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Literatura brasileira de expressão alemã

I. Introdução. Contextualização.

Em pauta está a produção literária de uma minoria ciosa de sua identidade singular, composta de imigrantes de língua alemã e seus descendentes, cujos antepassados chegaram ao Brasil a partir de 1824 (este é o marco oficial) e que segregaram, e foram segregados, pela população local e nacional, a qual, por sua vez, é pós-colonizada. O Brasil tornara-se um país independente em 1822. Segundo os critérios da nacionalidade brasileira, o jus solis, trata-se de textos escritos por imigrantes de língua alemã e por brasileiros, já que a maioria desses autores nasce já no Brasil, enquanto, segundo os critérios da nacionalidade alemã, o jus sanguinis, se trata de textos escritos por alemães. Em qualquer dos casos, essa literatura é portadora de uma perspectiva poética dita marginal.

Os textos literários produzidos e publicados por esses imigrantes de língua alemã e seus descendentes pertencem a um universo de autores e obras inteiramente desconhecido, apesar de alguns trabalhos críticos existentes, de incidência muito pontual.

Esses trabalhos dão a conhecer uma literatura sui generis. Werner Aulich, em 1956, secundado por Marion Fleischer, em 1967, diz: “Sem dúvida é possível afirmar que mesmo o melhor poeta teuto-brasileiro não atinge, no que diz respeito à concepção estilística, à consciência linguística e à estruturação temática, senão a média de autores europeus. Mas da mesma forma pode afirmar-se que esses dois valores distintos devem ser medidos de duas maneiras, sendo necessário chegar a critérios diferentes para avaliar com justiça um fenômeno recente, único e isolado” (Aulich, 1956, p. 206). Marion Fleischer corrobora a opinião de Manfred Kuder que, em artigo de 1963, delineara alguns traços típicos dessa literatura, dizendo que é usual o “emprego daquela forma que os poetas conheciam anteriormente à sua emigração da Alemanha, enquanto o conteúdo é condicionado, especificamente, pelas novas condições prevalecentes nas colônias alemãs” (Kuder, 1963, p. 298). Também eu reconhecia, em 1980, sob os influxos do Formalismo Russo e do livro de Kenneth Burke Teoria da forma literária que, “na medida em que os pormenores numa obra sejam oferecidos, não por sua conexão com a tarefa de moldar e atender às expectativas do leitor, mas porque tais pormenores são interessantes por si mesmos, o atrativo da forma se coloca atrás do atrativo da informação. A atrofia da forma segue-se à hipertrofia da informação” (Burke, 1969, pp. 145-146). Isto significa um enfraquecimento da potenciação poética.

Esses textos, porém, podem ser relidos à luz de teorias surgidas posteriormente e que atendem pela designação geral de pós-colonialistas. Conceitos como hibridismo, miscigenação, resistência, centro, periferia, margem são aqui passíveis de aplicação e também de relativização. Leva-se em conta neste caso o pós-colonialismo no sentido temporal. Essa literatura, até onde se sabe de acentuado teor memorialístico, é iniciada em um Brasil recém-independente (1822) e constitui um testemunho, em língua alemã, de um Brasil pós-colonial. Levando-se em consideração as palavras de Boaventura de Sousa Santos acerca do relativo pouco conhecimento existente sobre o colonialismo/pós-colonialismo português, parece-me de relevância levar a cabo este projeto, que fornecerá elementos que contribuirão para o alargamento e aprofundamento de tal repertório. E também não se deve perder de vista que tal pesquisa enriquecerá a investigação do colonialismo alemão no Brasil. Lembremo-nos do conceito de pangermanismo, cultivado com entusiasmo à época de Bismarck e de Hitler.

No âmbito das relações literárias Brasil-Alemanha vistas da perspectiva imagológica, por exemplo, conhecem-se imagens do Brasil veiculadas na literatura de língua alemã, conhecem-se imagens dos alemães configuradas na literatura brasileira, mas ignoram-se as imagens de brasileiros e de Brasil (ou de Portugal) consubstanciadas na literatura produzida pelos imigrantes de língua alemã e seus descendentes, talvez por estar esta fora do alcance do grande público brasileiro, por conta da barreira da língua e do desconhecimento do acervo. Há textos, poucos, veiculados em língua portuguesa, que igualmente merecem pesquisa.

Embora os produtores desse tipo de literatura estejam, desde o começo, voltados para um público leitor conhecedor do alemão, é errôneo pensar que seus textos só alcançavam as colônias alemãs na zona rural brasileira. Não só se encontram textos literários nos inúmeros Anuários de perfil rural, que, no entanto, também alcançam as comunidades de língua alemã no Chile e na Argentina, mas esses textos também se publicam em brochuras e em vários jornais, alguns dos quais chegam até os dias de hoje circulando em língua alemã por todo o país, como é o caso do Brasil-Post, um jornal brasileiro que também chega à Alemanha, à Áustria, à Suíça, à Namíbia, aos Estados Unidos, ao Canadá, à Austrália e aos demais países da América Latina. No exemplar de 30 de janeiro de 2009, à página 10, há, por exemplo, um poema de Waldtraut Blass, residente em Presidente Getúlio, cidade de Santa Catarina, intitulado “Eines der sieben neuen Weltwunder”, poema constituído por um terceto e 18 quadras sobre a estátua do Cristo Redentor. Em 2000, sai a segunda edição da obra coligida de Hilda Siri, que logo se esgota. O Anuário do Correio-Serrano (Serra-Post-Kalender) circula a última vez em 1974. Portanto, a rigor, a literatura produzida por imigrantes de língua alemã e seus descendentes no Brasil é um fenômeno ainda atual, conquanto o ápice dessa produção tenha se prolongado à década de 1970.

