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Wilson Simonal e a ditabranca

O que segue aqui, até que enfim, é uma reportagem 100% inédita sobre a fábula de Wilson Simonal, que anda novamente na moda por estes tempos. Trabalhei nela durante a primeira metade de 2008, mas a dita cuja acabou nunca sendo publicada. Em linhas gerais, o texto final é fiel ao que parei de escrever em 22 de julho de 2008. Recebeu alguns acréscimos porque estava inconcluso, mas acréscimos que dizem respeito basicamente a atualizações necessárias e à inserção de mais depoimentos.

Enquanto adicionava tais depoimentos tendo um blog em mente, percebi que alguns deles eu não teria colocado no texto se fosse destinado a algum veículo da “grande” imprensa − não sei se por falta de coragem minha ou se porque não seriam publicados mesmo (nem o texto seria publicado grande assim). A propósito, os dois últimos parágrafos não existiam, foram escritos agora.

Será fácil perceber que o título acima não se ajusta perfeitamente ao conteúdo do texto (na imprensa tradicional isso também acontece com frequência). Mas, dados acontecimentos dos últimos tempos, não me parece impertinente.1

Dois lembretes: a) eu não tinha me de dado conta, mas publiquei este texto em 25 de junho de 2009, o mesmo dia do aniversário da morte de Simonal; b) em seguida morreu Michael Jackson, no mesmo dia da morte de Simonal. Como Wilson, Michael sofreu intensamente durante uma parte considerável do tempo que passou aqui. E, negro tragicamente embranquecido, foi-se pouco tempo depois da chegada de Barack Obama.

1999

Tocou o meu ramal telefônico no quarto andar da redação. Atendi. Era ligação lá de baixo, de uma das recepcionistas da Folha de S.Paulo, onde eu trabalhava. O cantor Wilson Simonal estava no saguão do jornal. Furioso, fora de si.

Pretenso Clark Kent de caricatura, vesti minha capa fajuta de super-herói de araque e desci para conversar com ele. Já que eu era o autor da entrevista que enfurecera um dos dois cantores brasileiros mais populares dos anos 1960 (o outro se chama Roberto Carlos), cabia a mim proteger e defender o jornal, a instituição, o prédio, os proprietários – e, bem, a mim mesmo – contra a (suposta) fera.

O que eu e Simonal conversamos, não faço a mínima ideia. Apaguei da memória, bloqueei. Só sei que não tive a gentileza e a generosidade de convidá-lo para entrar, sentar-se, tomar um café (bem, acho que eu não me sentia mesmo muito “dono da casa”). E que aparei sozinho, ali mesmo no saguão, a emoção e a revolta do artista contra a entrevista que a Folha publicara no dia 21 de maio daquele ano e, de modo bem mais amplo, contra o exílio, o banimento, a morte de corpo presente que o Brasil lhe impunha desde ao menos 1974.

Lembro que, de transtornado no início, ele foi pouco a pouco serenando, ou melhor, deixando-se vencer pelo cansaço de uma situação que se repetia a cada nova entrevista, a cada vez que os jornalistas lembrávamos que ele ainda existia. Não esqueço, e jamais esquecerei, a expressão de desconsolo em seus olhos, do início ao fim da “conversa”.

Wilson Simonal, vítima do preconceito
Wilson Simonal, vítima do preconceito

Naqueles dias, eu, por minha parte, sabia pouco, ou quase nada, sobre tudo que acontecera a Simonal entre 1963 e 1974, hiato que o remeteu da ascensão e da fama absoluta ao mais indestrutível ostracismo. Como outros repórteres antes e depois, tateava a “notícia” (ou a não-notícia?) em “investigações” (investigações?) superficiais, desinformadas, crente de que sabia de tudo, sem saber de nada.

Aquela foi uma das quatro ocasiões de minha vida em que estive diante de Wilson Simonal. Logo depois, fui ao show motivador da reportagem “Proscrito, Simonal tenta cantar em SP”, que ele então estreava no teatro do hotel Crowne Plaza. Ao final de uma sôfrega e melancólica apresentação, fui cumprimentá-lo no minúsculo camarim, e o encontrei abandonado numa cadeira, passando mal, de cabeça baixa, olhando o chão. Aceitou meu cumprimento indiferente, sem esboçar reação.

Havia visto o cantor pela primeira vez numa situação fúnebre, em 4 de fevereiro de 1998, quando fui, a trabalho, ao velório de Silvio Caldas (1907-1998), cantor e coautor de Chão de estrelas. Simonal me chamou a atenção porque, apesar de ter sido um ídolo dos anos 1960, vestia-se como cantor de tempos ainda mais idos: terno branco, lenço na lapela e sapato de bico, ou algo parecido (não posso me recordar com precisão). Deixou-me intrigado também porque percebi que eu sabia, mas não sabia, quem era aquela figura extravagante.

Não tinha a menor ideia de que pertencia ao repertório dele em 1967 a píncara pilantragem (Simonal era então o “rei da pilantragem”) “Para, Pedro” (“esse Pedro é uma parada / para, Pedro, Pedro, para”), que minha mãe interiorana cantava rotineiramente para mim quando eu era pequeno. Bem, em 1998, nem minha mãe lembrava mais que um dia havia existido um homem chamado Wilson Simonal.

Fúnebre seria, mais uma vez, a derradeira ocasião em que estive perto dele. Foi no cemitério do Morumbi, em 26 de junho de 2000, no seu enterro. Morreu aos 61 anos, de falência hepática decorrente de alcoolismo.

Noutras palavras, a morte perpassou todo e qualquer contato que tive com o Roberto Carlos negro, enquanto ele vivia.

2009

Todas essas imagens zanzam por minha mente sempre que assisto ao excepcional documentário Simonal – ninguém sabe o duro que dei, dirigido por Claudio Manoel, o Seu Creysson do humorístico global Casseta & Planeta, em parceria com os jovens Micael Langer e Calvito Leal, ex-funcionários da Conspiração Filmes.

O documentário não fornece apenas dados novos sobre a tragédia de erros e a sucessão de abusos que levaram o Frank Sinatra brasileiro (e preto) ao desterro, ao autodesterro e ao desterro outra vez, em motocontínuo. É precioso, também, porque oferece a primeira oportunidade, desde 1971, de (re)ver Simonal cheio de vida, em movimento, em cores ou em preto-e-branco, em diversas cenas de alto impacto musical.

