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Neofascistas italianos apoderam-se de Ezra Pound

NOTA INTRODUTÓRIA de Sibila ao texto de Daniel Swift

Em torno dos anos 1930, principalmente (ainda que não exclusivamente) em função da dupla devastação da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão de 1929, muitos artistas e intelectuais flertaram com o fascismo (que se apresentava como uma alternativa à direita à “ganância capitalista”, simplificadamente inculpada por ambas), incluindo, entre tantos outros, T. S. Eliot moderado e  Giuseppe Ungaretti, que teve livro de poemas prefaciado por Mussolini. Esse “espírito da época” é, mais do que eventualmente, evocado também em relação a Ezra Pound – quando não se opta por simplesmente esquecer, não seu mero flerte passageiro com o fascismo, mas sua verdadeira militância fascista, via propaganda política, programas de rádio e artigos de jornal.[1] Uma terceira opção é considerar tudo isso conhecido demais e/ou irrelevante face à passagem do tempo e à grandeza de sua outra militância, na criação do modernismo internacional, que moldou a literatura contemporânea, para não falar dos “punti luminosi” (“pontos luminosos”, expressão do próprio Pound para se referir às mais importantes criações da literatura mundial, que ele ajudou a redescobrir) de sua monumental obra poética.

Mas, infelizmente, o problema se mantém: “flertar” passageiramente com o fascismo é radicalmente diferente de defendê-lo ativa e consistentemente durante a Segunda Guerra Mundial. E importante demais para não ser recordado e, portanto, ainda discutido (principalmente num contexto histórico de reerguimento da extrema-direita europeia, como demonstra o texto a seguir).

A própria perenidade de Pound implica a perenidade de outra questão complexa: a moralidade da obra de arte. Há quem advogue (como Oscar Wilde, em outro contexto histórico) que a moralidade de uma obra reside em sua qualidade estética. Mas há quem apoie a ideia de que a estética não está, não pode ou não deve estar isenta da ética (ontem defendida, à esquerda, pela “arte engajada”, e hoje dominante entre os “politicamente corretos”). A pólis é, desde o nome, o lugar inevitável da política. E, de uma forma ou de outra, também inevitavelmente, da arte.

Leni Riefensthal, a grande cineasta einsensteiniana, foi membro do Partido Nazista, trabalhava para o setor de propaganda de Goebbels e criou algumas das principais peças de exaltação do regime nazista. E se sua obra, nem de longe, tem a importância estética e histórica (o que é o mesmo que dizer política, no sentido mais lato) da de Pound, ela não pode, confirmando a perenidade da questão, ser descartada (mais uma vez) da história do cinema, pela relevância de suas ousadas inovações nos enquadramentos, no uso da luz e na montagem. Riefensthal foi uma cineasta oficialmente nazista. Pound foi, eventualmente, um poeta fascista – e aqui não estamos mais falando de sua atuação diretamente política como propagandista do fascismo.

para o crítico Robert Casillo, o “Canto 72” é a “prova cabal” da “realidade e centralidade do fascismo de Pound” e, para Humphrey Carpenter, biógrafo de Pound, “não há nada nem remotamente ambíguo sobre a posição política desse canto”.

Não por acaso, os “Cantos 72” e “73” são amplamente conhecidos como “os Cantos fascistas”. Sua obra é, de fato, manchada por punti scure (que Pound tentaria ocultar: eles foram “cuidadosamente deixados de fora de seus volumes publicados”).[2]

O caso de Pound, apesar disso, se assemelha, mais que ao de Leni Riefenstahl, ao de Ferdinand Céline, o grande romancista francês que escreveu tóxicos panfletos antissemitas na mesma época, e ao de Martin Heidegger, que, próximo do regime nazista, usou os poderes da burocracia universitária para perseguir filósofos judeus – enquanto Pound fazia propaganda contra os judeus e em defesa do principal aliado de Hitler, Mussolini.

Além disso, não há como não considerar ter sido Pound um criminoso de guerra (como, naturalmente, também Leni Riefensthal), pois a propaganda é uma das principais armas de toda guerra (cuja primeira vítima, como se sabe, é a verdade). Riefensthal se safou alegando “ingenuidade”. Pound, que por lei poderia ter sido condenado à morte por traição em tempo de guerra, escapou aceitando certa “insanidade” oportunamente a ele oferecida.