Ora, se se levar em conta, por motivos diversos, o seu desconhecimento pelo grande público de língua portuguesa, e mesmo pelo europeu de língua alemã, quase poderíamos afirmar que se trata de narrativas/poesias, de histórias submersas, não narradas. Trata-se, portanto, de um conhecimento, como quer Edward Said, que preenche vazios e omissões referentes às resistências (outrora) existentes em relação à construção de um conceito oficial de uma nação brasileira una e coesa, o que empresta a essa produção literária, dependendo da perspectiva da análise e das premissas teóricas, um duplo estatuto/status tanto de literatura pós-colonial brasileira como de literatura colonial de língua alemã. Essa literatura pode, então, como se disse, ser avaliada, hoje, de outros vieses, podendo os estereótipos e preconceitos que a cercam ser desconstruídos, a saber, que não se trata de uma literatura produzida por camponeses, mas por professores, médicos, jornalistas, comerciantes, donas de casa; que não é uma literatura sem valor estético de espécie alguma, pois há textos de considerável potenciação poética; que não é um fenômeno temporalmente datado, nem do ponto de vista da produção, nem do da recepção, porque ainda hoje é produzida e lida.

II. Propostas

Em face deste estado de coisas, lancei em março de 2006 o projeto (interuniversitário e aberto) “Literatura brasileira de expressão alemã” – www.martiusstaden.org.br. Este projeto tem o apoio do Instituto Martius-Staden de São Paulo e foi apresentado em 29 de agosto de 2008 em um ciclo de conferências organizado pelo politólogo Rainer Schmidt, atual ocupante da Cátedra Martius na Universidade de São Paulo, e em 14 de setembro de 2009 em uma conferência na Universidade de Coimbra. O projeto propõe:

  1. recuperar o acervo dessa produção literária à exaustão (autores e obras) e centrá-lo como polo de referência, para amenizar/evitar a duplicação de pesquisas sobre um mesmo tema e a repetida reconstrução de contextos histórico-culturais;
  2. ler essa produção à luz de outras correntes teóricas. No momento, proponho as correntes/teorias pós-coloniais voltadas para as nuances do caso português/brasileiro, não deixando de lado, no entanto, a análise de sua qualidade poética, nem a exploração de outros temas;
  3. elaborar uma história da “literatura brasileira de expressão alemã”.

 

III. O tratamento do material

1. O locus de onde falo é um entre-espaço tenso no cruzamento entre filologia e literatura comparada, entre a germanística intercultural de Wierlacher, em que a cultura alemã é ponto de referência, e a literatura comparada, em particular da imagologia literária, que pressupõe um ponto de vista supranacional, isto é, acima das nacionalidades, como defende Hugo Dyserinck.

2. O projeto “Literatura brasileira de expressão alemã”, www.martiusstaden.org.br, foi pensado em três partes:

Uma primeira parte, constituída de uma introdução geral, contextualizando o assunto na história brasileira e na história alemã; uma segunda parte, que se propõe recuperar todos os autores, imigrantes e seus descendentes, e suas obras produzidas em língua alemã e eventualmente portuguesa, com dois anexos: um reservado aos exilados e outro aos viajantes, para que se possa, um dia, ter uma visão mais abrangente e, simultaneamente, focada das relações literárias entre o Brasil e a Alemanha.

Para recuperar a obra de cada autor, concebeu-se a seguinte estrutura: uma página da internet, em português, dedicada a dados biobibliográficos de cada escritor; uma página da internet para cada texto original (narrativa, poema, tradução, ensaio), em alemão moderno (muitos dos textos estão escritos em gótico), com a respectiva fonte; uma página da internet para a apresentação em português dos resumos comentados, para que o leitor brasileiro tenha uma ideia do que se trata, enquanto não houver tradução para todas as obras; uma página da internet para uma tradução integral de, desejavelmente, todos os textos; uma página da internet para a coleta de toda a bibliografia crítica já existente sobre o autor e sua obra.

A terceira parte pressupõe a redação de uma história da literatura brasileira de expressão alemã ou da literatura da imigração alemã no Brasil.
Já se encontram online as obras (ou parte delas) de autores como Alfred Reitz, Elly Herkenhoff, Georg Knoll, Gertrud Grimm, Hilda Siri, Karl von Koseritz, Robert Weber e Wilhelm Rotermund. No anexo dedicado aos exilados, lá estão Ulrich Becher, Richard Katz e Julia Engell-Günther.

Estudos críticos já realizados desenharam tipologias possíveis para algumas dessas produções, como por exemplo: decepção dos imigrantes na terra prometida, terras brasileiras, idealização dos antepassados e da pátria, folclore brasileiro, participação nas guerras e nas revoluções brasileiras, amor.

IV. Ilustrações

As ilustrações aqui trazidas têm o intuito de mostrar a possibilidade de leitura poética e pós-colonial dos textos literários produzidos pela minoria em pauta.

A primeira foca um poema de August Schnitzler (1842-1918), cuja obra aguarda localização e sistematização, quer dizer, é preciso descobrir onde se encontram todas as suas publicações que, à semelhança de outros autores, deve ter textos publicados em diversos Anuários, jornais e possivelmente em brochuras. O poema que apresentamos está disponível em uma antologia, que o colheu de outra antologia, sem menção à fonte primária; a segunda ilustração gira em torno de uma narrativa de Alfred Reitz (1886-1951), publicada em um Kalender, em 1939, só disponível em dois acervos, um em São Paulo (Instituto Martius-Staden), o outro (Benno Menz) na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.

Sabe-se que August Schnitzler nasceu em 1842 em Koblenz, cidade hoje localizada na província da Renânia – Palatinado (Rheinland-Pfalz), mas à época as terras pertencem ao Reino da Prússia, que as incorporara depois do Congresso de Viena em 1814-1815. August Schnitzler deixa, portanto, uma Alemanha ainda fragmentada em inúmeros reinos, principados, ducados, cidades-livres, uma Alemanha predominantemente agrária, desiludida e desanimada por não ter sobrepujado o absolutismo ciosamente cultivado pelos príncipes e duques e não ter conseguido implantar em seus territórios as liberdades conquistadas pela Revolução Francesa. Deixa uma Alemanha em que Richard Wagner compõe óperas (Rienzi em 1842, O holandês voador – Der fliegende Holländer em 1843, Tannhäuser em 1845, Lohengrin em 1850); Johann Strauss compõe a “Marcha Radetzky” (Radetzky Marsch) em 1848; Gottfried Keller escreve romances (O verde Henrique – Der grüne Heinrich em 1854); Feuerbach faz filosofia (Crítica à filosofia hegeliana – Zur Kritik der Hegelschen Philosophie em 1839); Marx e Engels publicam em 1845 A ideologia alemã – Deutsche Ideologie e em 1848 O manifesto comunista – Manifest der kommunistischen Partei. Goethe havia publicado o Faust II em 1832.