Para quem, como eu, não viu Simonal ao vivo e em ação, há de ser a primeira chance para chegar perto de entender o poder comunicativo de um cantor-entertainer-apresentador televisivo que condensava, em si, qualidades (e/ou cacoetes) de personagens tão variados quanto Frank Sinatra, Agostinho dos Santos, Sammy Davis Jr., Cyro Monteiro, Ray Charles, Lúcio Alves, Harry Belafonte, Dick Farney, Chris Montez, João Gilberto, Chacrinha, Hebe Camargo, Silvio Santos, Roberto Carlos, Elis Regina, Sergio Mendes, Jorge Ben etc. De quebra, é senha perturbadora e incômoda para a compreensão um pouquinho menos superficial de um Brasil ditatorial que ainda reluta em se extinguir por completo.

“O filme se chama Ninguém sabe o duro que dei, mas também poderia ser Ninguém sabe o mole que dei”, diz Claudio Manoel. O que voltou à tona agora em imagens subsidiadas pela Globo Filmes e pela produtora TVZero (do perfurante documentário A pessoa é para o que nasce) teria feição de drama shakespeareano ou freudiano, ou de tragédia épica hollywoodiana, se não fosse ambientado na chamada “vida real”, aqui no Brasil, poucas décadas atrás.

Não foi ficção, embora pareça fábula. Uma eletrizante história de ascensão e queda levou ao estrelato o garoto pobre que passou por favela, fome e rua, filho de mãe empregada doméstica e pai ausente. Simonal despontou em 1961, e por essa época a rotunda crítica teatral (branca) Bárbara Heliodora foi patroa de dona Maria (negra), que queria ver o filho cadete seguir carreira no Exército e, de início, rejeitava suas atividades musicais.

Na curva de ascensão e queda desse Ziggy Stardust tropical (e preto), o pico aconteceu em 1969, quando, escalado para abrir um show de Sergio Mendes no Maracanãzinho, Simonal papou o dono da noite, perfeitamente sintonizado com uma plateia de mais de 20 mil espectadores. O vale da curva aconteceria em novembro de 1974, quando foi condenado e preso, como numa confirmação definitiva da pecha de delator, disseminada em 1971 a partir do semanário O Pasquim. Entendido como informante da ditadura, foi condenado a cinco anos e quatro meses, por crime de extorsão. Atenção: pela Justiça da mesma ditadura de quem seria colaborador.

Se é ponto pacífico que 1969 foi o ápice comercial do artista, Marcos Valle tem uma história que amplia esse arco. Aconteceu em 1963, quando Valle foi levado a mostrar suas músicas à gravadora Odeon (onde Simonal iniciara trajetória fonográfica). “Quando cheguei à sala do diretor musical, Milton Miranda, ali estavam ele, um outro diretor chamado Ribamar, Roberto Menescal e Simonal”, lembra. “Simonal era considerado naquele momento, pelo que vi, o artista principal, a que estavam dando mais atenção. E estava ali para me ouvir. Como era da moderna música brasileira, pediram que fosse me ouvir.”

O jovem Valle se considerava compositor (de bossa nova) e nem pensava em se tornar cantor. Mas Miranda anunciou ali mesmo sua contratação, também para cantar. “Ele disse: ‘Você está contratado’. Meu primeiro susto foi grande. Mas o Simonal foi adiante e falou: ‘É isso mesmo, garoto. Você está contratado’. Quer dizer, ele tinha uma força muito grande ali”.

O sucesso de Simonal começou a se consolidar quando ele deixou de lado o início nos redutos “sofisticados” da bossa e do “Beco das Garrafas” e partiu para um sólido projeto de popularização e se forjou em relações simbióticas com a política e a polícia da ditadura militar.

Nisso, teve como outra parceira simbiótica e coprotagonista crucial uma personagem quase sempre protegida pela penumbra de autoimposta invisibilidade, que nem era tão conhecida por esse nome no tempo de Simonal, mas hoje chamamos de Mídia, com M maiúsculo nem sempre merecido. Foi o conjunto dos meios de comunicação – música, televisão, rádio, jornalismo, publicidade, futebol – que constituiu os tentáculos do polvo Simonal, e enforcou-o (ou amputou um de seus próprios tentáculos) quando, na corcova entre os generais Médici e Geisel, a barra pesou de vez. Vejamos.

1966

Simonal iniciava a etapa mais fulminante de sua ascensão. Apresentava o programa Show em Simonal na então hegemônica TV Record, do qual os progressistas Jô Soares e Chico Anysio eram redatores. Numa cena do documentário, os também progressistas Geraldo Vandré e Gilberto Gil (esse às gargalhadas) aparecem integrados à plateia enlevada de um show em Simonal.

Foi ali que ele se encontrou com o conjunto (inicialmente) samba-jazz Som 3, de Cesar Camargo Mariano, futuro arranjador e marido de uma pupila de Simonal chamada Elis Regina. O primeiro produto dessa associação em LP foi Vou deixar cair, pedra fundadora do estilo pilantragem, sob a retaguarda do comunicador Carlos Imperial (que conduzira os primeiros passos artísticos de Roberto Carlos e tivera como secretários particulares os jovens Simonal e Erasmo Carlos) e do compositor Nonato Buzar. Na capa do LP, o bonequinho Mug aparecia como artefato mercadológico de vanguarda, matraqueado em palcos e telas por Simonal e Chico Buarque, ambos empresariados à época por Roberto Colossi.

Nonato Buzar fala, 43 anos depois, sobre a invenção daquele novo estilo: “Pilantragem é um nome que abomino até hoje. Estávamos eu e Simonal tocando violão, surgiu o estilo, que pertence a mim e a ele. O nome que eu queria era bossa brasileira. O nome não era pejorativo, mas algo me falou dentro que ia ficar pejorativo, tanto que ficou. Pilantra é a pessoa que não presta. Se o nome fosse bossa brasileira, até hoje existiria, porque era um estilo bom, humano, que ressuscitava clássicos da música brasileira sem mudar uma nota sequer do original”.

Ainda em 1966, pop, iê-iê-iê, soul, pitadas de bossa-jazz e doses cavalares de alegria infanto-juvenil catapultaram para o gosto popular “Meu limão, meu limoeiro”, “Carango” (dos versos “ninguém sabe o duro que dei / pra ter fonfom trabalhei, trabalhei”) e “Mamãe passou açúcar em mim”. E o domínio de Simonal sobre o público se ampliou entre pilantragens em profusão, como “Os escravos de Jó”, “Vesti azul”, “Nem vem que não tem” (todas de 1967), “Zazueira” (1968) e “País tropical” (1969). Nessa última, criada por Jorge Ben, Simonal encurtava palavras e transformava em jargão nacional o apelido Patropi como sinônimo de Brasil.