[Pound] fez várias centenas de transmissões em Roma sobre questões que iam de James Joyce ao controle do dinheiro e do governo dos EUA por banqueiros judeus, e condenando muitas vezes abertamente o esforço de guerra americano. Foi preso pelas forças dos EUA em 1945 e passou seis meses em um campo para criminosos do exército perto de Pisa. […] Levado de volta aos EUA para ser julgado por traição [passível de pena de morte], foi considerado “insano e mentalmente incapaz de ir a julgamento” por um painel de médicos, e passou doze anos (1946-58) no manicômio Saint Elizabeth. […] Em abril de 1958, foi [definitivamente] declarado incapaz de ser julgado, e as acusações contra ele foram retiradas. Pound foi libertado e retornou à Itália, dividindo o ano entre Rapallo e Veneza.[3]

 

O que o artigo da Enciclopédia Britânica omite é que, além do referido “painel de médicos”, Pound foi defendido por uma ampla campanha de artistas e intelectuais, que apoiaram seu não julgamento como criminoso de guerra e, depois, lutaram por sua libertação. As enormes contribuições para a cultura e a arte (ou seja, para a civilização) feitas por Pound compensariam seu apoio à barbárie, na forma de respaldo a um dos regimes, o de Mussolini, que, aliado a Hitler, a promoveram. Eles estavam, muito provavelmente, certos. Mas isso, infelizmente, não resolve e não pode resolver tudo: Pound seria o primeiro a reconhecer a diferença entre episteme e doxa, conhecimento, saber e opinião. E aqui se trata, objetivamente, de uma opinião. Outro problema é que a lei não prevê tal exceção. Outro, que a lógica não a elucida.

Até o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazifascismo (para desgosto de Pound), o grande poeta norte-americano não era suspeito de qualquer forma de “insanidade”. Ao contrário: apesar de naturais desafetos (por sua atuação antiacademicista e modernista, principalmente nos primeiros anos do século), no final da década de 1930 ele já era justamente reconhecido como um dos críticos e poetas mais lúcidos e inovadores da época, e um dos principais expoentes do modernismo internacional. O problema é, portanto, que sua súbita e oportuna “insanidade”, se lhe salvou a vida, o condenou a uma contradição incontornável. Pois Pound, um intelectual de altíssimo repertório, incluindo vastos conhecimentos históricos, teria de ser, de fato, de alguma forma insano – pois não poderia alegar ignorância – para não poder ser responsável por sua própria propaganda pró-fascista e antissemita. Restaria então, inevitavelmente, a dúvida de o que mais, em sua atividade intelectual, incluindo suas obras poética e principalmente crítica, também não seria fruto da (ou ao mesmo afetado pela) mesma insanidade (da qual, ironicamente, fora acusado, algums anos antes, apenas pelos conservadores, não políticos, mas estéticos; então eles estavam o tempo todo, de alguma forma, com a razão?).

Pound desvestiu sua “insanidade”, como um terno usado, assim que cumpriu seu período de manicômio nos EUA, retornando à Itália, à vida tranquila em Rapallo e ao seu status intelectual, apesar de haver aceitado a decretação à morte jurídica de sua lucidez e de pôr em seguida em estado de coma a questão de sua atuação durante a guerra, à qual jamais retornaria (num “silenciamento envergonhado”, para usar as palavras do texto a seguir).

Recentemente, apesar de grandes esforços para ocultá-lo, tornou-se notória a igualmente grande proximidade de Le Corbusier com o fascismo. E foi somente então que algumas semelhanças estéticas entre sua arquitetura modernista ficaram evidentes, não em relação ao tardoneoclassicismo fascista, mas a outro modernismo arquitetônico, o stalinista. Este era, sem dúvida, menos sutil, menos elegante e menos belo do que o de Le Corbusier, mas certo utilitarismo e certo igualitarismo, patentes no domínio das linhas retas, no uso de materiais industriais como o cimento e o vidro e no repúdio a elementos decorativos na arquitetura são, de fato, comuns aos dois. Haveria alguma influência da ideologia totalitarista de Le Corbusier em sua estética, assim como havia na arquitetura estatal soviética? Ou um charuto, às vezes, é apenas um charuto, segundo a famosa frase de Freud? (para alertar contra a busca de “símbolos fálicos” em tudo o que, bem, parece um símbolo fálico).

Provavelmente, sim. Mas como a própria frase diz, somente “às vezes”. Portanto, outras vezes, não. Como separar o joio do trigo? Ou como se servir do trigo eventual ainda que não se consiga separá-los? “Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”, diz outra frase famosa, desta vez de Maiakóvski. Não é verdade. Há arte, e muita, revolucionária no significado e conservadora no significante (como na Marselhesa, cuja exaltação à Revolução Francesa é feita com sintaxe tanto verbal quanto musical conservadora). Ainda que, no caso particular da própria poesia de Maiakóvski, o que afinal importa não sejam seus apelos aos “camaradas futuros”, mas, justamente, o modo como os estrutura. No caso de Pound, sua poesia é vasta o bastante para comportar tudo, da forma mais inovadora à mais classicizante. Assim como pode, eventualmente, ser outra forma de seus discursos políticos (como no conhecido poema “Com usura” [“Canto 45”]). O texto abaixo de Daniel Swift  demonstra que, apesar de tudo, uma coisa, ao menos, é inquestionável: a insuficiência, a inadequação e, afinal, a inaceitabilidade de evitar tais questões – apesar da dificuldade das respostas.

