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Fábrica de subpoetas

(MAIS UMA OBRA MENOR DA COMPANHIA ILIMITADA DE DESPOESIA BRASILEIRA)

“A Poesia para os poetas (…). Houve um fenômeno de democratização estética (…). Copiar (…). [Todos] de todos os lares ficaram artistas (…). As procissões saíram novinhas das fábricas. Só não se inventou uma máquina de fazer versos (…).” (Oswald de Andrade)

“Tem uma banda que eles já vão contratar/ Que não cria nada,  mas é boa em copiar (…)/ O papo do mais novo big star (…)/ Pois new old é a nova sensação/ A burrice é tanta, tá tudo tão à vista/ E todo mundo posando de artista/ Eu sei até que parece sério, mas é tudo armação/ O problema é muita estrela pra pouca constelação.”

(Raul Seixas e Marcelo Nova)

  1. É muito poeta para pouca poesia: a era da reprodutibilidade técnica de nulidades estéticas

A leitura do título, do subtítulo, das epígrafes e do intertítulo é suficiente para a apreensão do tema e a compreensão do objeto em debate: para bom entendedor, pois, esses elementos “supratextuais” tornam desnecessário um preâmbulo explicativo. Afinal, não há dúvida, evidentemente, que o ponto de partida deste artigo é a problematização da relação inversamente proporcional entre a imensa quantidade de poetas e a ínfima qualidade da poesia produzida hoje no Brasil. Todavia, considerando a desproporção entre a grande quantidade de obras e a baixa qualidade do público, não seria redundante, mas prudente, deixar o óbvio mais evidente (com o perdão do pleonasmo enfático). Sendo bem didático, assim, chamo a atenção para o traço semântico que liga a palavra “fábrica”, do título, ao termo “companhia ilimitada”, do subtítulo, bem como à expressão “democratização estética” e à frase “as procissões saíram novinhas das fábricas”, dos trechos em epígrafe do poeta modernista Oswald de Andrade, ao verso “todo mundo posando de artista”, dos excertos da parceria dos roqueiros Raul Seixas e Marcelo Nova. 

Não é demais esclarecer aos leigos que toda fábrica produz em série determinado “bem material”, pouco importa se carros, brinquedos, vassouras, louças, eletrodomésticos, bebidas ou enlatados: como toda atividade empresarial, o propósito, no final das contas (o trocadilho é sintomático), é sempre auferir lucros. Entretanto, o fato de que toda fábrica seja uma empresa não implica – não confunda – que toda empresa seja de fato uma fábrica: se é verdade que há inúmeras empresas que também produzem “bens”, não é mentira também que nenhuma fábrica presta serviços. Quanto à “companhia” – que é o que vem ao caso, claro -, o traço distintivo é outro: embora possa produzir bens, como todas as fábricas e várias empresas, ou prestar serviços, como diversas empresas, nenhuma “companhia” – a bem do rigor terminológico – pode ser “individual”. 

Posto isso, não é nada difícil entender o que uma coisa, no título, tem a ver com a outra, no subtítulo. O raciocínio é bem simples: se uma fábrica que produz, por exemplo, papéis (de embalagens ou higiênicos) ou livros (de literatura ou autoajuda) for uma organização empresarial de natureza “coletiva”, pode ser considerada, também, uma “companhia”. Considerando que este artigo emprega os termos técnicos do Direito em sentido figurado – e que, conforme o tipo de responsabilidade patrimonial dos sócios pelas obrigações sociais, uma sociedade empresarial pode ser “limitada” ou “ilimitada” -, a tal “companhia ilimitada de despoesia brasileira”, associada à metáfora da “fantástica fábrica subtropical de subpoetas”, representam o modo de funcionamento da ordem do discurso literário contemporâneo tupiniquim. O que exige, metodologicamente, a análise dos níveis desiguais – estéticos e éticos, políticos e poéticos – em que se combinam os diversos problemas, cujos efeitos de conjunto são desastrosos. 