Eram os tempos do bordão (e da série de discos) “alegria! alegria!”, que Caetano Veloso tomaria emprestado para cimentar a gênese da Tropicália. Um Simonal cada dia mais sorridente, rico e poderoso surfava na marola e definia a Tropicália como uma forma de pilantragem. Carlos Imperial tentava rivalizar com o grupo baiano e lançava, em 1968, o disco Pilantrália, creditado à Superior Ordem da Pilantragem Avançada, S.O.P.A. (“nem vem de garfo que hoje é dia de sopa”, ou “de S.O.P.A.”, cantava Simonal desde o ano anterior, em “Nem vem que não tem”).

O programa de primeiro aniversário do Show em Simonal ficou eternizado naquele que deve ser o primeiro LP duplo da indústria fonográfica brasileira, primazia mais tarde reivindicada, a bordo dos esquecimentos, por Fatal (1971), de Gal Costa, e até pelo posterior Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges.

Ouvido hoje, o disco de 1967 espanta. Durante a leitura de um fictício exemplar do Jornal da Tarde no ano 2000, o entertainer celebrava “o imperialismo do samba de breque”, citava o ex-presidente Juscelino Kubitschek (cassado pelo regime militar em 1964) e cutucava a ditadura, não se sabe se com ou sem intenção, ao ler a falsa notícia de que “o prefeito Faria Lima anuncia que ficará só mais seis meses no poder”.

Primor de ambiguidade e ironia, o LP intercalava inflamadas canções de protesto de Vandré, João do Vale e Marcos Valle com slogans e jingles comerciais de Philips, Kolynos, Gilette, Lux e TV Record. Sarcástico, Simonal oferecia duas opções ao ouvinte: “Você precisa confiar nos seus compositores” e “na música brasileira”, ou então “você pode confiar na Shell”.

Fortalecido, Simonal se dava a tais ousadias, e passou a sublinhar o racismo brasileiro em toda entrevista que concedia, e também na tela da TV. Ninguém sabe o duro que dei coleciona imagens fortes a esse respeito. Na mais leve, o cantor aparece num programa caracterizado como “Lobo bobo”, junto à “Chapeuzinho” Vanusa. Na mais chocante, lidera uma pantomima em que aparece acuado por uma turba de brancos, enquanto canta: “Minha pele é escura / e mais negra minha vida / negro sem cultura / vai ganhar bebida / eu sou preto, negro, negro / mas, por Deus, também sou gente”.

O ápice do Simonal antirracista se deu ainda em 1967, na gravação de Tributo a Martin Luther King (“cada negro que for / mais um negro virá / para lutar com sangue ou não”), dele e de Ronaldo Bôscoli. Na entrevista de 1999, me contou (e eu publiquei sem muita noção e com incrédula parcimônia) que a canção lhe rendeu uma das primeiras “visitas” ao famigerado Departamento de Ordem Política e Social (Dops), futuro nicho clandestino de tortura e terror de Estado. “Quiseram censurar a música, alegaram que era racista e que eu estava botando os negros contra os brancos”, afirmou. “Ouvi o que o censor falou. Falou, falou, falou, ah, por que o ambiente artístico, não sei o quê’’.

1969

Em julho, pouco depois da primeira consagração no Maracanãzinho, o artista foi a estrela da edição nº 4 d’O Pasquim, que nos primeiros tempos parecia ambiguamente fascinado pelo ídolo negro. A chamada daquela edição era “Simonal: ‘não sou racista’ (Simonal conta tudo)”. A anárquica patota, formada por Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral (pai do atual governador do Rio de Janeiro) e Pinheiro Guimarães, o entrevistou em tom jocoso, e insinuava que, sim, ele era racista. “A imagem pública que se tem de você é a do cara que está tranquilo e que tem mordomo que acorda você às duas da tarde, com caviar etc.”, contra-atacava Tarso.

Ainda assim, o tabloide propagandeou à farta o filme É Simonal, de outro membro da turma, Domingos de Oliveira. Construída como uma versão negra dos filmes de matinê de Roberto Carlos, a produção implodiria em 1971 diante do início da derrocada do protagonista. Esta reportagem procurou Domingos, que se declarou “suspeito para opinar sobre esse assunto” e mais preferiu não falar.

“O público pagou, alguém tem que morrer”, Simonal profetizava na chanchada meio autobiográfica, até hoje semi-inédita. “Eu convivia com os caras do Pasquim. Era um porre, eles brigavam tanto entre eles”, me disse o cantor na entrevista de 1999. Por favor, peço atenção, este ponto é importante, embora eu não tivesse bagagem para percebê-lo dez anos atrás: “Eu convivia com os caras do Pasquim”.

Na esteira do Maracanãzinho, o cantor assinou contrato de vulto para ser garoto-propaganda da Shell. O patrocínio a Simonal se misturava com o patrocínio à seleção brasileira da Copa de 1970: a Shell o levaria ao México com seu grande amigo Pelé e cia., ele na condição de cantor oficial do Brasil na competição.

Na imprensa, Simonal aparecia ao lado do “gerente de comunicações e marketing” da Shell, João Carlos Magaldi, futuro diretor da Central Globo de Comunicações. O Jornal da Tarde noticiou o acordo, em 17 de setembro de 1969, como “o mais fabuloso contrato de publicidade já assinado” – se hoje certa cultura brasileira é fortemente subsidiada pela Petrobrás, naquele tempo a música de Simonal já era, em parte, subproduto do petróleo.

Magaldi fora um dos vértices da agência publicitária Magaldi, Maia & Prosperi (MM&P), que em 1965 esculpiu a coqueluche nacional do programa Jovem Guarda, comandado por Roberto, Erasmo e Wanderléa na Record. Reza uma entre várias lendas que Carlito Maia, funcionário da Globo a partir de 1974 e futuro fundador do PT, extraíra o nome de batismo “jovem guarda” de uma frase do líder socialista russo Lênin. Carlos Prosperi, o outro publicitário da trinca, seria um dos fundadores d’O Pasquim, lançado em junho de 1969. Segundo escreve Jaguar no primeiro volume da antologia do tabloide, editado em 2006, O Pasquim foi gestado “na casa do Magaldi, diretor da TV Globo”.

A montagem das peças desse jogo de xadrez tira o chão da versão maniqueísta da história, quase sempre predominante, de que a origem dos anos de chumbo de Simonal estaria na oposição inegociável entre ele, à direita, e o exército d’O Pasquim, à esquerda. De Simonal e Roberto Carlos a Ziraldo e Jaguar, de homens de negócios e publicitários a jornalistas e músicos, de esquerdistas a direitistas ou “apolíticos”, todos eram filhotes da mesma ninhada (não custa repetir, Simonal dividira até empresário com Chico Buarque, futuro herói vitalício da esquerda). Em depoimento ao documentário, Jaguar parece desenhar instintivamente essa conclusão, ao afirmar num riso tristonho, diante de uma garrafa de cerveja: “Ele morreu de cirrose, podia ter sido eu”.

