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A tradução de Bashô por Haroldo de Campos

Haroldo de Campos traduziu um poema de Bashô do seguinte modo

o velho tanque

rã salt’

tomba

rumor de água

(furu ike ya/ kawazu tobikomu/ mizu no oto) [1]

Entre as inúmeras traduções [2] para o português deste poema, esta se destaca pelo estranhamento que provoca. Três [3] níveis de estranhamento podem ser percebidos:

  1. O estranhamento próprio à importação de uma forma de origem estrangeira, baseado na forma e na figura do poema haiku.
  2. O estranhamento devido à utilização de uma palavra-valise pelo tradutor.
  3. O estranhamento em consequência do campo semântico da palavra tombar.

Esse amálgama de estranhamentos parece se contrapor às traduções anteriores do mesmo poema, que Haroldo talvez considerasse banalizantes. Para se contrapor à banalização desse poema de Bashô, Campos se utiliza do conhecimento que tinha da teoria dos formalistas russos e do estranhamento como função da literatura defendida por Victor Chlóvski. Basta lembrar a menção feita no ensaio “Bandeira, o desconstelizador”, do livro Metalinguagem, à “desconstelização” de nosso poeta, que libera o acaso dentro da linguagem amortalhada pelo costume e, por sua vez, obriga os dados a serem relançados. A “desconstelização” bandeiriana é, nesse sentido, manifestação daquilo que o crítico formalista russo Victor Chlóvski chamava de “desautomatização” ou “efeito de estranhamento” (ostranienie), princípio que consiste em libertar o objeto que nos é familiar do automatismo perceptivo e vê-lo como se pela primeira vez. (Veja-se Campos, 1967, p. 102.)

Em Relance da alma japonesa, cuja primeira edição foi publicada em 1925, para Wenceslau de Moraes, um dos lusófonos pioneiros na apreciação do haikai, a brevidade desse gênero de poesia causa perplexidade: “O que causará maior espanto, sem dúvida, à compreensão do homem europeu, neste assunto de poesia japonesa, é a ínfima grandeza do hokku, que representa, há cerca dois séculos e meio, quase que a única forma corrente do poema dos nipônicos. – Que poetas são pois estes, os nipônicos? Como pretendem eles condensar, em dezessete sílabas apenas, os múltiplos sentimentos que a poesia nos sugere, a nós, brancos, que tão longas páginas de versos, não raras vezes, dedicamos a um assunto apenas?…” (Moraes, 1973, p. 182).

“Os poemas longos nunca mereceram grande estima por parte dos nipônicos; achavam-lhes não sei o quê de enfadonho, de causticante; o tanka teve sempre a preferência. E quando no fim do século XIV se iniciou o drama lírico, que havia de cessar antes do fim do século XIV, os japoneses, achando ainda o tanka longo demais, começaram a cultivar um novo gênero, o hokku, pelo qual o poema completo continha apenas dezessete sílabas […] o cúmulo da concisão na arte poética! […] (Moraes, 1927, p. 9).

“Para estudiosos portugueses, todavia, o tanka e o hokku não devem merecer tanta estranheza. Nós temos a quadra portuguesa, a nossa deliciosa quadra popular, tão cheia de seduções que, uma só, pode constituir um poema emocionante. […] Em minha opinião, a nossa quadra, quando habilmente manejada, seria suscetível de dar excelentes traduções dos poemas japoneses” (Moares, 1973, p. 183).

Wenceslau de Moraes põe em prática essa hipótese, utilizando-se da quadra para traduzir o poema de Bashô e adicionando elementos para ajustar o despojado haikai de Bashô ao locus amoenus da lírica ocidental.

Bashô por Moraes

“A tradução é a seguinte: – Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs [4], atirando-se para a água!… – O leitor não se encontra prevenido para poder encontrar belezas, assim de surpresa, em uma pequenina poesia japonesa. Mas pense um pouco. Não acha encantador este instantâneo, recordando a paz de um lugar, provavelmente junto de algum vetusto templo budístico, em cujo terreiro se encontra um velho tanque, sendo o silêncio apenas cortado pelo som melancólico que acompanha a queda das rãs sobre a água adormecida?…

Eis a tradução em verso:

Um templo, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água, mais nada…”

(Moraes, 1973, p. 184)

Trata-se de fazer uma tradução em que o poema originário seja aproximado ao repertório do leitor, por isso a utilização da quadra, da configuração do locus amoenus pela explicitação do silêncio inicial, pela adição de um templo e uma caracterização do tanque inexistentes no poema original, e a elaboração de um verso final mais ajustado à expectativa de um telos, para que não se fique com a impressão de um relato incompleto. Tenta-se, por meio dessa tradução, atenuar o potencial estranhamento do leitor.

