HELDER MALTA MACEDO (Krugersdorp, África do Sul, 30 de novembro de 1935) é um poeta, romancista, ensaísta, crítico e investigador literário, português. A sua obra ficcional, dentre a qual se destaca o romance PartesdeÁfrica (1991), no qual o autor usa técnicas narrativas para revelar as ficções da memória, expondo a fronteira entre o fato e a invenção, é considerada uma das mais originais da literatura portuguesa contemporânea. Opositor ao regime salazarista e como tal censurado, perseguido e preso, acabou por exilar-se em Londres onde, entre 1960 e 1971, foi colaborador regular da BBC. Licenciou-se em Literatura e História, apresentando como tese de licenciatura um estudo sobre Bernardim Ribeiro, e doutorou-se em Letras em 1974 na Universidade de Londres, onde lecionava desde 1971 no King’s College, com a tese intitulada “Nós – uma leitura de Cesário Verde”, livro de excelência e referência sobre o poeta até hoje.
Entrevistado por Joana Freitas
Joana Freitas: É-nos apresentado como sendo um dos grandes pensadores portugueses, além, claro, de escritor e poeta. Como analisa isto?
Helder Macedo: Meu Deus! Exagero ou ironia. Como toda a gente, procuro entender as coisas na medida do possível. Por isso, tenho muitas atividades. Por um lado sou acadêmico, sou universitário, escrevo ensaios. Por outro lado, sou escritor, romancista e poeta. Aliás, comecei precisamente com poesia. Mas, quando se vive muito tempo como eu, até agora, vão-se fazendo algumas coisas assim. O que é importante é tentarmos relacionar as coisas umas com as outras.
JF: Sente que, pelo seu currículo e conhecimento, está, muitas vezes, confinado à literatura lusófona ou à lusofonia?
HM: Não. O que acontece é que todos nós usamos áreas diferentes de nós próprios para as diversas atividades. Quando procuro pensar na obra de um escritor que admiro, procuro entender as coordenadas do que está lá escrito e tentar entender o pensamento do escritor. Quando estou a escrever – uma ficção, por exemplo -, aí procuro imaginar mundos possíveis, coisas alternativas. Nunca escrevo realmente sobre o que me acontece, mas invento situações e personagens. É, no fundo, um mundo de fantasia a que a pessoa [que escreve] tenta dar uma aparência de um certo rigor. Poesia é, no fundo, a coisa mais misteriosa, porque vem de zonas interiores. Aí, há um momento de magia que é melhor deixar acontecer.
JF: Podemos dizer que tem uma certa inspiração no mundo real para as suas obras de ficção, mas não para a poesia?
HM: Exceto que também tem. Mas não é uma resposta tão imediata, é mais filtrada por dentro. É mais um processo interior.
JF: Há a tendência de caracterizar tudo o que seja literatura proveniente de países falantes do português como literatura lusófona. Podemos categorizar a literatura lusófona desta forma?
HM: Só na medida em que a língua é comum. Mas são coordenadas diferentes. A Língua Portuguesa é inteligível por toda a gente que fala português – seja em Manaus, Brasil, seja em Luanda, Angola —, mas as coordenadas são diferentes. Nessa medida, tenho uma certa hesitação ao pensar nisso… para já, não gosto nada do termo lusófono. É horrível. Contudo, até agora, ninguém inventou nada melhor e temos de usar isso. O que acontece é que não há donos da língua e o que é fascinante numa língua como a portuguesa é que pode veicular experiências e culturas totalmente diferentes umas das outras. Há um substrato comum, evidentemente – todos nós podemos ler uns aos outros. Quem pensar em termos literários, pensará, sei lá, num Camões, quer no Brasil, quer em Angola, quer em Moçambique, como alguém que conseguiu, de fato, ter uma visão do mundo extraordinária, escrevendo em Língua Portuguesa. Mas, na realidade, há uma grande diversidade. Quando falam em literaturas africanas de expressão portuguesa, acho que é ainda um rescaldo, uns restos, uma ressaca colonialista. Angola é muito diferente de Moçambique. Sim, senhor, há o elemento português comum, mas, se formos ver em termos históricos, até ao século XVIII, a capital de Moçambique era Goa e, no século XIX, Angola era controlada pelo Brasil. Portanto, as coordenadas são diferentes.
JF: As raízes que dão origem à literatura escrita por esses países são, portanto, diferentes?