1970

Começava a se desenhar o enredo intrincado que culminaria no grande cisma e no coroamento (e autocoroamento) de Simonal como bode expiatório preferencial da “elite pensante” brasileira, num arco que apanharia todo o espectro ideológico. No meio do ano, faturamos o caneco no México, e o presidente Médici ganhou fôlego ilimitado para galvanizar a retórica radical do ufanismo pelo “Brasil grande”, “ame-o ou deixe-o”.

Em outubro, o V Festival Internacional da Canção (FIC) serviria de plataforma para uma ascendente Rede Globo transmitir imagens do “Brasil grande” para o planeta. Médici orquestrava o coro dos contentes, em entrevistas coletivas à imprensa internacional e em foto cumprimentando o vencedor da etapa nacional do festival, Toni Tornado, cantor (negro) de “BR-3”. Os compositores da canção vencedora eram Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, também autores (brancos) de um dos maiores sucessos de Simonal, “Sá Marina’(1968). Mas, poses fotográficas à parte, alguma coisa fugia ao controle do ambíguo consórcio verde-amarelo Globo-ditadura.

Inesperadamente, a bandeira brasileira se tingia de preto. Um tufão black power varria o FIC, e não era só Toni Tornado com o símbolo dos Panteras Negras desenhado no peito nu e namorando às escondidas uma das apresentadoras do festival, a atriz (e loira) Arlete Salles. Outro tornado no V FIC era Erlon Chaves, maestro (negro) ligado a Simonal, a Elis e à Globo e um dos contratados da Simonal Produções Artísticas, a mais nova empreitada do rei da pilantragem. Namorado eventual da ex-miss Brasil (loira) Vera Fischer, Erlon regeu uma interpretação anárquica de “Eu também quero mocotó”, do soft-black Jorge Ben, à frente de um grande coral vestido em batas africanas.

Na etapa nacional, o “Mocotó” de Erlon Chaves conseguiu apenas a sexta colocação. Mesmo assim, foi convocado a se reapresentar na final internacional. Dessa vez, mulheres seminuas (brancas e louras) se integraram ao número, rodeando o maestro e cobrindo-o de beijos, para escândalo da face mais conservadora da sociedade, aí inclusas esposas de generais ancorados em Brasília. Na memória de um dos músicos presentes no palco, João Parahyba, do então nascente Trio Mocotó, a rebeldia foi além: alguns dos integrantes do coro teriam levantado suas batas sem mais nada por baixo, exibindo as bundas ao vivo, em cadeia internacional. Não se conhece registro visual do incidente, e Parahyba parece solitário na lembrança desse detalhe.

Poucos dias depois, Erlon deveria repetir a apresentação a pedido do apresentador Flávio Cavalcanti, em seu programa dominical na TV Tupi. Foi preso antes que o fizesse, como conta Flávio Cavalcanti Jr., hoje diretor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert): “Erlon estava ensaiando, chegaram policiais sem farda. Tiraram ele do chão literalmente, encapuzaram, jogaram numa Veraneio. Ficou num batalhão quatro ou cinco dias, e depois soltaram”.

Cavalcanti Jr. nega a versão de que Erlon tenha sido maltratado na prisão. “Deram um susto nele. Não sofreu tortura, nem entrevista, inquérito, nada. Mas ficou muito apavorado, saiu de lá arrasado, querendo ir embora do Brasil.” De um modo ou de outro, todos os “vitoriosos” daquele FIC perderam o rebolado diante da pesada repressão que se abateu sobre o súbito levante black, ao qual naquele momento até os branquelos Ivan Lins e Wanderléa aderiram.

Ivan, outro contratado da Simonal Produções, emplacou “O amor é o meu país” como vice-campeã da fase nacional do V FIC. Mas a canção despertou discórdia à esquerda, pela ambiguidade exprimida pelo artista iniciante, meio perdido entre o soul inofensivo de amor e a adesão ao “ame-o ou deixe-o”. “A repressão e a censura estavam muito violentas. A classe pensante estava totalmente desorientada. E os militares se apossaram de nossos símbolos – bandeira, hinos, cores, até a palavra ‘país’. Sofri muito com a patrulha. Parei de cantar a canção”, diz hoje Ivan, que, no entanto, conseguiu aos poucos driblar a patrulha e se reinventar.

De resto, a carreira musical de Tornado foi abortada, ou se autoabortou, no nascedouro (ele se tornaria mais tarde ator de novelas da Globo). “Estavam com medo que ele fosse um líder negro que pudesse insuflar a massa negra, causar a turbulência nacional”, diz Tibério Gaspar.

Antonio Adolfo afirma que só recentemente tomou consciência das implicações comportamentais, raciais e políticas em que sua “BR-3”esteve envolvida – quando leu A era dos festivais – uma parábola (Editora 34, 2003), de Zuza Homem de Mello. “Eu não tinha consciência de black power, talvez Tibério tivesse”, diz. “Tinha a coisa do Martin Luther King, os Panteras Negras, mas eu nem sabia que aquele símbolo que o Toni usava era dos Panteras Negras. Para mim era coisa de índio”. Mas observa: “Jorge Ben saiu ileso daquilo tudo, é engraçado. Até Jair Rodrigues foi perseguido. Elis Regina teve que fazer média para não ser presa, lembro dela fazendo propaganda para o Exército”.

Tibério demonstra que, de fato, tinha maior consciência: “O black power começou a aparecer com a gente. Fui chamado no SNI, interrogado por quatro coronéis. Havia um dossiê meu, esquerda, fichário, negócio meio grave, eu quase dancei mesmo”. Segundo ele, o colunista social Ibrahim Sued, d’O Globo, teria espalhado a seguir a falsa informação de que “BR-3” era, na verdade, uma canção sobre drogas, sobre injetar heroína na veia.

Em 1970, a turma d’O Pasquim também entrou na dança. Em novembro, logo após a publicação de uma charge de Jaguar na qual D. Pedro I aparecia gritando “Eu quero mocotó!!” às margens do Ipiranga, quase toda a redação foi em cana. Como expôs a historiadora Beatriz Kushnir no livro Cães de guarda – jornalistas e censores, do AI-5 á Constituição de 1988 (Boitempo, 2004), adiante o governo plantaria agentes dentro da redação para fazer a censura prévia da produção d’O Pasquim. Um deles era o general Juarez Paes Pinto, pai de Helô Pinhero, a “garota de Ipanema” eternizada em música e letra por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Numa relação que poderia surpreender os mais maniqueístas, o censor privava do convívio com os jornalistas, dava conselhos e os chamava de “meus meninos”.