Ao chegar ao Brasil com 17 anos, em 1859, Schnitzler encontra um país no final do Segundo Reinado (D. Pedro II), ainda com problemas de fronteiras por resolver, que haveriam de desencadear a Guerra do Paraguai (1864-1870), um país que concentra a sua economia na cultura do café, um país a braços com a transição de sua mão de obra até então exclusivamente dependente de trabalho escravo para as mãos dos imigrantes, que continuam a responder à propaganda intencionalmente elaborada para tal fim. A escravatura seria totalmente abolida somente em 1888. Em 1857, dois anos antes da chegada do poeta aqui tratado, ocorrera a revolta dos colonos suíços, liderados por Thomas Davatz, na Fazenda Ibicaba, nos arredores de Limeira (São Paulo), de propriedade do senador Vergueiro, que havia criado um sistema de “colônias de parceria” e fundado uma empresa de transporte para os imigrantes. Era de total responsabilidade dos fazendeiros a importação da mão de obra. Em 1847, o senador havia trazido para o Brasil cerca de 360 famílias de língua alemã para sua própria fazenda. Os colonos, no entanto, queixavam-se de quase todos os itens que regulamentavam sua contratação: das casas de pau a pique, da divisão dos produtos das colheitas das roças, das compras obrigatoriamente feitas no armazém, que os deixava sempre endividados e presos como escravos ao fazendeiro. Por causa de sua liderança na sublevação, Thomas Davatz vê-se obrigado, depois de negociações, a retornar à Suíça, onde vem a escrever e a publicar em 1858 um livro intitulado O tratamento dos colonos na província de São Paulo no Brasil e sua rebelião contra os opressores (Die Behandlung der Kolonisten in der Provinz St. Paul in Brasilien und deren Erhebung gegen ihre Bedrücker), traduzido em português em 1941 por Sérgio Buarque de Holanda sob o título imagologicamente amaciado de Memórias de um colono no Brasil, em que descreve minuciosamente o cotidiano dos imigrantes na fazenda. A repercussão nos países de língua alemã não se faz esperar e, em 1859, a Prússia proíbe a emigração para o Brasil temporariamente. De seu lado, o governo brasileiro também toma providências. Em 1860, inaugura o que se chamaria “imigração subvencionada”, em que o governo passa a arcar com as despesas da viagem do imigrante e de sua família, e os gastos dos colonos durante um ano ficam a cargo dos fazendeiros. Neste Brasil que acolhe August Schnitzler pontificam os escritores românticos José de Alencar (O guarani de 1857, Lucíola de 1862) Casimiro de Abreu (Primaveras de 1859), Gonçalves Dias (Canção do exílio de 1843), Joaquim Manuel de Macedo (A luneta mágica de 1869). August Schnitzler aporta no Brasil, especificamente no estado do Rio Grande do Sul, onde inicia atividades de professor. Em 1870 encontra-se em Gaspar, nos arredores de Blumenau, exercendo a mesma profissão, passando depois também a ensinar em Poço Grande e a seguir em Santa Philomena, onde permanece até sua morte, em 1918. É um homem e um professor muito admirado pelo caráter reto, pela generosidade e pelo trabalho educativo e formador que empreende com dedicação. Durante a vida irá, de alguma forma, entrar em contato com a evolução político-econômico-cultural do país: a Guerra do Paraguai (1864-1870), a abolição da escravatura (1888), o crescimento das cidades, o pequeno surto industrial do Barão de Mauá, as obras de Alencar, o surgimento do Realismo/Naturalismo (1881), as obras de Machado de Assis, de Aluízio Azevedo, de Raul Pompeia, a proclamação da República (1889), o surgimento do Simbolismo (1893), as obras de Cruz e Sousa, dos gaúchos Eduardo Guimarães e Alceu Wamosy, o advento do Pré-Modernismo, Os sertões de Euclides da Cunha, as obras de Graça Aranha, de Lima Barreto, de Monteiro Lobato, dos gaúchos Simões Lopes Neto, de Alcides Maya, entre outros.

Consta que, depois que August Schnitzler chega, os colonos voltam a cumprimentar-se em alemão, coisa que já haviam esquecido, o que atesta uma preocupação com a manutenção da identidade étnica e suas tradições culturais, bem como a resistência à hibridização. Em seus muitos poemas canta o amor às tradições alemãs, mas também à nova pátria e aos colonos, o que se pode entender como a emergência de um “Deutsch-Brasilianertum” (teuto-brasilidade). Consta igualmente que, certo dia, tendo monsenhor Francisco Xavier Topp recolhido um índio na floresta, “o entregou aos cuidados do professor Augusto Schnitzler, que o acolheu em seu internato e lhe ministrou as primeiras letras. De uma feita, um empertigado colono pediu ao professor Schnitzler para lhe mostrar o índio. O mestre alemão, para fazer ver ao colono que o índio Francisco Topp não era qualquer bicho de circo, desconversou e não mostrou o menino, que entendia merecer mais respeito”. Augusto Schnitzler faleceu em 1918 e deixou uma obra literária significativa, mas ainda à espera de um pesquisador disposto a coligi-la.

É do contato com as crianças na escola, com as pessoas de idioma alemão nas colônias e com as paisagens locais que certamente emerge o pássaro bem-te-vi, a inspirar o poema em pauta.