Se, ao contrário de Wenceslau de Moraes e seus contemporâneos, formos leitores familiarizados com poemas breves e de caráter antilíricos, parece-nos que essa familiaridade está vinculada a certos topoi. A imagem da rã ou do sapo cria nos leitores a expectativa do cômico, expectativa essa fundada em nosso repertório da rã/sapo como imagem do âmbito do baixo, do asqueroso, do ridículo, do desprezível, explícita na oposição sapo/príncipe do repertório infantil e no poema satírico “Os sapos” de Manuel Bandeira do repertório escolar [5].

Essa expectativa não se concretiza no poema de Bashô, que faz um relato breve, neutro, de um movimento corriqueiro, o mergulho de uma rã [6] ou de um sapo em um velho lago ou tanque [7]. Essa expectativa não concluída faz vir à tona a impressão de um sentido incompleto. Para que fique mais clara essa impressão de incompletude, podemos cotejar a tradução do poema de Bashô com a tradução que o próprio Haroldo de Campos faz de Buson, as duastraduções presentes no mesmo capítulo, “Haicai: homenagem à síntese”, de A arte no horizonte do provável:

canta o rouxinol

garganta miúda

– sol lua – raiando

 

(Campos, 1972, p. 61)

Por se adequar à expectativa causada pelo topos do louvor ao rouxinol, por se ajustar essa expectativa a um poema encomiástico, ou seja, gênero ajustado a um lugar-comum e vice-versa: lugar-comum ajustado ao gênero encomiástico, essa tradução não nos causa estranhamento, mesmo com a presença da palavra-valise “sol lua” no último verso [8].

Dentre as inúmeras traduções (talvez fosse mais adequado considerá-las adaptações) para o português, as duas abaixo se vinculam à figura tradicional do sapo, enquanto ser do âmbito do baixo:

Um velho lago parado… cerrado… calado…
de águas turvas e tranquilas,
realizava, no deslumbramento da noite clara,
seu sonho antigo de ser espelho…
Seu fundo lodoso e sombrio
refletia, cheio de orgulho,
um cortejo relumbrante de estrelas,
quando um sapo, asqueroso e profano,
saltou sobre ele,
arrancando de suas águas
um arrepio de pavor
e um gemido estrangulado de agonia…

Luís Antônio Pimentel
Tankas e haikais, 1953

Verde

Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que, ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direto ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo…

João Guimarães Rosa
Magma, 1997 [9]

O recurso à palavra-valise parece corresponder ao princípio de fazer com que a língua de partida carreie suas características para a língua de chegada e a influencie, visando ao enriquecimento da língua-cultura de chegada [10].

Haroldo de Campos guia-se por uma espécie de etimologia do ideograma, conforme podemos ver na análise que faz de cada ideograma do poema, chegando a decompor o ideograma inicial e o final do poema em suas unidades menores, nos pictogramas que, unidos, perfazem o ideograma [11].

Devido à abordagem etimológica do ideograma, Haroldo de Campos considera como eixo do poema a palavra tobikomu, por ele traduzida como salt’tomba: “O eixo da ação está na palavra composta tobikomu, formada pela aglutinação dos verbos saltar (tobu) + entrar (komeru). No original, a transição dos ‘shots’ visuais se faz assim, sem solução de continuidade, de uma tomada para outra, até o remate, que se resume, como em uma etapa final de montagem cinematográfica, no rumorejar da água agitada pelo baque de um corpo que saltou e nela imergiu. Por aqui se pode avaliar a pobreza, para não dizer infidelidade, que haveria em uma tradução convencional, que só fixasse a imagem da rã saltando, por exemplo. Com a palavra “palavra-valise” à maneira joyciana, “saltomba” (fragmentada visualmente por um recurso à cummings de apostrofação, “salt’/tomba”), procurei acompanhar o desenrolar fílmico da ideia, “esse desejo de fundir imagem em imagem” que, para D. Keene, caracteriza a poesia japonesa. De outro lado, a textura fônica de “saltomba” não deixa, de certo modo, de responder à tobikomu. Lembre-se o leitor de exemplos como “Tudo turbulindo” (fundindo “turbilhonar” + “bulir”, de Guimarães Rosa” (Campos, 1977, p. 62) [12].