Eminência parda do VI FIC, Simonal via pela primeira vez à sua frente uma maré desfavorável. Segundo defende Toni Tornado em depoimento ao documentário, a virada da maré começara um ano antes, na apresentação com Sergio Mendes no Maracanãzinho: “Foi aí que ele arrasou, foi aí que ele causou a tal da inveja, foi aí que começou a bronca”.

“Ele fazia o jogo, era submisso. Não tinha visão política. Temiam que Toni Tornado tivesse”, opina Tibério. “Mas Simonal ficou ameaçado. Era o maior cantor do Brasil e estava prestes a deslanchar uma carreira internacional. Era a bola da vez.”

De fato, 1970 poderia ter marcado o início da internacionalização de Simonal, se o pássaro negro não acabasse abatido em pleno voo. Stevie Wonder abria seu show naquele ano cantando “Sá Marina” em inglês, com o nome “Pretty World (está gravada em Stevie Wonder Live, 1970). E esteve com ele aqui no Brasil, como lembra o filho mais velho do homem, Wilson Simoninha: “Houve um almoço para ele, eu me lembro porque era um cego andando ali pela minha casa. Miéle e Ronaldo Bôscoli falavam que à noite eles fizeram uma jam que foi até o dia raiar, meu pai, Elis e Stevie Wonder”.

No mesmo ano, em visita ao Brasil, uma Sarah Vaughan embevecida (e negra) duetou com Simonal na TV, em imagens entortantes, de emocionar, recuperadas em Ninguém sabe o duro que dei. Ao mesmo tempo, a atriz louríssima Brigitte Bardot, também cantora bissexta, regravou Nem vem que não tem em francês, como Tu Veux Ou Tu Veux Pas.
E houve mais. Ainda em 1970, também veio ao Brasil para o V FIC o maestro Quincy Jones, futuro dínamo por trás do estrondo de Thriller (1982), de um certo Michael Jackson. Diz Simoninha: “Eu não me lembro, mas sei que Quincy ficou aqui com Simonal. Saíam direto. Sempre ouvi meu pai dizer que um dos motivos para sua saída da Odeon foi que a gravadora não quis fazer um disco dele com Quincy. Ficou puto”.

Simonal, o derradeiro disco pela gravadora onde se construíra, saiu em dezembro, pela primeira vez dissociado do imaginário da pilantragem. Mesmo sob a barra pesada do FIC, Simonal pisava dessa vez no acelerador do black power. O funk-baião “Destino e eesatino de Severino Nonô na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Oh Yeah!)”, de Renato Luiz, soava agressivo no limite da grosseria, explorando as peripécias de um astro pop ultracomercial nascido “no bairro de São Caetano, cidade de São Salvador”, que “foi pro Rio levando a gaytarra e a fome” e fez fama americanizada “cheio de renda e babado e cabelão de mulher”. À época, a minoria negra e a minoria homossexual não tocavam na mesma banda (hoje tocam?).

O soul “Moro no fim da rua”, de Luis Vagner e Tom Gomes, é outro que retroativamente soa profético, pela letra e pelos gritos de Simonal ao final, “I don’t want to be alone”. Gomes, hoje jornalista ligado à indústria fonográfica, conta a história: “Luis Vagner morava no Solar da Fossa, no fim da rua. Era uma república maravilhosa, de jornalistas, artistas plásticos. Lá moravam Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Diniz. Luis começou a música, ‘moro lá / no fim da rua onde tudo é escuro demais / escuro demais’, e eu completei. Mas não houve preocupação nossa de fazer para o Simonal. Depois é que ele gravou, para minha felicidade”.

O solo de guitarra em “Moro no fim da rua” era do futuro astro samba-soul Hyldon, que assim remete à “alienação” política de sua turma e à derrocada de Simonal: “Aquela história nunca me convenceu, mas era só intuição. ‘Dedo-duro’ todo mundo falava, quer dizer, a galera da zona Sul falava, o pessoal da MPB. Na galera da jovem guarda, do rock, no meio artístico mais popular isso passou batido. Todo mundo continuava gostando e admirando Simonal”.

Outra faixa notável do LP de 1970 é “Deixa o mundo e o sol entrar”, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, um ataque à monogamia e à prisão do casamento, pura contracultura, de linguagem até hoje avançada. Transtornado em black power à brasileira, pronto para o mundo, foi aí que Simonal abortou. Como? Por quê?

1971

O astro começou o ano participando de um novo programa da Globo, o Som Livre Exportação, liderado por Elis Regina e Ivan Lins. “Naquele começo dos anos 1070, quando entrou o Garrastazu Médici, nosso Pinochetzinho, a barra estava muito, mas muito pesada”, lembra Ivan. “Havia muito medo no ar. Em janeiro, começou o programa. Pelo tamanho da censura que rolava dentro da Globo, a ‘exportação’ bem que poderia ser traduzida por ‘exílio’. Chegamos a conversar algumas vezes nos bastidores, e Simonal era totalmente apolítico. Não queria saber do que acontecia por trás do pano. Eu também, nessa época, não sabia direito”.

Em questão de meses, Simonal seria um dos exilados, sem nem precisar sair de casa. Em 24 de agosto, o cantor migrou da música de diversão para o noticiário policial. Teria descoberto um desfalque na Simonal Produções e suspeitado de Rui Brizola (então sócio de Magaldi e futuro vice-presidente da Traffic Sports) ou de Rafael Viviani, funcionário da empresa. Com a aparente conivência e o carro de Simonal, Viviani foi sequestrado, levado ao Dops e torturado, numa sequência de eventos comandada e/ou testemunhada por dois, ou três, ou quatro, ou mais agentes do órgão, todos supostamente “amigos” do artista.

No Correio da Manhã do dia 29, surgiram informações de que Viviani fora “espancado e seviciado com choques elétricos numa dependência policial”, em reportagem aparentemente fundada num depoimento do cantor à polícia – pois ninguém entrevistou Simonal naqueles dias. No depoimento, o cantor teria dito sofrer ameaças anônimas por telefone de pessoas que se diziam terroristas, e que “o que os terroristas querem é meu dinheiro para financiar seus movimentos”. (O documentário reencontra Viviani nos anos 2000, numa periferia paulistana, em frangalhos. Ele corrobora a tortura, e interpreta as declarações do ex-patrão à polícia como motivadas pela orientação de advogados.)

Numa lufada de vento, o garoto-propaganda de Médici, do Patropi, do “Brasil, ame-o ou deixe-o” ganhava as folhas policiais como protagonista de uma trama feita de vários temas-tabu, daqueles que a ditadura dava os dois braços, esquerdo e direito, para manter trancafiados no porão. À esquerda, subversão e terrorismo. À direita, tortura e choques elétricos numa dependência policial.