O texto descreve como Pound e sua obra são, não por acaso, um herói e uma referência importante para os fascistas italianos hoje (“Pound é legal, Pound é icônico, uma figura pop que veio para nos salvar da crise financeira global e dos banqueiros sombrios por detrás da União Europeia”), quando a extrema-direita se encontra em franca ascensão em toda a Europa, fazendo, inclusive, uso de antigas práticas da esquerda, como se demonstra aqui no caso das ocupações de prédios abandonados – mas não se limitando à “ação social”: “Em dezembro de 2011, um apoiador da CasaPound saiu atirando em um mercado, em Florença, matando dois comerciantes senegaleses, e ferindo mais três”. Sem que ninguém saiba minimamente o que fazer para conter o seu avanço:

O que parece ser claro em nossa pesquisa é que a CasaPound é atraente para um número significativo de italianos – particularmente italianos jovens – por meio de uma combinação de ideologia de extrema direita e esquerda, símbolos e métodos. Uma quantidade de pessoas vê a abordagem direta da política pela CasaPound – através de protestos de rua, ocupação de prédios abandonados e piruetas políticas – e a ênfase em cultura e música como uma alternativa empolgante à política tradicional.

A extrema-direita, por outro lado, parece saber o que está fazendo. Inclusive ao se apropriar do que lhe pertence por direito na história e na cultura ocidentais (ainda que não com exclusividade, obviamente – por exemplo, o nome e a obra de Pound [como no caso dos “Cantos 72” e “73”]).

Pound, além de sua própria poesia, foi um dos mais importantes, lúcidos e inovadores críticos literários do século XX (ao lado dos “formalistas” russos), e talvez, individualmente, o mais importante modernista de todos os tempos, “promovendo, e também ocasionalmente ajudando a dar forma à obra de poetas e romancistas tão diferentes como Yeats, Joyce, Hemingway, Frost, D. H. Lawrence e Eliot”,[4] além de ampliar o repertório da poesia ocidental ao incorporar tradições de todo o mundo e ajudando, assim, a criar a literatura contemporânea. Por isso mesmo, a questão das questões que nos deixou o selvagem século XX, quanto às relações entre arte e política, em todos os campos (incluindo os ideológicos), particularmente as relações entre estética e ética – com Pound ocupando o centro da cena –, não podem ser consideradas datadas, ultrapassadas, e muito menos esclarecidas. Até porque, hoje elas permeiam novos ismos, como o político-corretismo e seu neopatrulhamento, ou o acriticismo e o indiferentismo, ou o ignorantismo, que ameaçam lançar o próprio legado modernista de Pound (particularmente na poesia) na mesma lata de lixo sangrenta da história em que também caíram as grandes utopias e distopias do século XX. Eis então o ensaio de Daniel Swift.

 

Sibila

  

  1. De como o fascismo de Pound não morreu com ele

Anos atrás, fui à Itália visitar uma gangue de fãs neofascistas de Ezra Pound, que tinha visto mencionada em artigos horrorizados de jornal, sem poder realmente acreditar que existissem de verdade. Era primavera em Roma, e depois de deixar minhas coisas no hotel, caminhei pela cidade. Perto do principal terminal ferroviário, passei, em uma esquina, por uma mulher de chapéu preto de veludo e um homem vendendo bolsas. Do outro lado da rua havia um prédio cinza e marrom, de sete andares. Na frente, havia uma bandeira rasgada, vermelha e preta e, no térreo, butiques chinesas vendendo capas de telefone enfeitadas e cachecóis em tom neon. Acima das lojas havia um cartaz em letras de um metro de altura: CASAPOVND.

A entrada para a casa de Pound está cheia de nomes, pintados de maneira brilhante nas paredes. Há soldados e filósofos, romancistas, comunistas e personagens de desenho animado. É um grupo contraditório. George Orwell está perto de Oswald Mosley, o fundador da União Fascista Britânica; Kerouac está perto de Wagner. Spengler, T. S. Eliot, Saint-Exupéry; Yeats, Clausewitz, Ian Stuart, o vocalista e líder do grupo inglês de rock white power Skrewdriver. Evita está em vermelho, Dante, em laranja. Platão, J. G. Ballard, Corto Maltese.

Meu encontro daquela manhã era com o militante encarregado de cultura, um título grandioso e alarmante, mas Adriano Scianca revelou-se um agradável homem despenteado. Abriu a porta e me fez subir as escadas até o escritório, em estilo “viril descuidado”, com um pouco de mobília demais, e uma bandeira tibetana em cima da porta. Sentamo-nos em cadeiras desiguais, à uma mesa de conferências cheia de buracos, abaixo de um pôster que dizia: “Seu Banco Amigo Trai Você”, e outro de gladiadores salpicados de sangue. Ele me conta que estão ocupando o prédio e que, acima, há vinte famílias de sem-teto que não têm para onde ir.

Começamos em italiano, mas meu italiano não é bom o bastante, assim como o inglês dele, de modo que o militante cultural chamou um tradutor. Vamos chamá-lo de Seb. Ele falava com uma leve cadência francesa, e seu corte de cabelo era de ídolo de matinê, com cacho na testa e repartido de lado. Seus traços eram delicados, em oposição aos trajes pesados, coturno, bermuda e suéter, mas os ombros eram largos.