Em um poema tão breve, a palavra-valise salt’tomba salta aos nossos olhos, “e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração” (Toledo, 1973, p. 54), contrapondo-se ao reconhecimento do léxico, reconhecimento esse vinculado à automatização da percepção [13].

O verbo tombar é mais frequentemente usado para a queda de seres e objetos de portes médio e grande, portanto a sua utilização na referida tradução também causa estranhamento.

TOMBAR, v. tr. Derrubar, deitar abaixo: Quando passava, tombou a cadeira. Afora o cuidado de vigiar, nos dias de violento temporal, que o vento não tombe as colmeias. (Eduardo Sequeira, Abelhas, p. 258, ed. 1900.) ║ v. intr. Cair desprendendo-se: A levadiça alçada tombou de golpe. (R. da Silva.) ║ Cair rolando; cair no chão: Desceu ele da montanha, qual rocha descomunal de agudo cimo tombando, arrasando o pinheiral. (Gonç. Dias.) ║ (Fig.) Declinar, descair: Quando as estrelas tombaram no mar. (Gonç. Dias.) ║ (Fig.) Deslizar: Porém lágrimas cresceram-lhe dos olhos, lá tombou em uma das faces do filho, em cujo rosto um beijo a enxuga. (Gonç. Dias.) ║ (Bras., Nordeste) (pop.) Mudar de rumo (em viagem). ║ Cheira que tomba, diz-se de um cheiro que por ser muito ativo incomoda: Cheira a enxofre que tomba. (Garrett.) ║ v. pr. voltar-se, virar-se, cair para o lado: Tombou-se o bote; tombou-se a carruagem. ║ F. ital. Tombolare (Aulete, 1980, p. 3594).

Como se vê no verbete em Caudas Aulete, apenas no exemplo de Gonçalves Dias o verbo tombar é utilizado para algo pequeno e mesmo assim em sentido figurado.

Fazendo uma analogia com a linguagem cinematográfica, o efeito dessa utilização seria o de aproximação do relato com o relatado como em uma espécie de aproximação abrupta da câmera a um objeto, um zoom muito rápido, ou um corte seco de um plano geral ou de conjunto a um objeto em plano-detalhe. Corte esse que tornaria explícita a montagem. Esse corte visível transgrediria as regras da narrativa clássica, em que a sucessão de planos diferentes é tornada invisível, seja pela montagem com motivação intrínseca à economia narrativa, seja pela gradação na sucessão de planos de modo a não causar estranhamento, naturalizando a narrativa cinematográfica.

Haroldo de Campos procurou “acompanhar o desenrolar fílmico da ideia” (Campos, 1977, p. 62), opondo-se à narrativa cinematográfica clássica e hegemônica, vinculando-se ao cinema experimental, de vanguarda, que explicita seus procedimentos.

Mais uma tradução com o “desejado “efeito de estranhamento”” (CAMPOS, 2005: 197), visando a nos fazer ver, como se pela primeira vez, seja o mergulho de uma rã em um tanque, seja o poema de Bashô seguindo o preceito MAKE IT NEW de Ezra Pound.

Para Chlóvski, “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado” (Toledo, 1973, p. 45). A arte existe para “devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra” (ibidem), para se contrapor à automatização “que engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra” (ididem, p. 44), fazendo a vida desaparecer, transformando-a em nada; para se contrapor à inconsciência.“Se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido” (TOLEDO, 1973: ibidem, p. 45).


Notas

[1] Veja-se Campos, 1977, p. 62.

[2] O site brasileiro Kakinet, <http://www.kakinet.com/caqui/furuike.shtml>, voltado à divulgação do haikai, lista aproximadamente 50 traduções do mesmo poema de Bashô. Citado por Tatiane de Aguiar Sousa em Haikais de Bashô: o Oriente traduzido no Ocidente. Cf. Souza, 2007, pp. 119-136, Dissertação disponível na internet: <www.uece.br/cmla/disserta/tatianedeaguiarsousa.pdf>.