Diz o poema de Augusto Schnitzler (Steil, 2002, pp. 15-18):

 

Bem-te-vi                                      Bem-te-vi

1.                                                                1.
Als neulich ich im Garten war,                          Há pouco estava no jardim,
Da naschte ich ein Pfläumchen;                       comi uma ameixinha;
Verboten hat’s die Mutter zwar:                      na verdade, mamãe tinha proibido
Nur eines trug das Bäumchen.                         Pois a arvorezinha só carregava uma.
Da hört ich, wie im Grimme,                            Então ouvi, como com raiva,
‘ne laute Vogelstimme:                                   uma voz de passarinho:
“O kleiner Näscher, bem te vi!”                       “Ô pequeno guloso, bem-te-vi!”

2.                                                               2.
Ein andres mal, – mein Brüderlein,                   Uma outra vez, meu irmãozinho
Es wollte nicht parieren,                                  não queria parar quieto.
Da tat ich auf das Mündelein                           Aí eu lhe apliquei um tapinha
‘nen Schlag ihm applizieren.                            sobre a boca.
Und wieder war zur Stelle                               E de novo estava a postos
Der Vogel und rief helle:                                 a ave, que gritou bem claro:
“O zorn’ger Bruder, bem te vi!”                        “Ô irmãozinho irritado, bem-te-vi!”

3.                                                                3.
Es sind noch nicht zwei Wochen her,                 Não faz nem duas semanas,
Da kam ich aus der Schule                               quando eu vinha da escola
Und warf  mit einem Steine schwer                   acertei, com pesada pedra,
Des Nachbars rote Mule.                                  a vermelha mula do vizinho.
Da schrie der Schwerenöter,                             Então gritou o maroto,
Als ging’s ihm selbst an’s Leder:                        como se tivesse atingido a pele dele:
“O criminoso, – bem te vi!”                               “Ô criminoso, bem-te-vi!”

4.                                                                 4.
Und als einmal die Mutter lieb                          E, uma vez, quando a mãe querida
Im Bette krank mußt liegen,                             precisou deitar na cama, doente,
Da schlich ich wie ein Hühnerdieb                     aí eu me esgueirei, como ladrão de galinha,
Zum Hof und – ritt die Ziegen.                          para o terreiro – montei os cabritos.
Der Vogel kam geflogen                                  O passarinho veio em voo gritando
Und rief recht ungezogen:                               e muito mal-educado:
“O – Ziegenreiter. – bem-te-vi!”                        “Ô montador de cabritos, bem-te-vi!”

5.                                                                 5.
Zu lernen war das Pensum noch,                      Ainda havia lição para estudar,
– Ich wollte Kegel schieben,                             mas eu queria jogar boliche.
Und denkt euch meine Freude doch,                Imaginem minha alegria!
Es fielen wirklich sieben.                                  Caíram de fato sete paus…
Da weckt mich hoch vom Baume                      Então, do alto da árvore,
Der Vogel aus dem Traume:                            ele do sonho me acordou:
“Du fauler Schüler, – bem-te-vi!”                      “Ô estudante preguiçoso, bem-te-vi!”

6.                                                                6.
O, Bem-te-vi, du Polizist,                                Ô bem-te-vi policial,
Du bist mir recht zuwider;                               tu és muito antipático;
Wenn du ein richt’ger Vogel bist,                      se és uma ave verdadeira,
So sing’ auch richt’ge Lieder.                           Canta então canções de verdade:
Erschreck’ nicht kleine Knaben,                       Não assustes rapazes,
Die was begangen haben,                               que fizeram algo de errado,
Mit deinem Rufe: “Bem-te-vi!”                         com teu chamado: Bem-te-vi!

Tradução de Elmar Joenck

O eu lírico neste poema é uma criança em conflito com o superego imediato: a mãe e a comunidade da colônia. São tratados aqui valores como a obediência, a paciência, a solidariedade e a aplicação nos estudos. A criança surge, em um primeiro momento, como uma criatura que na origem é, por assim dizer, “bárbara” e precisa ser civilizada para se tornar um elemento apto à convivência, à integração social. A criança é configurada como gulosa (kleiner Näscher) na primeira estrofe, como um irmão furioso (zorniger Bruder) na segunda, como “criminoso” na terceira, como um desobediente montador de cabritos (Ziegenreiter) na quarta, como um aluno preguiçoso (fauler Schüler) na quinta, e somente na última estrofe é tratada como um rapazinho (kleiner Knabe).

O passarinho bem-te-vi é o censor das traquinices infantis. Quais são essas traquinices? Comer a ameixa proibida, bater no irmãozinho, agredir a mula ruiva do vizinho, montar os cabritos proibidos, não prestar atenção na lição de casa.

Quais são as normas do contrato social que aí estão implícitas? A obediência à mãe (aos pais), a solidariedade e a paciência com os irmãos (mais novos), o respeito à comunidade (vizinhos) e à escola ou aos professores.

Contudo, a última estrofe enforma um grito de revolta no apelo da criança, que reclama liberdade diante de tão rígidas normas, ao não identificar a melodia do bem-te-vi com a tradição, ou seja, o pássaro não canta nem é como as outras aves. Este bem-te-vi é identificado pela criança com um policial, o que lhe nega a natureza de um verdadeiro pássaro. Para sê-lo, em vez de assustar crianças, ele deveria emitir sons melodiosos!
Com este fecho, o poema põe em foco ou ilustra um processo psicológico, conflituoso, de formação de ego, evocando a expulsão da criança do ambiente do útero, do colo, da proteção, da união/simbiose com a mãe. Mas também uma crítica negativa a uma eventual educação infantil alicerçada em normas muito rígidas.

Do ponto de vista da criança, o bem-te-vi é um pássaro sempre inoportuno, pois impede a satisfação das pulsões da sua libido, por mais inocentes que possam parecer. Entretanto, do ponto de vista da comunidade, representada por seu emissário – o bem-te-vi –, é importante que os valores implícitos no poema sejam reforçados (embora pela afirmação negativa) para que a criança os introjete e os adote como tais.
Como o poeta consegue essa proeza?