HM: É diferente. Lógico que é diferente, havendo, contudo, esse elemento comum. Aliás, isso acontece também na língua inglesa. Há indianos que escrevem em inglês, nigerianos que escrevem em inglês… mas isso são culturas diferentes, veiculadas pela mesma língua, por essa língua. Esse é um aspecto fascinante das línguas – e da Língua Portuguesa especialmente, porque é uma língua extremamente rica nisto –, que consegue veicular culturas e experiências totalmente diferentes umas das outras.
JF: Tinha precisamente essa questão sobre o termo lusofonia de que falou há pouco. Podemos ver esse termo, hoje em dia, como um produto que é vendido? Como analisa isso?
HM: É. Para já, tem que se dar um nome qualquer a esse fato comum da língua e as pessoas não querem usar “a portuguesa”, para não parecer ser uma afirmação de Portugal sobre o Brasil, Angola, Moçambique etc. O que é absurdo, porque a língua é portuguesa. A partir daí, a coisa ramificou-se. Se usarmos, mais uma vez, o exemplo dos ingleses, podemos ver que a língua que é falada é a língua inglesa – the english language – e aceita-se como tal. Porém, os portugueses preocupam-se muito com essa ideia de que falei e, então, vão buscar esse patético termo ‘luso’ – que mitologicamente, até era simpático, porque Luso era o protegido ou filho de Baco, de modo que era ótimo para ir para os copos –, mas é um termo absurdo, que ninguém entende realmente o que significa. É um termo.
JF: E se pudesse dar-lhe outro nome? Já pensou nisso?
HM: Já tentei pensar nisso, mas ainda não consegui, sinceramente. Teria que ser Língua Portuguesa.
JF: É a primeira vez que está em Macau. Apercebeu-se do uso da Língua Portuguesa aqui?
HM: Sim. Bom, o que acho extraordinário é que todas as ruas têm os nomes em português e, depois, parece que algumas, quando é transliterado para chinês, reproduzem o som. Os edifícios públicos têm todos também as legendas em português, mas ninguém fala português na rua.
JF: Vinha com essa esperança de ouvir falar português, uma vez que é a ideia que ainda se tem de Macau?
HM: Não. Sabia que pouca gente falava português, mas pensei, por exemplo, que os funcionários da alfândega, dos passaportes, falassem algum português. Mas, não. É-lhes mais fácil falar inglês do que português.
JF: Vem a Macau dar uma palestra sobre “Portugal e Cultura Lusófona no mundo contemporâneo”. Podemos dizer que há uma perda de identidade da literatura e da cultura portuguesa e lusófona nestes tempos mais modernos?
HM: Todas as culturas – sobretudo as europeias – têm interpenetrações de toda a ordem. Uma coisa que acontece que é perigoso para culturas como a portuguesa é que há o domínio das culturas anglo-saxônicas. O que acontece é que a importância cultural vai-se deparar com a importância econômica e a política. Há a criação de uma espécie de mesmismo universal, em que toda a gente – mais ou menos – tem coordenadas anglo-saxônicas e pode perder as suas coordenadas nacionais ou, pelo menos, deixá-las ficar um bocado diluídas. Ora, isso é perigosíssimo porque é a especificidade das culturas. Nós, de Língua Portuguesa, de maneira geral, temos a vantagem de conseguir compreender outras línguas. Ler inglês ou francês… os de língua inglesa, não. De modo que, para eles, o universo acontece em inglês e perdem a noção da diferença e da variedade. Curiosamente, as culturas como a portuguesa enriquecem-se com a globalização cultural. Mas as culturas dominantes da globalização empobrecem, porque não notam a diferença.
JF: Podemos dizer que há um país lusófono, falante do português, que preserve melhor a Língua Portuguesa, entre todos os existentes?
HM: Não se pode generalizar. Bem, o país em que mais se fala português é o Brasil (201 milhões de habitantes), mas as diferenças de pronúncia dentro do próprio Brasil são enormes. Entre o português que se fala no Rio Grande do Sul e o que se fala em Pernambuco, por exemplo, há uma diferença maior do que talvez o português que se fala em Lisboa e em São Paulo. Portanto, há essa imensa diversidade. As línguas evoluem. Não há pureza de língua. O que a pessoa tem é de entender a especificidade das línguas, ter consciência das raízes linguísticas, mas não usar essas coisas como coletes de forças. As línguas têm de evoluir e têm de mudar.
JF: Isso não faz com que se possa perder a lusofonia?