Isso significa, em outras palavras, que a presente dinâmica regressiva nas letras não pode ser bem compreendida, por exemplo, abstraindo-se a multiplicação de pequenas editoras segmentadas (que inundam de livros de poesia – dominantemente ruins – o mercado saturado), nem ignorando a proliferação de oficinas de criação literária – em instituições públicas, como a USP, e espaços privados -, que (re)produzem, em desastrosa progressão geométrica, novos caricatos bardinhos diluidores. Guardadas as devidas diferenças conjunturais entre aquele Brasil do revolucionário poeta modernista e este dos patéticos epígonos pós-utópicos, é inequívoco – no decurso de um século – que ocorreu um expressivo aumento da desproporção entre a quantidade de editoras, livros e poetas, de um lado, e a qualidade da produção e interpretação dos textos, de outro. É exatamente nesse quadro de relações objetivas e subjetivas (materiais e ideológicas), enfim, que tanto Oswald de Andrade denunciara o fenômeno da “democratização estética”, responsável pela fabricação de nulidades da arte “em todos os lares”, quanto Raul Seixas e Marcelo Nova expuseram ao ridículo o oportunismo mitificador da indústria cultural, que vende como “nova sensação” incontáveis imitadores baratos: cujas precárias (re)produções em linha de montagem mercadológica, evidentemente, não haveriam mesmo de ter nada de novo a oferecer. 

Trazendo o sarcástico recado do manifesto e o sarro arrasador do rock ao palco do debate, para concluir então com o intertítulo, contata-se – neste insólito cenário estético bem piorado – que as “procissões” poéticas seguem saindo “novinhas das fábricas”, engrossadas por bandos de bardos re-citando (o hífen dobra o coro indecoroso da cópia da cópia) toscas trovas nas trevas subtropicaóticas. A propósito dos despropósitos, que não se esqueça que o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” começa metendo o pau (com o trocadilho no alvo hipócrita) no princípio provinciano – sem princípios – da (de)formação da pérfida “pátria” de espúrios párias, inescrupulosos apropriadores indébitos em pose totêmica de estátua: “Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. (…) Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas (…).” 

Frente aos infaustos fatos, tão públicos e notórios, quem haverá de negar – tendo o mínimo senso crítico e não fazendo vista grossa à grave indigência da inteligência – que há mesmo “muito poeta pra pouca poesia” abaixo da linha do Equador e dos critérios críticos? Diante de milhares de pobres (re)produções pop-poéticas em série, a velha tragédia – quem dera não ficasse ainda pior que péssimo – se (re)encena como farsa da farsa da farsa grotesca indisfarçável. Em síntese diagnóstica do crônico quadro de “óbvia ululante” degradação est/ética, enfim, a sentença aforis(xeque-mate)mática é certeira: sub-traída a poesia, e multiplicando todo livro que não presta de todo mundo que posa de poeta, a conta não fecha. Ou melhor, pior ainda, aqui embaixo o “poema” é bem mais embaixo: o saldo fecha mais negativo. Em outros termos (quantitativo-desqualificantes), mais do mesmo é hoje bem menos mesmo: eis o agravamento progressivo da insuficiência artística nacional.

  1. A (re)produção artística na linha de (des)montagem (sub)cultural: uma cópia é uma cópia é uma cópia é uma cópia…

Apesar de estar “tudo tão à vista” (toca Raul!), “a burrice é tanta” que a turba alienada não acredita que “é tudo armação”: por isso, nestes tempos tenebrosos em que sopram – em todas as frentes – tempestuosos “ventos de boçalização” (na metáfora eólica de Trótski), a prudência requer de quem escreve redobrada atenção. Como medida preventiva contra os terríveis efeitos das distorções de leitura, pois, é imprescindível não descuidar da explicação minuciosa dos pressupostos do debate: a “vacina” didática, se não os evita, ao menos minimiza os males provocados pelos obtusos desvios interpretativos (o entendimento parcial ou a total incompreensão dos fatos problematizados). Conforme ensinara ao “Jovem Sócrates” o alter ego filosófico de Platão, logo, “é mais fácil, qualquer que seja o assunto de que se trate, servirmo-nos de pequenos exemplos”. Marx, para concluir, “o que se pode demonstrar no detalhe é ainda mais fácil de apresentar quando as relações são apreendidas em dimensões maiores”.