As seis estrofes são construídas em cima de vários paralelismos: número de versos, número de acentos tônicos, rimas, construção sintática.
Cada estrofe, uma septilha, é composta de um quarteto de rima cruzada, que conforma claramente uma “Volksliedstrophe”, estrofe de cariz popular extremamente valorizada pelos românticos alemães, formando um bloco de sentido, seguido por um terceto de dois versos de rima emparelhada, e um último, terminado sempre pela palavra bem-te-vi, que lhe dá o tom de refrão, a acentuar a cadência da poesia, o que, por sua vez, acentua ainda mais o tom popular do poema.

Cada septilha apresenta um período constituído dos quatro primeiros versos, que dão conta das traquinices da criança, a que se contrapõe um segundo período de três versos, que configura a presença do bem-te-vi, mensageiro das normas a serem aprendidas. O paralelismo sintático é, por sua vez, amparado pela repetição de vocativos e das admoestações, introduzidos por dois-pontos no último verso, em que a palavra bem-te-vi está sempre presente. Toda essa estrutura ritmada recebe ainda o aporte fortalecedor de um rico sistema de rimas: cruzada nos quatro primeiros versos, emparelhada no quinto e no sexto versos. Também o número de acentos de cada verso mantém-se entre quatro e três: o primeiro verso tem quatro acentos, o segundo, três, o terceiro, quatro, o quarto, três, o quinto, três, o sexto, três, o sétimo, quatro.

Esses paralelismos criam um ritmo eufônico, de natureza mnemônica, que facilita a assimilação do texto por qualquer criança leitora ou ouvinte, pois na repetição das estruturas mencionadas sua atenção só é desviada para o surpreendente, isto é, para os erros, para o que não deve ser feito. Trata-se de afirmar o que é negativo, o que nos conceitos de educação hodierna está completamente posto de lado como inadequado.

Entretanto, em outros níveis do discurso do poema, a ênfase aos deslizes da criança é amenizada. No plano morfológico, por exemplo, há significativa presença de diminutivos, que expressam o carinho e a afeição da criança, sobretudo nas duas primeiras estrofes e na quarta (ameixinha/Pfläumchen, arvorezinha/Bäumchen, irmãozinho/Brüderlein, boquinha/Mündelein, ou de adjetivos como “klein” e “lieb” (mãe querida/Mutter lieb; kleiner Näscher), criando empatia entre ela e o leitor.

Já o tratamento dado ao bem-te-vi não conhece concessões em todo o poema: ele tem, visto da perspectiva da criança, um canto ruidoso e estridente (laut/hell), ele é maroto (Schwerenöter), é mal-educado (ungezogen), ele é um policial (Polizist), ele não é um pássaro de verdade (ein richt’ger Vogel).

Na última estrofe, ou seja, na conclusão, volta-se o feitiço contra o feiticeiro e o censor é alvo de uma censura ao seu método policialesco. Mas se em um primeiro momento é possível fazer uma leitura psicológica do poema, em um segundo passo também se poderia ler nas entrelinhas uma censura ao autoritarismo da cultura local. Com a ruptura do paralelismo na última estrofe, a admoestação passa à voz da criança. Atrás desta esconde-se o poeta adulto e sua opinião sobre educação – uma opinião revolucionária e inovadora para a época. Deste ponto de vista, o poema como um todo também traz à baila uma discussão extremamente atual sobre os limites e a liberdade necessários à boa formação de uma criança. Trata-se, a meu ver, de um poema extremamente adequado para leitura, análise e interpretação na sala de aula, hoje, quando a tessitura social se apresenta tão esgarçada.
Entretanto, além da mensagem captada em nível psicológico e em nível social (pedagógico), também se pode vislumbrar um nível de crítica cultural, se nos detivermos no fato de o pássaro bem-te-vi, travestido de policial, ser um dos dois elementos mantidos em língua portuguesa, sendo o outro, “criminoso”, também aplicado ao mesmo sujeito (a palavra “mula” já sofreu apropriação, ao ser germanizada, passa a “Mule”). Embora o bem-te-vi seja um dos pássaros mais populares do Brasil e tenha seu habitat exclusivo na América, ainda assim poderia ter sido traduzido. Consta que os primeiros alemães do Hunsrück, ao chegarem ao Brasil, desconhecendo a língua portuguesa e ouvindo o surpreendente canto do bem-te-vi, o batizaram de “´s ist zu viel” (= é demais) (Fausel, 1939, pp. 203-206), imitando-lhe o trinado, não se sabendo ao certo o que era realmente demais, se o sol, se a chuva, se a floresta, ou a solidão. Ora, o fato de o nome do pássaro ter sido mantido em português pode ser considerado de duas perspectivas: de um lado, como um índice de assimilação cultural; de outro, ao ser configurado através da negatividade, veiculadora de uma oposição entre os imigrantes/colonos, representados pela criança e seu mundo, e o pássaro policial e censor, pode também ser interpretado como um índice de resistência ao estranho: à realidade brasileira, ao povo brasileiro, à cultura nacional, à língua portuguesa do Brasil, denotando um estado de desajuste sofrido pelos imigrantes/colonos a serviço dos colonizadores brasileiros; enfim, talvez uma mensagem de rebeldia diante de um Estado de teorias liberalizantes e práticas colonizadoras, isto é, um país com as “ideias fora do lugar”, lembrando Roberto Schwarz. Esse pássaro estranho, cujo nome é sintomaticamente mantido em português, um dos mais populares no país, pode ser visto como uma alegoria do Brasil que é estranho, que censura o menino colono, contra o qual o menino se insurge. Dito de outro modo: em texto linguisticamente elaborado, um bem-te-vi, intencionalmente mantido em língua portuguesa, assume as funções policialescas do governo imperial brasileiro ou de fazendeiros colonizadores, abrindo a possibilidade de os alemães, alegoricamente representados por um eu lírico infantil, queixarem-se da falta de liberdade. Em qualquer dos casos, a alteridade fica em evidência.