HM: Não, de forma nenhuma. Até devido, precisamente, ao poder econômico que o Brasil tem cada vez mais. De momento, é através do Brasil que o português se está a tornar uma língua universal. Tempo houve, que foi através de Portugal, devido ao seu passado colonial. Atualmente, em termos diferentes porque são termos econômicos, o Brasil é dominante. E, sei lá, se Angola e Moçambique vierem a ter o futuro que a gente deseja, a língua vai ser preservada também por razões culturais e políticas através dos africanos.
JF: Ainda há muito a descobrir sobre a lusofonia e a cultura lusófona?
HM: Imenso a descobrir. Por exemplo, o que vai acontecer quando a China desenvolver o seu programa de cultura portuguesa. Os chineses estão a investir imenso na Língua Portuguesa por causa do Brasil, da África, da globalização. Mas, por outro lado, no estilo muito rigoroso que parece que têm, querem aprender a norma europeia, essencialmente. Quando um país como a China adotar como um dos seus instrumentos de expansão econômica e cultural a Língua Portuguesa, isso vai dar outra dimensão [à língua e cultura portuguesas]. Será extremamente interessante, porque, como o chinês não é tão acessível, em termos de mercados, como o inglês é, eles terão de diversificar as suas abordagens e isso é uma coisa fascinante e que contrasta, para mim, com o que acontece na Índia. Os indianos adotaram como língua nacional a língua colonial inglesa, que não era a deles, e baniram, por exemplo, em Goa, o uso do português. O que é uma coisa idiótica. Por um lado, andam a aproveitar-se da herança cultural portuguesa – as igrejas, aquelas coisas todas – e não investem na Língua Portuguesa.
JF: E a China está a fazer esse investimento.
HM: Está a fazer o oposto, sim. O que é, quanto a mim, muito mais inteligente e muito mais interessante.
JF: Na Inglaterra, onde ensinava, dava aulas sobre a lusofonia?
HM: Sim. Fui o professor catedrático – com o título Camões Professor – no Departamento de Estudos Portugueses do King’s College.
JF: Como é que a língua inglesa reage a esta cultura portuguesa?
HM: Depende. As pessoas mais cultas têm uma certa noção de algumas coisas. Mas os ingleses leem muito pouco autores de outras línguas. Eles publicam nigerianos, paquistaneses, americanos… tudo em inglês. Traduz-se muito pouco para inglês. Portanto, só os ingleses mais cultos é que têm noção de outras literaturas existentes noutras culturas. Alguns autores, sim, como Fernando Pessoa – muito – mas há uma pequena, muito pequena, penetração.
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Entrevista aqui publicada com autorização de Carlos Morais José, Diretor do jornal Hoje Macau.
Helder Macedo – Poesia e ficção
- Vesperal (poemas), Lisboa: Folhas de Poesia (1957).
- Das Fronteiras (poemas), Covilhã: Pedras Brancas (1962).
- Poesia1957-68, Lisboa: Moraes (1969).
- Poesia 1957-77, Lisboa: Moraes (1979).
- Partes de África (romance), Lisboa: Presença (1991).
- Viagem de Inverno (poemas), Lisboa: Presença (1994).
- Pedro e Paula (romance), Lisboa: Editorial Presença (1998) (2. ed., 1998).
- Viagem de Inverno e Outros Poemas, Rio de Janeiro: Record (2000).
- Vícios e Virtudes (romance), Lisboa: Presença (2000).
- Sem Nome (romance), Lisboa: Presença (2005) (Prêmio do PEN Club Português, 2006).
- Natália (romance), Lisboa: Presença (2009).
- Poemas Novos e Velhos (coletânea de poesia), Lisboa: Presença (2011).
Helder Macedo – Crítica e ensaio
- Nós, Uma Leitura de Cesário Verde, Lisboa: Plátano (1975).
- Do Cancioneiro de Amigo (com Stephen Reckert), Lisboa: Assírio & Alvim (1976).
- Do Significado Oculto da Menina e Moça (Prêmio da Academia das Ciências de Lisboa), Lisboa: Moraes (1977).
- Camões e a Viagem Iniciática, Lisboa: Moraes (1980).
- Cesário Verde: O Romântico e o Feroz, Lisboa: & Etc. (1988).
- Menina e Moça,de Bernardim Ribeiro (ed. e introdução), Lisboa: Dom Quixote (1990).
- Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português (com Fernando Gil), Porto: Campo das Letras, (Prêmio da Associação Internacional de Críticos Literários e Prêmio do PEN Club Português) (1998).
- Trinta Leituras, Lisboa: Editorial Presença (2007).
- Obras Completas de Bernardim Ribeiro (ed. com Maurício Matos), Porto: Campo das Letras (2008).