Em setembro, O Pasquim publicou o desenho do “magnífico” dedo indicador apontado de uma mão pintada de preto, e acrescentou: “Como todos sabem, o dedo de Simonal é hoje mais famoso do que sua voz”.

João Parahyba, que estivera no México com Simonal e naquele período tinha seu Trio Mocotó apadrinhado pelo Pasquim, avalia: “Adoro Jaguar, Millôr Fernandes, Paulo Francis e Henfil, mas Jaguar foi foda com Simonal. Dedo-duro era o cacete. O Pasquim pôs na frigideira, era um prato feito. Serviu talvez de informação nanica para a grande network acabar com a raça de Simonal. Foi para a boca do povo, porque informação mal dada passa de um para o outro”.

Assessora de Flávio Cavalcanti nos anos 1970, a jornalista Léa Penteado formulou uma versão mais incendiária para o caso, na biografia do apresentador que lançou em 1993. “Só depois de muitos anos [Simonal] soube, através de amigos, que o dinheiro desviado por Viviani era repassado a Dulce Maia, irmã do publicitário Carlito Maia, conhecida militante de esquerda, com o objetivo de financiar guerrilhas”, Léa escreveu e publicou em Um instante, maestro! (Record).

Ligada a Carlos Lamarca, Dulce foi torturada e banida do país em 1970. “Esses dados foram extraídos de uma entrevista que fiz com Simonal, em 1991 ou 1992”, me contou em 2008, Léa, então secretária de Cultura de Santa Cruz Cabrália (BA). A hipótese que lançou até hoje não foi comprovada. Nem tampouco foi testada ou investigada, seja na imprensa ou noutro canto.

Furioso até hoje com o que classifica como “inveja” contra Simonal, Nonato Buzar (à época compositor de trilhas de novelas da Globo) joga a esmo mais alguns tijolos no muro inconcluso. Sobre o momento em que o parceiro descobriu o suposto desfalque, ele diz: “Simonal foi procurar o Rui Brizola, e não encontrava. Todo mundo tem amigo detetive, da polícia, quem não tem? Foram procurar o Rui em vários lugares, inclusive na casa do Carlito Maia, e lá encontraram coisas subversivas. Eu fui preso três vezes, porque era fundamentalmente contra a ditadura, sempre fui. Simonal nunca nem pensou nisso. Prenderam ele, aí disseram que caguetou o Carlito. Ele caguetou sem querer”.

Nonato diz que não quis dar depoimento em Ninguém sabe o duro que dei, e explica a razão: “Porque eu tenho medo de mim”. Não é só ele, ao que tudo indica. O codiretor Calvito Leal explica ausências célebres no documentário: “Vários caíram por causa de data, vários não responderam, alguns não toparam. Jorge Ben Jor não deu resposta, Roberto Carlos também não. Nunca era diretamente ‘não quero participar’, era ‘preciso ver’. Tem uma coisa horrível, ninguém gosta de chutar defunto. Mas nunca existiu uma pessoa que levantasse bandeira contra o Simonal, era sempre à boca pequena. Não existia o anti-Simonal” (não são só os contrários que se calam sobre as desventuras de Simonal, como faz transparecer uma história contada por seu filho caçula, o hoje músico Max de Castro: “Em 1986, fui com meu pai a um show de Roberto Carlos no Maracanãzinho; no final, a gente foi lá atrás; quando Roberto viu meu pai, ficou emocionado; veio, se abraçaram uns 15 minutos chorando sem falar palavra; trocaram uma frase, Roberto foi embora”.)

Léa Penteado interpreta as relações de Simonal com o trio Magaldi-Prosperi-Maia: “Os publicitários viram nele, com todo o sucesso de comunicação, um ótimo garoto-propaganda. Creio que houve muita ingenuidade do Simonal e de todos os artistas daquela época, que não estavam preparados para ganhar tanto dinheiro e ter tanta fama em tão pouco tempo. Não havia profissionais no mercado para assessorar. E até hoje, mesmo tendo ótimos profissionais, às vezes tem alguém que passa a perna no mais fraco”.

Simonal morreria culpando os ex-parceiros comerciais pelo desterro que ele, afinal, também foi responsável por provocar. Passou a acusar Magaldi de tê-lo roubado e a classificá-lo como responsável por barrar qualquer acesso dele à Globo, já que o publicitário virara um dos todo-poderosos da rede, o homem por trás do “plim-plim” da então autoapelidada “Vênus Platinada”. Magaldi, Maia e Prosperi morreram sem jamais contar em público suas versões para o grande cisma.

As imbricações desses personagens com a Globo explicariam a completa ausência de referência a eles num filme que leva o carimbo da Globo Filmes? Cláudio Manoel sustenta que não: “Quando fomos direto ao Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), o resto virou subtema. O Boni é mais a Globo que o Magaldi. Os filhos dele não quiseram dar a versão deles. Ia desequilibrar, botar no morto uma das possibilidades”.

Em 1999, quatro dias após minha entrevista com Simonal, o Painel do Leitor da Folha publicou a seguinte carta: “Somos filhos de João Carlos Magaldi, maldosamente mencionado pelo senhor Wilson Simonal na entrevista publicada em 21/5. É uma atitude covarde acusar uma pessoa que não pode se defender, pois já está morta. Onde estão as provas de que o nosso pai roubou o sr. Simonal? A história profissional de nosso pai mostra a sua preocupação social, a sua ética e o quanto valorizava o ser humano. Essa tentativa do sr. Simonal de retomar a sua vida profissional denegrindo a imagem de várias pessoas, inclusive de nosso pai, demonstra sua mesquinhez e seu verdadeiro caráter.” Era assinada por Álvaro B. Magaldi e Monica Magaldi Suguihura, que também tentei contatar em 2008, sem qualquer sucesso.

1972

A partir do início do ano, o ex-soberano da pilantrália desapareceu do noticiário, fosse o musical ou o policial. O muro de concreto se erguia rapidamente ao seu redor. Na beirada do abismo, surpreendentemente, foi contratado pela Philips, a mesma gravadora que fomentava Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Jorge Ben, Gal Costa, Tim Maia, Raul Seixas, Rita Lee e dezenas de outros nomes da linha de frente da MPB, sob a direção do francês André Midani, outro personagem de quem Simonal levaria mágoas profundas para a eternidade. “Fui seduzido por um sujeito que veio para acabar”, me disse em 1999, referindo-se ao ex-presidente da gravadora.