[3] Há ao menos mais dois níveis causadores de estranhamento, porém de menor peso no poema traduzido:

– o sintático, referente à ausência de uso do artigo antes da palavra rã, talvez para nos dar a impressão da discrição da rã, de sua quase imperceptibilidade inicial, talvez para nos dar a impressão de arcaísmo. O artigo definido no primeiro verso também causa estranhamento, pois não é a qualquer lagoa que se refere o verso, não “um velho tanque” qualquer, desconhecido e do qual nos deparássemos pela primeira vez, mas “o velho tanque” como se este fosse conhecido de antemão pelos interlocutores.

– o visual, o da espacialização do poema que parece remeter a uma pedra quicando a superfície da água e a quebra da palavra saltomba em salt’tomba, dividida em dois versos.

[4] Kawasu se refere tanto a rã quanto a sapo, daí serem possíveis as duas traduções. E a ausência do plural na língua japonesa permitiu a tradução da palavra no plural.

[5] Sobre a imagem do sapo na poesia, principalmente durante o simbolismo. Cf.

<http://www.felipefortuna.com/animalnoturno.html>.

[6] Deve-se destacar que para os japoneses a rã não é um animal rejeitado, pelo contrário: “A rã tem o hábito de aspirar. Por causa disso, acredita-se, no Japão, que ela atrai felicidade. Diz-se também da rã que ela volta sempre ao ponto de partida, mesmo se é afastada dele. A palavra japonesa que a designa, kaeru, significa também retornar. Ela se tornou, assim, uma espécie de protetora dos viajantes. Certas pessoas levam à guisa de amuleto a imagem de uma rã, a rã substituta, isto é, a rã que se substitui ao seu dono se algum desastre lhe acontece. A poesia seguinte, a mais conhecida talvez, no Japão, resume esse simbolismo: O velho tanque! Uma rã mergulha nele: tchimbum! (Bashô, 1644-1694) (Chevalier, 1999, p. 764).

[7] Ike pode ser traduzido como lagoa e tanque.

[8] Talvez seja essa uma das razões da existência de tão grande número de traduções do poema da rã.

[9] Veja-se <http://www.kakinet.com/caqui/furuike.shtml>.

[10] No caso da tradução de Fausto, Haroldo de Campos afirma: “ao invés de aportuguesar o alemão, germanizo o português. Deliberadamente, para o fim de alargar-lhe as virtualidades criativas” (Campos, 2005, p. 194). É de notar que Haroldo de Campos se utiliza frequentemente de palavras-valise, na maioria das vezes elegendo Sousândrade como precursor, mas também se referindo a Joyce e Guimarães Rosa quanto ao uso deste recurso.

[11]  Veja-se CAMPOS, 1977, p. 62. Essa abordagem etimológica do ideograma também está presente na tradução que Haroldo de Campos fez da peça nô Hagoromo.

[12] Paulo Franchetti considera equivocada a tradução de Haroldo de Campos, principalmente com relação ao uso da palavra-valise, pois a tradução não a qualifica como haikai que exige termos coloquiais, de uso cotidiano, devido à prerrogativa de Bashô pela simplicidade e leveza.

Seria necessário explicitar os termos da questão: em Paulo Franchetti, o vínculo do haikai à tradição da literatura oral e a necessidade do vínculo da tradução do poema aos preceitos de Bashô, e em Haroldo de Campos, o vínculo do haikai à poesia enquanto condensação e estranhamento. Cf. Franchetti, 1990, pp. 44-47) e Campos, 1977, pp. 55-62.

[13] Na tradução que fez de Fausto, Haroldo de Campos mostra sua preocupação em fugir do clichê também no plano lexical. “‘O não dizível’ […] Foge do clichê léxico ‘indizível’” ao escolher o termo não dizível em vez do indizível, de uso comum (Campos, 2005, p. 207).

Referências Bibliográficas

AULETE, F. J. Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete. 3. ed. Vol. 5. Rio de Janeiro: Delta, 1980.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica literária. Petrópolis: Vozes, 1967.
CAMPOS, Haroldo de.  A arte no horizonte do provável. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1977.
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe: marginália fáustica. São Paulo: Perspectiva, 2005.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
FRANCHETTI, Paulo et al. Haikai: antologia e história. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
MORAES, Wenceslau de. Relance da alma japonesa. 2. ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira Ltda., 1973.
SOUSA, Tatiane Aguiar de. Haikais de Bashô: o Oriente traduzido no Ocidente. Fortaleza, Ceará, 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Centro da Humanidades, Universidade Estadual do Ceará.
TOLEDO, Dionisio de Oliveira (org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.

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