Eles se chamam “i ragazzi di Ezra – “os garotos de Ezra” –, e falam de forma coletiva, usando “nós”. Quando lhes mandei e-mails para marcar a entrevista, ou para o acompanhamento posterior, suas respostas eram sempre sem assinatura, e o endereço, genérico. Falam como o coro em uma peça antiga e, quando Adriano me contou sua história, ela soou como um mito moderno.

 

  1. Agitprop

 

Começaram imprimindo 15 mil adesivos com a palavra zetazeroalfa em letras negras maiúsculas, pregando-os nas paredes de Roma. Adriano me explica que isso foi para as pessoas se questionarem. Poderia ser uma nova marca de carro, um programa de TV? Era uma banda de punk rock, que dá shows em estações ferroviárias abandonadas, e cujo público se bate, em uma dança que chamam de “cinghiamattanza”, “o massacre do cinto”.

Um dia após o Natal de 2003, alguns dos garotos começaram a invadir um prédio governamental abandonado, não longe da principal estação ferroviária de Roma, e foi ali que nos encontramos naquele dia. Ao chegar, descobriram que as luzes tinham sido deixadas acesas por uma década, diz-me Adriano, dando de ombros para o desperdício dos governos. Eles tinham ocupado prédios antes, mas esse era o primeiro dentro da cidade de Roma, e com isso veio um novo nome, e um novo propósito. Logo começaram a arranjar conferências. Adriano explica-me que, desde o começo da ocupação, houve uma centena dessas: quatro ou cinco sobre Pound, e outras sobre temas caros a Pound, como dinheiro (“usura”), habitação e a soberania das nações. Fizeram uma sobre Jack Kerouac, para marcar seus 40 anos de morte, e outra sobre tatuagens japonesas. Abriram 33 lugares novos na Itália no ano passado, diz-me Adriano: livrarias, academias, bares. Aqui eles conduzem o que ele chama de atividade metapolítica. E acrescenta: nesses lugares, pagamos aluguel.

Esses jovens transformaram a perturbação de Pound em força, e construíram uma mitologia a partir de sua vida. Adriano é bom em slogans, e cuidadoso com a linguagem. “Queremos ser efetivos em 360 graus”, diz, e muitas vezes me lembra de que eles não se intitulam um partido político, e sim um movimento. “Se eu lhe disser que somos um partido político, você não irá imaginar que temos um teatro, uma galeria de arte, e tardes dançantes”. Ele gosta da ideia de movimento. Menos do que responder minhas perguntas, ele estava definindo termos e, quando descrevi o grupo como “extrema direita”, ele me corrigiu. Em uma de suas cartas, lembrou-me, Pound se descreve como “fascista de esquerda” – e foi assim que nossa conversa se desenrolou: burocrática, robótica, preparada.

O Ezra Pound da CasaPound é um homem de muitas coisas. No seu website, há uma curta biografia, em que ele é apresentado como “poeta, ensaísta, economista, tradutor, agitador cultural e um homem livre”, e, aos olhos deles, é precisamente essa variedade o que lhe dá valor. Ele enfiou todas essas buscas díspares em uma única vida, e eles o valorizam por sua luta. A biografia lista suas amizades literárias com Eliot e Joyce, seu horror pela Primeira Guerra Mundial, e daí conta como ele foi “declarado louco e aprisionado no hospital criminal de St. Elizabeth, em Washington. Passou o primeiro ano em completo isolamento, em uma cela sem janelas, sem contato com o mundo exterior. Permaneceu ali por 13 anos”. Isso não é absolutamente preciso, mas o preto e branco da sua narrativa tem um propósito.

Na escadaria do lado de fora do escritório, há três fotos de um Pound ancião em Veneza, frágil em uma jaqueta de tweed. Tão do outro mundo que sua pele parece que irá cair suavemente do corpo, mas aqui, na casa de Pound, ele volta a viver, como um símbolo promiscuamente fértil: um poeta punido pelo capitalismo insensato; um profeta e um viajante do tempo. Sua biografia é uma parábola, e seus escritos, a Escritura. Adriano me diz que há uma contradição. As pessoas dizem que ele foi o maior poeta do século XX, um gênio e, quando você levanta o tema de seu envolvimento político, dizem que ele era uma criança, um estúpido. Vemos a contradição, ele diz, e cita Pound: “Com usura homem algum terá casa de boa pedra”. É do famoso “Canto 45”, que continua:

 

com usura uma linha cresce turva
com usura não há clara demarcação
e homem algum encontra sua casa.[5]

 

  1. Casa de Pound e do neofascismo

 

Desde o começo, Adriano explica, a CasaPound preocupava-se com a questão da habitação, de como Roma está cheia de prédios vazios e, contudo, tantos sem-teto. Em nome de Pound, e com referência aos Cantos, desenvolveram uma proposta de política que afirmam poder devolver essas casas de boa pedra às famílias italianas. Eles a chama de Hipoteca Social. Famílias italianas de renda limitada têm, nesse esquema, a garantia de uma hipoteca sem juros, sobre uma casa recém-construída. A taxa de pagamento da hipoteca é limitada a um quinto da renda familiar, e a casa não pode ser retomada, nem revendida. É apenas um espaço de moradia, restrito, naturalmente, a cidadãos italianos.