No final de 2001, entrevistei Midani para a Folha e perguntei sobre Simonal. Ele afirmou que era “penoso dizer”, mas havia contratado o artista a “pedido” de uma “pessoa muito importante” do governo militar. “Tive que ir artista por artista, entre os mais importantes, explicando que ia ter que contratar o Simonal. Claro, não era um bichinho amado na companhia”, afirmou.

“Toda a MPB, sem exceção, o boicotou. Foi caça às bruxas, um machartismo brasileiro. Tem gente muito pior que ele, que passou em brancas nuvens”, protesta hoje João Parahyba. Max de Castro afirma que a mitologia da queda do pai “foi boa para todo mundo”, da esquerda à direita. “Os que não gostavam dele finalmente se viram livres. Para artista que não era engajado e era alienado foi bom, porque esqueceu a própria covardia”, diz. “Para artistas de esquerda foi bom porque isso dignificou mais ainda a luta deles, que sobreviveram mesmo apesar das delações de suas atividades”.

Procurei Midani novamente em 2008, mas ele se esquivou de nova entrevista acrescentou apenas alguns pontos dispersos, por e-mail: “Que Simonal frequentava o pessoal do Dops, frequentava. Ele devia gostar de frequentar ‘os homens’, certamente lhe dava uma gostosa sensação de poder, e disso ele gostava. Que não consta nos arquivos do Dops nenhuma referência a denúncias que ele teria feito sobre seus colegas, não consta. E a gente nunca ouviu dizer: ‘Fulano foi posto em cana por causa de uma denúncia do Simonal’. Que ele mandou dar uma surra no contador, não tem a menor dúvida, e, como ironiza Jaguar, talvez o contador merecesse receber uma surra”.

Midani também trouxe Magaldi à baila: “Há uma pessoa que, me parece, poderia ter trazido importantes informações, e essa pessoa era Magaldi, que não está mais conosco. Era sócio do Simonal e, consequentemente, teria sido também roubado. A gente nunca ouviu nenhum comentário de sua parte, e no entanto foi Magaldi que deflagrou a campanha contra o ‘dedo-duro’ Simonal”.

Meses mais tarde, entrevistei pessoalmente o ex-diretor da Philips, por conta do livro que ele estava lançando, e voltamos ao assunto. Num trecho até hoje inédito da entrevista, Midani prosseguiu um pouco mais: “A história que conheço, a mais sem gordura, é que Simonal era o rei do país, e foi lá na companhia, e não havia um puto de um dinheiro para ele. Quis saber, chamou lá uns caras do Dops, uns polícias, ‘vão dar uma surra no contador’. Deram uma surra no contador. Você diz, que horrível, deram uma surra no contador. Mas há outros aspectos a considerar. Simonal era um menino completamente ignorante. O dinheiro dele desaparece, ou pelo menos não aparece, não vou dizer que eu faria a mesma coisa, mas entendo uma pessoa de educação muito primária dizer ‘filho da puta, dá uma surra e vamos ver o que é’. E deram uma surra”.

E voltou a ressaltar, de modo mais ou menos enigmático, o que parece considerar o cerne da questão: “O sócio de Simonal quem era? Era o Magaldi. Mas por que Magaldi ficou tão ofendido com a não-pureza política do Simonal? Simonal não era nem de um lugar nem era do outro. Para ele qualquer coisa estava bem. Então o que eu imagino é que tem um pedaço importante dessa história entre Simonal e Magaldi que nunca foi contado, e que só eles dois sabem”. Sabem, mas estão mortos.

Na Philips de Midani, um Simonal já fortemente marginalizado gravou mais três discos entre 1972 e 1974. Caíram em completo vazio, e até hoje não foram observados com atenção ou pelo menos curiosidade (permanecem inéditos em CD). No álbum de 1973, batizado com o hermético nome de Olhaí, blândro… É bufo no birrolho grinza!, Simonal introduzia em meio a uma roda de samba uma enigmática frase: “Eu vô batê pa tu batê pa tua patota”.

1974

O mote seria glosado com grande sucesso popular no samba-rock “Vô batê pa tu”, interpretado por Baiano & Os Novos Caetanos, ou seja, pelos humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues, fantasiados de baianos caricaturais. Os autores de Vô batê pa tu” eram Arnaud e Orlandivo, e a letra dizia que “é papo de altas transações / deduração / um cara louco que dançou com tudo / entregação do dedo de veludo / com quem não tenho grandes ligações”.

O samba-roqueiro Orlandivo explica para confundir, ou confunde para explicar: “A letra era do Arnaud. Acho que ele fez em cima de coisas derivadas de drogas. Há várias dimensões de desconfiança de que podia ser sobre Simonal, ou de que tinha a ver com droga. Mas onde eu andava achavam que ‘Vô batê pa tu’ pegou em cheio no Simonal. Arnaud só ria quando a gente conversava sobre isso”. Não sei explicar por que, mas não cheguei a procurar Arnaud Rodrigues.

Autor gravado por Simonal em 1964 e 1965, Orlandivo evoca uma lembrança dos tempos pré-fama do cantor. “Pouca gente sabe, mas antes de cantar ele trabalhava numa firma de cobrança de cheque sem fundo. Cobrava cheque em bar e restaurante. Depois o cara se torna sucesso, e era o cara que cobrava cheque sem fundo. Na minha cabeça, acho que isso deu margem a outras coisas, ‘esse cara me cobrou diante de todos os meus amigos’”, especula.

Tibério Gaspar, candidato a vereador carioca à esquerda, pelo PC do B, em 2008 (com 388 votos, não se elegeu), adentra nos temas espinhosos da delação e do colaboracionismo: “Era uma época infeliz, um regime de exceção. Não se pode raciocinar com regras de estado de direito em estado de exceção. Os militares exigiam muitas posições, ou você estava a favor ou estava contra. Valia para pessoas e para firmas. Falar que o César de Alencar era informante? Ele tinha programa estourado na Rádio Nacional, todos iam cantar lá. E a Rede Globo, não foi o porta-voz da ditadura, não passava o Amaral Netto enquanto matavam gente no Araguaia? Não eram cúmplices também? Simonal foi o menor mal”.

Depois de três anos de sumiço do olho público, o ex-rei da pilantragem voltou aos jornais de modo dramático, em 13 de novembro de 1974, ao ser condenado pelo juiz João de Deus Lacerda Mena Barreto a cinco anos e quatro meses de prisão, mais um ano de internação em colônia agrícola. Amigo íntimo do cantor e homem que se dizia de esquerda, Chico Anysio prestou-lhe amparo, e é até hoje seu ferrenho defensor, como se pode constatar no documentário.