Este poema, uma produção literária de um imigrante de língua alemã, portanto, de um autor da “literatura brasileira de expressão alemã”, ou “literatura da imigração alemã no Brasil” ou ainda “literatura teuto-brasileira”, ou “literatura pós-colonial brasileira”, tem uma dimensão poética, tanto no plano da forma quanto no alcance do significado, que o poderia alçar à faixa da literatura entendida stricto sensu.

A segunda ilustração foca uma narrativa de 1939, publicada em Porto Alegre pelo Kalender da Editora Rotermund, “Wie Klaus Krott zu seiner Stanz kam. Erzählung aus der Campanha” (Como Klaus Krott se tornou dono de uma estância. Uma história da campanha gaúcha). O autor é o imigrante Alfred Reitz, chegado ao Brasil em 1922, no centenário da independência do país. Seu texto original e a respectiva tradução, bem como os dados biobibliográficos do autor, já estão online no projeto atrás citado.

Essa narrativa testemunha e memoriza, no plano da ficção e de uma perspectiva não oficial, não canônica, os embates culturais da ação colonizadora entre etnias diferentes: a alemã e a brasileira.

A história narrada por Alfred Reitz, ao que tudo indica, aproveita dados da biografia do próprio autor, que foi prisioneiro de guerra na Inglaterra, mas desloca-os para outro espaço temporal, isto é, para pouco depois de 1815 (depois da derrota de Napoleão) e pouco antes da independência do Brasil, e reconstrói a história emocional dos primórdios da povoação do Sul do Brasil, lançando mão de um romântico triângulo amoroso entre um herói alemão, um vilão brasileiro e uma donzela teuto-brasileira, com desenlace feliz, através do casamento do alemão com a teuto-brasileira.

Esse triângulo amoroso assenta, curiosamente, em panos de fundo espaço-temporais de tonalidades realistas/naturalistas, em que se identifica a teoria de Hypollite Taine (1828-1893): a compreensão do homem à luz do meio ambiente, da raça e do momento histórico.

O vilão, o jovem brasileiro Affonso, interessado na donzela teuto-brasileira que, por uma tragédia do destino perdera os pais e fora criada como filha no seio de sua enorme família comunitária de origem açoriana, é rude, analfabeto, violento, como só pode ser um homem que vive no isolamento da campanha, tangendo gado, e que, movido pelo ciúme, tenta matar o alemão.

O herói, de nome Klaus Krott, é um alemão ex-voluntário de guerra, feito prisioneiro pelos ingleses, que, ao se ver sem profissão definida depois das lutas e, portanto, sem trabalho, imigra para o Brasil atrás do sonho da aquisição fácil de terras e de gado. No Brasil, embora sem profissão, depois de algumas dificuldades consegue emprego, porque aqui há falta de tudo e tudo está por fazer. Como frequentara a escola na Alemanha e era bom em desenho e aritmética, logo se engaja em uma tarefa que exige especialistas, raros no país: a agrimensura. Uma vez empregado, precisa interromper temporariamente, a certa altura, por motivos climáticos, o trabalho de agrimensor. Para ocupar o tempo, de repente livre, esse imigrante e aspirante a proprietário também exerce o papel de professor alfabetizador dos seus patrões/colonizadores, fato sui generis na história dos pós-colonialismos.

A família brasileira, porém, herdeira e cultivadora dos severos valores morais dos portugueses, defende a moça, com o simbólico nome de Inês, e casa-a com Klaus Krott, punindo Affonso. Ao repudiar Affonso, Inês repudia também o fenômeno de assimilação cultural, voltando-se para a recuperação da língua e da cultura de seus pais.

É evidente que a narrativa utiliza-se de dados da história, para lhes acrescentar o calor e a vida que neles se perderam. Começa em um lugar chamado Mundo Novo (onde hoje ficam os municípios de Taquaral, Três Coroas e Igrejinha, a cerca de 90 quilômetros de Porto Alegre), um lugar onde, à época, existiam companhias especializadas na medição de terras e de lotes.

A “Empreza Colonizadora Mundo Novo”, que aparece na narrativa, seria uma delas, e fora constituída por grileiros, conceito que o narrador se encarrega de explicar nos detalhes de suborno a autoridades e órgãos públicos. Nela o imigrante alemão Klaus Krott arruma seu primeiro emprego de agrimensor e é vítima dessa fraude. É o subdelegado que o ajuda, levando-o para a propriedade de seu sogro na Coxilha Sant’ana, na divisa com o Uruguai, onde hoje está Santana do Livramento, a quatro dias de viagem em lombo de mula de Mundo Novo. Na Coxilha Sant’ana encontram-se os 40.504 hectares das terras dos Monteiro, que o alemão haveria de dividir pelas 33 famílias geradas no clã, mediante o recebimento de um lote como pagamento.

Esses elementos narrativos acham de fato correspondência nos fatos históricos. Até a casa de pedra (Steinhaus) da narrativa, construída por Monteiro, que servia de armazém para abastecer a colônia, ainda lá se encontra. Alfred Reitz, contudo, equivocadamente considera o ano de 1814 não como o da cedência da sesmaria pelo governo, mas como o da sua compra feita por Tristão Monteiro.

Dizem os documentos históricos que, em 1814, o governo português concedeu uma sesmaria na costa do Rio dos Sinos a Antonio Borges de Almeida Leães. Esta sesmaria passou, então, a ter o nome de Fazenda Mundo Novo e foi vendida pela viúva Libânia Inocência Correa de Leães, em 1845, ao brasileiro Tristão José Monteiro e a seu sócio, pelo nome, o teuto-brasileiro Jorge Eggers. Tristão José Monteiro e Jorge Eggers criaram então na fazenda a colônia de Santa Maria do Mundo Novo, mas Eggers logo vendeu sua parte a Monteiro. Para lá atraíram colonos de São Leopoldo, a quem venderam a maior parte das terras, tendo nelas se fixado também alemães vindos diretamente da Alemanha.