Mural de uma das CasaPound da Itália

Como se fosse um prédio vazio, Pound foi ocupado por esses homens: podemos chamá-lo de roubo ou ressurreição, mas também é um ato de crítica literária “com usura não há clara demarcação”, Pound escreveu, “e homem algum encontra sua casa”, e as repetições bíblicas do canto continuam a ecoar. O poema enobrece a política, a política preenche o poema e, nas mãos da CasaPound, tudo está entrelaçado, mesmo as coisas mais dissimilares: poesia difícil e política simples; a promessa de um lar e desprezo por gostos burgueses. Para festejar o aniversário de Pound, em novembro de 2013 – ele teria feito 128 anos –, os meninos da CasaPound penduraram pôsteres em cinquenta cidades italianas. “Il tempio é sacro perche non é in vendita”, foi seu slogan, em uma citação dos Cantos: o templo é sagrado porque não está à venda.

No fim de minha manhã na CasaPound, pergunto a Adriano o que está escrevendo agora. Ele me diz que não está escrevendo nem uma biografia, nem nada ideológico, não é outro livro tentando ver Pound estritamente como fascista. Seu livro se chama Ezra Fa Surf –Ezra Surfa –, graças a uma fala de um de seus filmes favoritos. Em Apocalypse Now, o coronel Kilgore, um psicopata, declara ao vietcongue que ele está para queimar com napalm: “Charlie não surfa”. Adriano quer dizer o oposto de Pound. Ele quer dizer que Pound é legal, Pound é icônico, uma figura pop que veio para nos salvar da crise financeira global e dos banqueiros sombrios por detrás da União Europeia. Quando nos separamos, Adriano e eu apertamos as mãos, calorosamente, e concordamos em trocar cópias dos nossos livros, uma vez terminados.

O que aconteceu depois ficou comigo desde então. A entrevista termina e, quando Adriano e eu nos despedimos, o intérprete, Seb, se oferece para me levar para almoçar em um restaurante das redondezas. Esse restaurante, explica, é amigo da CasaPound. Antes de sair, inclinamo-nos para fora da janela e fumamos cigarros. Ele me conta do atelier, usando a palavra francesa, em que artistas podem usar espaço de estúdio em troca de algumas horas de trabalho como guardas noturnos. No ano passado, projetaram uma imagem enorme da cabeça de Mussolini do lado do prédio.

Em nosso caminho, ele me faz subir a escada, por entre salas azulejadas e empoeiradas, até o hostel. As pessoas pagam poucos euros por noite, ele diz, e há bandeiras nas paredes e beliches. Pergunto de onde vêm as pessoas que ficam lá. Vêm de Quebec, ele diz, mas não do Canadá inglês. Vêm da Irlanda, mas não da Inglaterra, e dos países mediterrâneos, e da América Latina. Seb mora aqui com a esposa. Conta-me que trabalhou por dez anos em um escritório em Quebec, um bom emprego com aposentadoria, e um dia veio para cá, para morar em um prédio sem aquecimento.

Caminhamos para o almoço em meio a colunatas e rasgos de luz do sol, passando por carrinhos vendendo roupa de baixo e pôsteres da CasaPound nas paredes, todos com o logotipo de uma tartaruga geométrica achatada, vermelha, branca e preta. Na esquina, encontramos outros homens – barbas, cabelos cortados, sorrisos – e nos enfiamos na sombra de um restaurante de portas abertas. Parece com qualquer outro em Roma – toalhas brancas, fotos de pequenas celebridades que comeram aqui –, exceto porque todos os garçons têm tatuagens no antebraço e porque, no fim, depois de antepastos frios, um pesado tagliatelle all’Amatriciana com pedaços gordos de bacon nadando no molho, vinho tinto de jarra, um bitter digestivo marrom e café, jamais veio conta alguma. O que estamos fazendo, diz-me Seb enquanto comemos, não está ligado a dinheiro.

 

  1. Uma nova suástica em passo de tartaruga – mas não parada (nem desarmada)

 

Antes de ir a Roma, eu esperava muitas coisas. Tinha visto as fotos dos jovens fortes, suas cabeças raspadas, suas barbas; tinha visto o símbolo, a tartaruga que é quase uma suástica. Tinha lido sobre como recolhem seringas usadas dos parques de bairros pobres e como limpam ciclovias; e também tinha lido como, em dezembro de 2011, um apoiador da CasaPound saiu atirando em um mercado, em Florença, matando dois comerciantes senegaleses, e ferindo mais três. Podia ter previsto que neofascistas italianos teriam um almoço excelente, e que sua generosidade, ainda que estreita, seria profunda. Eu estava pronto para o sorriso e para os dentes.