O noticiário daqueles dias foi dos mais desencontrados. Informações picotadas davam conta de que a condenação ocorrera pela madrugada, sem a presença do réu. Declarações do cantor só apareceram no jornal Última Hora, onde Carlos Imperial era colunista. “O delegado Sérgio Fleury é meu chapinha e tudo vai correr dentro do figurino”, teria dito Simonal. Sérgio Paranhos Fleury, sanguinário delegado do Dops, chefiara a captura e morte de Carlos Marighella, em 1969. Antes, fora segurança da TV Record e de Roberto Carlos, no auge do Jovem Guarda.

Dois supostos agentes do Dops, acusados de terem participado da captura e tortura de Viviani, foram condenados à mesma pena. O Globo os apresentou um como “industrial trabalhando em torrefação de amendoim”, outro como “vigia de um departamento do Estado”. Estavam foragidos, e não se leu na imprensa notícia sobre a prisão dos dois.

Mas foi absolvido um outro personagem, Mário Borges, descrito nos jornais ora como “inspetor do Ministério da Indústria e Comércio”, ora como “chefe da Seção de Buscas Ostensivas do Dops” e, portanto, suposto chefe dos agentes punidos. Era invariavelmente apresentado nas reportagens como “amigo” de Simonal.

Talvez não fosse bem isso. Segundo o livro de Léa Penteado, Borges era segurança pessoal de Simonal. Segundo a autora, Borges teria acusado o “patrão” de informante tentando se livrar e justificar o fato de trabalhar como segurança nas horas vagas – como talvez aconteça até hoje, entre poderosos à procura de proteção e policiais à procura de bicos complementadores de salário. Na sentença, parcialmente reproduzida n’O Globo, o juiz afirmava que o próprio Simonal se definira como informante do Dops, e usava o “fato confirmado” como ponto de apoio para condená-lo.

Ou seja, um juiz imerso nas entranhas da ditadura condenava o réu famoso, entre outros motivos, por ser informante da… ditadura. Mas fazia malabarismos para absolver Borges, presumido executor da infração, e engavetava o termo “tortura”. Compreende?

Quaisquer que fossem as relações reais de Simonal e Borges com a ditadura, aparentemente ele e seu “amigo” tentavam jogar a batata quente um na mão do outro. Ela terminou na mão de Simonal. E não era batata quente, e sim uma banana de dinamite, cuja explosão terminaria de soterrar o cantor então já repudiado nos círculos de músicos e jornalistas aos quais antes pertencera. A ditadura, que tanto gostara de se colar à imagem de Simonal, enfim abandonava o bode expiatório ao próprio azar. “Culpado”, ele pagaria pelos próprios erros e abusos, mas também pelos de uma legião de “inocentes”.

Condenado, Simonal entregou-se imediatamente. Viajou de São Paulo ao Rio e foi apanhado na pista do aeroporto, sem passar pelo saguão. A polícia, segundo a imprensa, queria evitar qualquer pronunciamento do cantor. Pergunta até hoje nunca respondida (ou formulada): por quê?

Sem acesso a Simonal, o jornalismo papagueou versões a granel, menos a do réu. No dia 13 de novembro, o cantor chegou para ouvir a sentença do juiz segurando um exemplar do livro Universo em desencanto, que naquele momento fazia as cabeças de Tibério Gaspar e Tim Maia, ou melhor, Tim Maia Racional. Presentes, Flávio Cavalcanti, Erlon Chaves e Agnaldo Timóteo choraram abraçados ao condenado.

Cavalcanti Jr. narra os acontecimentos do dia seguinte: “Sei que era dia 14 porque haveria eleições no dia seguinte, 15 de novembro de 1974 (a data marcou o primeiro grande revés eleitoral da ditadura militar). Íamos subir para a casa de Petrópolis, e Erlon me disse que ia comprar uns discos para levar para Simonal na prisão. Teve um infarto e morreu na loja de discos”. Entre as módicas declarações de Simonal que surgiram nos jornais nos dias seguintes, estava esta: “Ele morreu por minha causa”.

Após 12 dias, o cantor-presidiário foi libertado por habeas corpus e, num segundo julgamento, teve a pena abrandada (pelo mesmo juiz Mena Barreto, segundo Léa Penteado) para seis meses de detenção, que cumpriu em liberdade. Morreria se queixando de que a imprensa nunca publicara uma linha sobre o depoimento de um tal inspetor Vasconcelos, chefe de Borges, que teria desmentido a condição de “informante” do cantor.

Seguiu feito morto-vivo, num calvário de discos e shows ignorados pela mídia, quando não reportados só como pretextos para que os jornalistas abordassem a pena perpétua informal – como foi o caso de minha entrevista em 1999. O Brasil se tornou sua prisão domiciliar a céu aberto, e nós, os “inocentes” (e/ou cegos, surdos e mudos), vestimos a carapuça de carcereiros vitalícios do “vilão” oficial da nação.

Mesmo que tenha sido colaborador ou informante da ditadura em alguma instância, Wilson Simonal de Castro morreu sem conseguir compreender por que jamais foi perdoado. Afinal, o perdão (se é que cabe esse termo) foi amplo, geral e irrestrito para a maioria dos colaboradores do regime – incluindo os proprietários dos meios de comunicação que veiculavam (e vez por outra ainda veiculam) julgamentos sumários contra o bode preto, ex-pobre, depois ex-rico. E Simonal devia saber que alguns de seus algozes colaboraram com a ditadura com empenho bem maior.

A história continua inconclusa, com muitas peças ainda a serem encaixadas. A mim, particularmente, alinhar aqui tantas informações intrincadas parece importante de algum modo estranho, e me ajuda a compreender por que até hoje, dez anos mais tarde, ainda me perturba e incomoda e machuca tanto a lembrança daqueles minutos desencontrados passados ao lado de Simonal no saguão de entrada da Folha. Eu nem sequer imaginava na ocasião, mas meu papel ali era de carrasco.

Notas

  1. Agradeço ao Rick por ter inspirado o insight. E agradeço também à Meire Bottura pelas maravilhosas capas de revistas e jornais que ela coleciona.

 Sobre Pedro Alexandre Sanches

Nasceu em Maringá, PR, em 1968. Escritor. Jornalista. Crítico. Ex-farmacêutico. Em 1992, transferiu-se para São Paulo com o objetivo de cursar jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP. No ano de 1994, começou a trabalhar na Folha de São Paulo. Foi redator, repórter e crítico. Em 2000, lança seu primeiro livro, Tropicalismo − decadência bonita do samba (Boitempo), ensaio em que procura, a partir da análise das obras de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Jorge Ben, analisar transformações, avanços e distorções trazidos à cultura brasileira pelo advento do movimento tropicalista.