vida e os obstáculos erigidos perante as tentativas de superação dessa miséria. O suicídio é sempre um ato que projeta uma cruel luz por cima da nudez do rei, dela revelando as verdadeiras feições; e é por via desta sua capacidade de incidir profundamente sobre as consciências, de revelar a essência da sobrevivência, que o suicídio invariavelmente é condenado.” (Claude Guillon e Yves Le Bonniec, “Suicídio: modo de usar”, Antígona, Lisboa, 1990, p. 301).
Paulo Cesar de Carvalho é professor da ECA e do Anglo Vestibulares, cantor, músico e letrista, publicou, entre outros, o livro de poemas Toque de Letra e tem obras inseridas em antologias editadas no Brasil e em Portugal.