O que eu não esperava era sua elevação, ao lado da criminalidade, e como esses dois traços podiam ser coerentes, em uma única forma de estar no mundo. No almoço, Seb e eu concordamos que George Orwell era um grande escritor, e outro jovem poundiano à mesa me recomendou um livro. Era Ezra Pound e o fascismo italiano, de Tim Redman, publicado pela Cambridge University Press, um estudo sério e erudito, um livro que realmente admiro muito. Não sou bobo. Entendo que esses filhos de Ezra viram em mim aquilo com que poderiam concordar, e talvez isso funcione em ambas as vias. Quando entrevisto pessoas, sempre me visto bem. Normalmente faço o professor de poesia distraído, de gravata de malha e meias brilhantes, porém, na noite anterior à minha ida a Roma, cortei o cabelo curto, pois queria parecer com eles, e queria que eles gostassem de mim.

Os historiadores têm sido compreensivelmente cautelosos ao reconhecer o apelo de políticas extremistas, e particularmente do fascismo. “Fascistas não têm realmente conceitos”, nota o historiador Tony Judt, “eles têm atitudes”, e essa leve condescendência é compartilhada por analistas liberais e historiadores do fascismo. Eles notam as contradições das alianças do fascismo, e o caráter infinitamente negativo de sua ideologia, que tem muitas coisas para não gostar, mas poucas para propor. “A política fascista foi construída a partir de um empréstimo por atacado de ideias”, escreve Denis Mack Smith, biógrafo de Mussolini, e essas ideias mudaram com frequência: Mussolini foi sucessivamente socialista, liberal de mercado livre e capitalista monopolista. Se buscamos coerência na política, isso parece hipocrisia, ou contradição. Mack Smith conclui que qualquer atração que o fascismo exerce sobre intelectuais deve ser “irracional”.

O aspecto parasitário e de colagem do fascismo – um movimento que é claramente reativo, que toma seus símbolos de outros lugares e não é guiado por uma ideologia clara – tornou fácil ridicularizá-lo, e fácil deixá-lo escapar. Mas é precisamente nesse estoque de coisas díspares que o fascismo encontra poder. Em outubro de 2012, o think tank Demos examinou os seguidores da CasaPound no Facebook. A amostra não é necessariamente representativa, pois as pessoas têm muitas razões para clicar “like” na página bem feita do movimento – eu segui a CasaPound por muitos anos –, mas o relatório observa que os apoiadores da CasaPound tentem a ser homens, e tendem a desconfiar das instituições. Ele nota a “ambiguidade” do movimento, e continua:

 

O que parece ser claro em nossa pesquisa é que a CasaPound é atraente para um número significativo de italianos – particularmente italianos jovens – por meio de uma combinação de ideologia de extrema direita e esquerda, símbolos e métodos. Uma quantidade de pessoas vê a abordagem direta da política pela CasaPound – através de protestos de rua, ocupação de prédios abandonados e piruetas políticas – e a ênfase em cultura e música como uma alternativa empolgante à política tradicional.

 

Não há um livro sagrado do fascismo, um manifesto ou documento fundador. O templo está vazio e, ao encontrar esse espaço oco, os meninos da CasaPound preencheram-no com a figura de Ezra Pound. Eles têm um militante encarregado da cultura. Eles pintam os nomes de seus heróis nas paredes. “É precisamente nesse estoque de coisas díspares que o fascismo encontra poder”.

               No restaurante, Seb me conta que, alguns anos atrás, ele foi qualificado como o quinto restaurante de Roma no site turístico TripAdvisor. Ele não tem certeza de como isso aconteceu – talvez uma falha no algoritmo, talvez um pequeno número de resenhas desproporcionalmente positivas –, mas isso significou que gente de Tel Aviv e Sydney ligava para reservar mesa com um ano de antecedência. Seb ri ao me contar como os meninos tiveram que fingir que possuíam um livro de reservas, enquanto o turista gastronômico aguardava do outro lado da linha. O restaurante sequer tem um freezer, ele diz. É assim que terminamos nosso almoço. Quando nos levantamos para partir, ofereço um aperto de mão ao garçom, que estica seu braço direito, com a tartaruga no antebraço, aperta o meu acima do pulso e sorri.

 

  1. O homem, mas também a obra

 

Estamos próximos, esse garçom e eu; e, por aquele instante, unidos em um gesto congelado que, embora fosse estranho e abrupto, era também familiar. Tratava-se do aperto de mão romano sobre o qual tinha lido. “Minha pele se retesou entre minhas omoplatas e meu pulso”, escreve Pound no “Canto 72”,

 

agarrada em um aperto de ferro tal
que eu não podia mover pulso ou ombro.
E vi um punho agarrando meu pulso, mas não vi o antebraço.
Segurando-me com a firmeza de um prego na parede.[6]

 

É uma imagem curiosa, incorpórea – esses pulsos apertando, separados dos braços – e ele acrescenta: “Isso parece bobo para qualquer um que não o experimentou”. Um pouco estranho, porém sinistro, pois o fantasma que está agarrando Pound aqui termina prometendo: “Os regimentos e as faixas hão de retornar”.