Sob certos aspectos, essa narrativa não resiste a uma análise textual mais elaborada. Às personagens faltam, por exemplo, complexidade e profundidade. No entanto, as descrições espaciais criam imagens saborosas de uma paisagem que não mais existe, como a que se segue em minha tradução conjunta com minha ex-orientanda Karola Zimber:

No segundo dia de viagem, a paisagem modificou-se. Krott havia conhecido até agora só a floresta e a região das colônias. Seu caminho ainda não o havia levado à campanha, à zona dos campos. A selva tornava-se mais rala, interrompida por gramíneas maiores ou menores. A paisagem assumia mais e mais o caráter de savana e, com ela, sobrevinha a monotonia. A diversidade da colônia, com as casas dos colonos entre as plantações de laranjeiras, com os potreiros cercados de arame farpado, habitados por gado manso e bem tratado, plantações de milho e mandioca, foi substituída por terras de pastagem, que se estendiam ao infinito, alternando-se com cadeias de montanhas, as coxilhas, que se elevavam com suavidade. Nessa imensidão sem-fim, somem as casas sóbrias de pedra, quase sempre à beira de um riacho, uma mancha branca no cinza-esverdeado. Figueiras de galhos largos abraçam as casas como gigantes protetores. [1]

Interessante, no entanto, é verificar que a narrativa constitui também testemunho emocional do que foi o colonialismo e o pós-colonialismo português nessas regiões e nessas micro-histórias, nas quais certos valores senhoriais e civilizatórios se vão perdendo e barbarizando, como se pode observar no seguinte trecho, por mim também traduzido em colaboração com minha ex-orientanda Karola Zimber:

[Monteiro] uma família hoje ramificada até o Uruguai, cujos tataravôs tinham imigrado há mais de cem anos dos Açores. Ainda assim, constituíam somente cerca de trinta famílias. Muitos jovens haviam tombado na guerra assassina do Paraguai. Os Monteiro sozinhos haviam fornecido um grupo montado, e só três tinham voltado. Tinham pago à pátria um tributo de sangue que não poderia ser maior. Enquanto o sogro vivera, tudo entre os Monteiro tinha sido tratado de acordo com os velhos usos e costumes. Os tempos árduos tinham conduzido à posse comum da terra, dos rebanhos e do dinheiro, a uma espécie de comunismo de clã. O mais velho era sempre o chefe da família. Mas, desde que seu sogro havia falecido, fazia dois anos, só havia discussões e brigas. Seu cunhado Luiz não possuía a energia do velho Chico, que havia dirigido as famílias com pulso de ferro, não admitindo contradições. Há cerca de meio ano, ele havia estado lá e acompanhado a situação. Os rebanhos haviam sido divididos, não existia mais a caixa comum, cada família trabalhava para si. Mas o pior problema era o pasto, onde cada família queria o melhor pedaço. E, no entanto, a terra nunca tinha sido medida. Nenhuma das famílias podia provar que tinha direito às terras que cobiçava para si. Existiam, de fato, títulos de concessão sobre 10 milhas quadradas de terra, também reconhecidos pelo governo, mas entre os irmãos as condições de proprietários estavam no ar. A única forma de pôr fim a esta confusão era medir e dividir a terra entre as famílias. Se continuasse assim, um dia, teriam sangue derramado, algumas vezes, já haviam chegado perto disso. [2]

Em resumo, os dois exemplos ilustram bem o potencial de estudo dessa literatura e a urgência do seu estudo sistemático. Trata-se de uma pesquisa que:

1.    trará informações importantes para a literatura/cultura brasileira. O seu interesse reside precisamente no fato de esses testemunhos provirem de uma perspectiva deslocada e até agora silenciada e, nessa medida, produzirem imagens e valores que podem diferir das autoimagens canônicas brasileiras. Por outro lado, e se se aplicar a perspectiva da nacionalidade determinada pelo jus sanguinis ou a questão da língua, essa literatura constitui também extensão e diversificação da literatura de língua alemã, e incorpora testemunhos de indivíduos alemães em territórios novos. As seguintes palavras de Italo Calvino pouco antes de sua morte em Por que ler os clássicos corroboram esta nossa crença. Diz o filósofo italiano: “a minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos pode dar-nos” (apud Costa, 1995, p. 9).
2.    O estudo dessa literatura também contribuirá para uma revisão e alargamento dos conceitos atuais de pós-colonialismo, no mínimo, no que se refere a ser a imigração e o pós-colonialismo vistos como fenômenos exclusivamente contemporâneos. Será uma contribuição para os estudos coloniais, pós-coloniais portugueses, muito divergentes dos canônicos de língua inglesa. Também poderão contribuir com os estudos do colonialismo alemão. Além disso, talvez venha a ser possível vir a perceber que os problemas da imigração e do pós-colonialismo hodiernos não são absolutamente novos, mas apenas revestidos de uma roupagem diferente em circunstâncias outras.
3.    O estudo dessa literatura também contribui para a desconstrução dos seguintes preconceitos relacionados com esse tipo de produção literária: a) de que essa literatura não tem valor poético; b) que é uma produção do passado; c) que é uma produção “ilhada”, com público restrito.

Como disse Pageaux, pesquisas assim levam a “reexaminar a própria posição do investigador, o espaço do Eu que estuda. A reexaminar o seu próprio sistema de valores à medida que se avance no inquérito sobre o Outro. O estudo das imagens pode ajudar a uma tomada de consciência. […] crítica das nossas práticas culturais, dos nossos reflexos mentais. Pode permitir uma revisão e uma reapropriação da cultura em que evoluam o investigador e sua investigação” (Machado & Pageaux, s.d., p. 80).

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Referências bibliográficas:

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BURKE, Kenneth. Teoria da forma literária. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969.

COSTA, Linda Santos. Por que ler os clássicos de Italo Calvino. In: Público. Leituras (Livros), 28 jan. 1995, p. 9.

FAUSEL, Erich. Bem-te-vi … ´s ist zu viel! In: Volk und Heimat. Jahrbuch des Deutschtums in Brasilien. São Paulo: Deutscher Morgen, 1939.

