A revista de Pessoa e Sá-Carneiro
Orpheu, nome mitológico onde radica o termo orfismo, era no panorama nacional, uma revista trimestral de literatura, destinada a Portugal e ao Brasil e de que veio a lume o primeiro número, em 1915, correspondente a Janeiro, Fevereiro e Março. As 83 páginas da revista, impressa em excelente papel e tipo elegante, abriam por uma «introdução» de Luís de Montalvor, em que se pretendia definir os intuitos da obra a que meteu ombros um grupo de jovens que com frequência se reuniam em alguns cafés da baixa lisboeta.
Segundo Montalvor, Orfeu «é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento» e a pretensão dos seus fundadores «é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos».
Quando a guerra de 1914-18 começou, reuniram-se os factores de um movimento estético pós-simbolista em Lisboa. Aí se conheceram, entre outros, Fernando Pessoa, cuja adolescência se formara na África do Sul, dentro da cultura inglesa; Mário de Sá Carneiro, que entre 1913-16 passou grande parte do tempo em Paris; Almada Negreiros e Santa Rita Pintor, que traziam de Paris as novidades literárias e sobretudo plásticas do futurismo e correntes afins. A estas personalidades do grupo atribuiu a opinião pública sinais de degenerescência, mas hoje é fácil reconhecer que as suas atitudes correspondiam a um sentimento geral de crise latente. Particularidades de formação e temperamento, relacionáveis com a instabilidade social, alhearam os artistas, tanto da ideologia republicana como das reacções críticas que ela despertara.
Mário de Sá Carneiro pertence à geração do Orpheu, a revista que, idealizada no Brasil por Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, pretendia comunicar a nova mensagem europeia, preocupada apenas com a beleza exprimível pela poesia, inspirada no simbolismo de Verlaine, Mallarmé e Camilo Pessanha, no futurismo de Marinetti, Picasso e Walt Whitman, no super-realismo de André Breton. Preconizava a arte pela arte mas ao mesmo tempo a descida a busca ansiosa do «eu» e a fixação da agitada idade moderna.
Em 1914 os jovens modernistas, encetaram seu o projecto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer do Brasil: o lançamento de uma revista luso-brasileira Orpheu. Dessa revista saíram efectivamente dois números (os únicos publicados) em 1915; incluíam colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá Carneiro, Almada, Cortes Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos brasileiros Ronald de Carvalho (que, regressado do Brasil, serviria de traço de união entre o Modernismo brasileiro e português) e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. A revista vinha realizar uma aspiração comum dos jovens poetas que se reuniam à volta de Fernando Pessoa no Irmãos Unidos. No Orpheu poderiam publicar as suas peças de escândalo: poesias sem metro, celebrando roldanas e polias, ou revelando as profundezas do subconsciente, sem passar pelo crivo da razão. O primeiro número, saído em Abril de 1915, esgotou-se em três semanas, por uma espécie de sucesso negativo: comparavam-no para se horrorizarem com o seu conteúdo e se encolerizarem com os seus colaboradores. Um destes, Armando Cortes Rodrigues, conta que eram apontados a dedo nas ruas, olhados com ironia e julgados loucos, para quem se reclamava, com urgência, o hospício de Rilhafoles.
Um segundo número sairia em Julho do mesmo ano, com conteúdos bem mais futuristas; um terceiro número foi organizado e mesmo impresso parcialmente, mas não se publicou. Era mais uma revista literária que morria à míngua de recursos. Não bastara o talento e o arrojo dos seus colaboradores para prolongar-lhe a vida; eram os financiamentos de Sá Carneiro (ou antes, de seu pai, que lhos mandava para Paris) que a sustentavam. Uma reviravolta nos negócios, a cessação da mesada, e fica no nascedouro o que viria a ser o Orpheu 3.
Feitos, em parte, para irritar o burguês, para escandalizar, estes dois números alcançaram o fim proposto, tornando-se alvo da troça dos jornais; mas a empresa não pôde prosseguir por falta de dinheiro. Em Abril de 1916, o suicídio de Sá Carneiro privou o grupo de um dos seus grandes valores.
E quem eram os jovens que assim procuravam escapar ao conservadorismo da época? Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Armando Cortes Rodrigues, José de Almada Negreiros, Luís de Montalvor, Alfredo Pedro Guisado e outros cuja actuação foi mais restrita. Ao seu anseio de agitar as inteligências e as sensibilidades, inovando, não faltava um certo desejo de escandalizar, que se exacerbava na medida em que crescia a indignação generalizada: cônscio dessa atitude, o próprio Fernando Pessoa, ao referir-se, já em 1915, a versos seus e ao seu Manifesto Interseccionista, penitencia-se de havê-los feito com a única preocupação de escandalizar, rebaixando, assim, a alta dignidade da poesia. Mas o que não é menos verdade é que todos, ou quase todos, tinham a consciência da grandeza que é ser poeta.
No Orpheu revelaram-se tendências várias, que vão desde a permanência do simbolismo e do decadentismo até às tendências inovadoras como o futurismo. Álvaro de Campos/Fernando Pessoa publica a Ode Triunfal (1915) e a Ode Marítima, Sá Carneiro, a Manucure (1915), Almada Negreiros, O Manifesto Anti-Dantas (1916) e Ultimatum Futurista às Gerações Portuguezas do século XX.
O grupo entretanto continuou a publicar noutras revistas e, em 1917, surgiu a revista Portugal Futurista, onde foram reproduzidos quadros de Santa Rita Pintor e Sousa Cardoso, juntamente com poemas futuristas de Sá Carneiro (póstumos) e Pessoa, sobretudo sob o seu heterónimo de Álvaro de Campos.
No rasto do Orpheu surgiram as revistas literárias Exílio 1916, Centauro 1916, Portugal Futurista 1917, Athena 1924-1925 e Presença 1927-1940, que iniciou o denominado segundo modernismo.