Pound escreveu o “Canto 72” – e seu companheiro, o “Canto 73” – bem no final de 1944, quando o fascismo italiano estava em colapso. Roma caíra em junho daquele ano e, conforme os exércitos aliados avançavam pela Itália, o Estado fascista retirou-se para a República de Salò, apoiada pelos nazistas, no norte. Em dezembro, tropas britânicas estavam em Ravenna, e Mussolini fez seu último discurso público, porém os cantos escritos nesse período prometiam eternidade. “Quando se começa a recordar a guerra de merda / certos fatos renascem”, começa o “Canto 72”, e Pound – sempre o historiador ávido – relata como um morto vai até ele. É Marinetti, que morreu em 2 de dezembro de 1944, mas deseja continuar lutando. “Quero continuar lutando / quero seu corpo, com o qual poderia continuar lutando”, a sombra de Marinetti diz a Pound. “Vou lhe dar um lugar em um Canto”, promete Pound, “dando-lhe uma voz”.

Isso é o que Pound sempre deu. Na República de Salò, ele continuou a escrever roteiros para os outros lerem no ar, e aqui, no “Canto”, ele ainda está transmitindo, nas ruínas, e dando voz aos fantasmas do fascismo. Marinetti parte com o grito “PRESENTE!” – o slogan gravado em estátuas de mármore espalhadas pela Itália, nos anos 1930, para marcar os mártires da causa fascista –, e Pound prossegue para um encontro com um déspota medieval, que lista os heróis do movimento fascista, e generais que morreram durante a guerra. Agora eles estão esquecidos, mas são novamente nomeados – Farinacci, Miele, Borsarelli, Volpini –, e ele os chama de “heróis”. O poeta entrega o canto para essas visões; ele saúda a parada. Isso é menos um poema do que uma saudação.

O “Canto 72” é um poema de presença – do retorno modernista dos mortos e da perpetuidade do sonho fascista – e, contudo, também é, ansiosamente, um poema de ausência e esquecimento. Mais tarde, Pound brincava, dizendo que os “Cantos 72” e “73” eram seus “cantos fantasmas”, pois tinham sido cuidadosamente deixados de fora de seus volumes publicados. Parecem um pouco um desafio esplêndido; contudo, neles também há um silenciamento envergonhado, e a consciência de que os melhores esforços desse poeta deram em pouca coisa, terminaram naquilo que o canto descreve como “Confusão de vozes, como frases entrecortadas de diversos transmissores”. Se esse poema é um monumento fascista, também é, como todos os monumentos, extremamente consciente da facilidade com que a História pode ser esquecida.

Para o crítico Robert Casillo, o “Canto 72” é a “prova cabal” da “realidade e centralidade do fascismo de Pound” e, para Humphrey Carpenter, biógrafo de Pound, “não há nada nem remotamente ambíguo sobre a posição política desse canto”. Não tenho tanta certeza. Li esse poema muitas vezes, e cada vez termino em divisão. Vejo suas feias vanglórias, e como ele se devota ao nome, e se encarrega de uma política abominável; e vejo suas hesitações esquisitas, sua estranheza profunda e, por outro lado, pergunto-me se não estou apenas tentando perdoar Pound, abençoando-o com indecisões que ele, de fato, não possuía. À luz romana, o poema parece diferente. Por vezes adverte dos perigos da cumplicidade; por vezes, sussurra a respeito do corpo enfraquecido e da mensagem prometida e, por baixo disso tudo, sabe que os vínculos têm que vir por algum preço. No sol de depois do almoço, na rua, fora do restaurante, me despeço, e Seb diz que, quando o livro sair, eu poderia dar uma palestra na CasaPound. “Nós o convidamos”, diz ele, “se você for corajoso”.

 

ADENDO

CASAPOUND VENCE PROCESSO CONTRA FILHA DE POUND

Adriano Scianca

Cada vez mais as liberdades se restringem, cada vez mais se definem liberdades fixadas por lei, cada vez maior é o empenho por estabelecer do que e como se pode falar. Mas, de vez em quando, há uma fresta por onde passa a luz. A CasaPound, por exemplo, poderá continuar chamando-se assim. O juiz julgou improcedente ação interposta por Mary de Rachewiltz, que considerava lesivo para a honradez da memória do pai o nome da associação de via Napoleone III.

Isso não ocorre, estabeleceu o magistrado italiano. Isso não ocorre porque “a associação, enquanto tal, atua de modo completamente legítimo e, de qualquer maneira, no respeito das normas vigentes”. Assim reza a sentença. Além disso, “as próprias iniciativas assumidas pela associação implicam encargo propagandístico, cultural, social e inclusive artístico”. O juiz esclareceu ainda que a CasaPound “já assumiu agora uma sua identidade  cultural e associativa  completamente autônoma no que diz respeito à imagem do poeta Ezra Pound”. Em suma, as pessoas conhecem mais a CasaPound do que o próprio Pound, e talvez fosse isso que deveria ter preocupado os tantos apaixonados da obra do poeta norte-americano (que nesses anos despontaram como cogumelos, quando se tratou de dar em cima da CPI, aproveitando a onda longa do processo).