FLEISCHER, Marion. A poesia alemã no Brasil. Tendências e situação atual. São Paulo, Boletim nº 311, FFCL-USP, 1967.

KUDER, Manfred. Die deutsch-brasilianische Literatur. In: Zeitschrift für Kulturaustausch Nr. 4. Institut für Auslandsbeziehungen, 1963.

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REITZ, Alfred. Wie Klaus Krott zu seiner Stanz kam. Erzählung aus der Campanha. In: Kalender für die deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender). São Leopoldo: Rotermund Verlag, 1939, pp. 65-85. Texto transcrito do gótico, disponível em: www.martiusstaden.org.br.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2004.

SCHNITZLER, August. Bem-te-vi. In: STEIL, Marcelo. Desvendar o tempo. A poesia em língua alemã produzida nas zonas de colonização em Santa Catarina. Blumenau: HB, 2002, pp.15-18. Também presente na antologia Canções para uso das escolas brasileiras, publicada em data desconhecida, pela Editora O. A. Koehler em Blumenau.

SCHREINER, Renate. Entre ficção e realidade. A imagem do imigrante alemão na literatura do Rio Grande do Sul. Lajeado: FATES/UNISC, 1996.

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SOUSA, Celeste Ribeiro de. Retratos do Brasil. Heteroimagens literárias alemãs. São Paulo: Arte & Cultura, 1996.

SOUSA, Celeste Ribeiro de. Literatura de minorias: Klaus Krott vira estancieiro. In: NITRINI, Sandra. Tessituras, interações, convergências. Anais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo: ABRALIC, 2008. E-book disponível em: http://www.abralic.org.br/ cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/002/CELESTE_SOUSA.pdf.

SOUSA, Celeste Ribeiro de. Lições de ética no canto do bem-te-vi: da literatura pós-colonial brasileira. In: NITRINI, Sandra. Literaturas, Artes e Saberes. Anais do XI Encontro Regional ABRALIC. São Paulo: USP, 2007. E-book disponível em: http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/53/1655.pdf.

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Notas:


[1] Am zweiten Reisetag veränderte sich das Bild der Landschaft. Krott hatte bisher nur die Wald- und die Koloniezone kennen gelernt. In die Campanha, die Kampzone, hatte ihn sein Weg noch nicht geführt. Spärlicher wurde der Wald, von mehr oder minder großen Grammatas unterbrochen. Mehr und mehr nahm die Landschaft Savannencharakter an und mit ihr kam die Eintönigkeit. Das Abwechslungsreiche der Koloniezone mit ihren in Orangenhainen eingebettet daliegenden Kolonistenhäusern, den mit Stacheldraht abgeschlossenen Potreiros, von zahmem, gut gepflegtem Vieh bevölkert, den Mais- und Maniokpflanzungen, wurde durch ein endlos sich hinziehendes, von leicht anschwellenden Hügelketten, den Cochilhas, hinziehendes Grasland abgelöst. In dieser endlosen Weite verlieren sich die meist an einem Bachlaufe liegenden, schmucklosen Steinhäuser; ein weißer Fleck im Graugrünen. Breitästige Figueiras umgeben sie wie schützende Riesen. Alfred Reitz, “Wie Klaus Krott zu seiner Stanz kam. Erzählung aus der Campanha”, p. 5.


[2] Heute eine bis nach Uruguay weitverzweigte Familie, deren Ur-Ureltern vor mehr als hundert Jahren von den Azoren eingewandert sind. Trotzdem zählten sie nur noch an die dreißig Familien. Viele Jungen waren in dem mörderischen Paraguaykriege gefallen. Die Monteiros allein hatten einen berittenen Zug gestellt, und nur drei von ihnen waren zurückgekehrt. Sie hatten dem Vaterland einen Blutzoll bezahlt wie er kaum größer gebracht werden konnte.

Solange sein Schwiegervater gelebt habe, sei bei den Monteiros alles nach altem Herkommen und Brauch gehandhabt worden. Die schwere Zeit des Anfangs hatte sie zu gemeinsamen Landbesitz, gemeinsamen Herden und gemeinsamer Kasse geführt, eine Art Sippenkommunismus. Der Aelteste sei immer das Oberhaupt der Familie gewesen. Aber seitdem sein Schwiegervater gestorben sei, es sei zwei Jahre her, gäbe es nichts als Zank und Streit. Sein Schwager Luiz besäße nicht die Energie des alten Chico, der mit eiserner Faust die Familien regiert und keinen Widerspruch geduldet habe. Es stimme schon, es sei leichter ein Land, als eine groß Familie zu regieren. Vor einem halben Jahre sei er unten gewesen und habe sich die Geschichte mal angesehen. Die Viehherden seien aufgeteilt, die gemeinsame Kasse bestände nicht mehr; jede Familie arbeitete für sich. Das Schlimmste aber sei der ewige Streit wegen der Viehweide, von der jede Familie die besten Stücke für sich beanspruche. Und dabei sei das Land nie vermessen worden. Keine Familie könnte beweisen, daß sie auf die Stücke, auf die sie erpicht sei, Anspruch erheben könne. Wohl sei ein Konzessionstitel über zehn Quadratmeilen Land vorhanden, auch von der Regierung anerkannt, aber unter den Familien schwebten die Besitzverhältnisse völlig in der Luft. Die einzige Möglichkeit, diesen Wirrwarr zu beenden, sei die Vermessung und Aufteilung des Landes unter die Familien. Wenn es so weiterginge, würde es eines Tages noch zu Blutvergießen kommen; ein paarmal sei es schon nahe dabei gewesen. Ibidem, p. 4.


 Sobre Celeste Ribeiro de Sousa

Celeste Ribeiro de Souza é pós-doutorada em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo/Universidade de Colônia (2000). Tem doutorado em Letras: Língua e Literatura Alemã também pela USP/Universidade de Colônia (1988) e mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela USP (1979).