 

Mary de Rachewiltz

 

“Não obstante o processo tenha muitas vezes sido transformado em lamentável rixa verbal por parte de quem, evidentemente, possuía menos argumentos do que a CasaPound, o informativo do Ministério Público, que o juiz não pôde ignorar, foi o que decidiu a questão. Foi feita justiça”, comentou Domenico Di Tullio, advogado do movimento de Gianluca Iannone, o líder de mencionada CasaPound. E foi justamente o presidente da CPI, por seu lado, quem proclamou a vitória: “Uma outra batalha foi ganha”.

“Finalmente – explicou Iannoneencerra-se uma vicissitude a respeito da qual têm sido escritas páginas de tinta inútil: Ezra Pound é patrimônio de todos, da humanidade inteira, e a nossa é uma homenagem a um autor por excelência percuciente e não conformado, a quem amamos e que estudamos, e cuja luta contra a usura foi o primeiro símbolo da luta pelo direito à propriedade da casa sobre a qual foi construída a CasaPound, uma luta que – sem dúvida (sic) – o poeta teria compartilhado.

Convidamos Rachewiltz a tocar com a mão tudo aquilo que criamos na Itália inteira em nome do pai dela: temos certeza de que ela, afastada dos que a instruíram erroneamente, saberá compreender por que seu pai foi para nós uma fonte de inspiração”.

Não seria má ideia, realmente. Seria uma forma de se colocar um ponto final numa questão que jamais deveria ter começado. Pound, por sinal, não tinha muita simpatia por processos, juízes e papel timbrado. Grande parte dos que, nesses últimos anos, foram como que em peregrinação ao castelo de Merano em que vive a senhora, são os filhos espirituais e políticos daqueles que puseram o pai dela numa jaula a céu aberto e depois o fecharam num manicômio”. “Inestimável patrimônio a ser tutelado”, Pound só se tornou depois de morto, para muitos jornalistas, quando se tratava de explorar seu nome para construir novas jaulas, para outrem. A verdadeira companhia embaraçosa, para o espírito do grande poeta, quem sabe tenha sido justamente esta. Com certeza não aquela dos “garotos que se vestem de preto” da CasaPound.

 

Roma, 10 de junho de 2017[7]

 

[1] Produzidos às centenas e durante vários anos, militantemente, até o fim do governo de Mussolini. A entrada das forças aliadas na Itália provocou a queda do regime fascista em 1943 e a prisão do ditador, que foi em seguida libertado por um comando alemão e reinstalado na “república” fantoche de Salò, no norte da Itália. Pound continuou a apoiar Mussolini em Salò, agora sustentado diretamente por tropas hitleristas.

[2] Na edição brasileira dos Cantos traduzidos por José Lino Grünewald (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986), o índice salta, estranhamente, do “Canto 71” para o “74”.

[3] Acessível em: https://www.britannica.com/biography/Ezra-Pound [tradução L.D.].

[4] Idem.

[5] Tradução José Lino Grünewald.

[6] Como os “Cantos 72” e “73”, exaltações e convocações à continuação da luta escritas nos derradeiros momentos do governo de Mussolini, em 1944-45, foram omitidos da obra editada de Pound, tendo sido apenas publicados póstuma e tardiamente, não constam das maioria das edições dos Cantos, incluindo brasileiras. Usamos, aqui, o próprio texto do artigo (nota de Sibila).

[7] A notícia do processo e os comentários do articulista indicam explicitamente que o articulista se coloca inteiramente ao lado dos que criaram outro mito acerca de Pound, o do grande artista e homem de enorme sensibilidade que sofreu injustamente nas mãos “daqueles que [o] puseram numa jaula a céu aberto e depois o fecharam num manicômio”, subtendendo-se, pelo que é dito e pelo que não é dito, que se trata de homens ou instituições dedicados a perseguir artistas e homens de sensibilidade, quando não a própria arte e a mesma sensibilidade. É uma radical manipulação dos fatos, quase à maneira fascista. Pois os verdadeiros perseguidores da arte, dos artistas e da sensibilidade foram aqueles que o próprio Pound apoiou e defendeu, os membros do governo fascista de Mussolini, tendo sido exatamente por esse apoio e por essa defesa que Pound foi julgado e condenado após a derrota do nazifascismo em 1945. Já os neofascistas italianos da CasaPound, para o mesmo articulista, são gente de bem. Resta acrescentar que a filha de Pound tampouco parece movida pelo puro apreço à verdade, pois “Mary de Rachewiltz, que considera lesivo para a honradez da memória do pai o nome da associação [neofascista CasaPound]”, tem de ignorar que muito mais lesivos para tal honradez e para tal memória são os próprios fatos de sua biografia, a saber, seu antissemitismo e seu apoio a Mussolini, que os “meninos da CasaPound” têm todos os motivos para poder explorar. Em todo caso, em toda essa aparente confusão, o mais claro, o mais alarmante e mais digno de nota é o fato de a justiça italiana, hoje, ver tantos méritos e tanta legitimidade numa organização neofascista (“a associação, enquanto tal, atua de modo completamente legítimo e, de qualquer maneira, no respeito das normas vigentes; além disso, as próprias iniciativas assumidas pela associação implicam encargo propagandístico, cultural, social e inclusive artístico”) (nota de Sibila). Justiça italiana vergonhosa.