Retomando a primeira epígrafe para contextualizá-la e localizar os elementos que importam ao debate, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (publicado em 1924) foi uma proposta estética de “redescoberta” do país, de tomada de consciência das nossas contradições históricas constitutivas, condição necessária – na síntese dialética entre a herança “invasora” e as singularidades autóctones – para que o Brasil pudesse se reinventar e concorrer no “concerto das nações” (na expressão de Mário de Andrade) com sua parcela “original”. Nessa perspectiva insubordinada é que Oswald protestara “contra o gabinetismo”, contra a grandiloquente e artificiosa retórica bacharelesca, contra “o lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos” (que o outro Andrade chamava de “discurseira de arrastão”), contrapondo a “invenção” e a “surpresa” à farsesca “cópia”. Para o polêmico antropófago, a “história comercial do Brasil” desde sempre foi predominantemente marcada pelas “frases feitas”, pela “importação” de modelos estéticos definidos pelos colonizadores, que os subservientes brasileiros sempre se empenharam em imitar: sempre à espera da aprovação dos estetas “superiores” do Primeiro Mundo, no patético papel de aluninhos esforçados da Metrópole. Nada de novo sob o sol subtropical, aliás, como ratifica este outro trecho (a aliteração em “t” – sintomática – traduz a tal trágica “cruz” da “Primeira Missa”, deitada eternamente sobre as reverentes curvas costas atlânticas): “A interpretação do dicionário oral das Escolas de Belas-Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas”. 

Na montagem do texto (“o poeta modernista sabe que o cinematógrafo existe”), os flashes descritivos e os cortes narrativos, compondo um amplo painel sociocultural da provinciana República das/dos Bananas, indiciam que os estereótipos artísticos são reflexos do modo de funcionamento do discurso estético hegemônico. Produtos dessa dinâmica geral, portanto, as cópias não se repetiriam apenas na pintura – “Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo não prestava (…). O quadro histórico, uma aberração” -, mas também se replicariam na escultura – “A estatuária andou atrás (…). A escultura eloquente, um pavor sem sentido” -, se reproduziriam na música – “todas as meninas ficaram pianistas”, se revelariam na fotografia – “com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado, o artista fotógrafo” -, se reencenariam no teatro – “O teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais (…). A peça de tese era um arranjo monstruoso” – e se reeditariam na literatura – “O romance de idéias, uma mistura”. Como metonímia sintomática dessa esterilidade “imitativa” em linha de montagem – “A reação contra o assunto invasor, diversos da finalidade” -, o subversivo poeta daria destaque ao gênero literário que intitula o manifesto, para atacar ironicamente, por fim, o próprio processo de automatização da produção poética institucional, reprodutora de reacionários valores estéticos ornamentais, tão flagrantemente anacrônicos (a sempre requentar a tradição clássica – já tão requentada) quanto evidentemente “inautênticos” (a copiar sempre modelos estrangeiros – já tão copiados): “Só não se inventou uma máquina de fazer verso – já havia o poeta parnasiano”.

Sem entrar em pormenores conjunturais do centenário embate, a fim de não perder o foco da questão central sob exame, os exaustivos exemplos servem aqui para corroborar a premissa epistemológica de que há uma relação dialética entre as condições históricas – materiais e ideológicas – de produção e reprodução de objetos artísticos e valores estéticos, atestando que o desenvolvimento de novos meios técnicos, naquele incipiente contexto específico de formação da “indústria cultural”, conduziria à popularização da arte e à vulgarização dos critérios de criação. Essas noções básicas, em síntese, são fundamentais para esclarecer o que Oswald caracterizara como “fenômeno de democratização estética”: vale lembrar que a estética naturalista – fundada no princípio da representação “fiel” da realidade – era ensinada nas Escolas de Belas-Artes, formando pintores cujas telas eram “iguaizinhas”. Para ilustrar a tese da implicação recíproca entre o incremento tecnológico e a diluição popularesca, recordemos que o autor apontara também a invenção da máquina fotográfica – novo meio produzido em escala industrial -, que criaria as condições materiais para “todos” (que pudessem comprá-la, certamente) posarem de “fotógrafos” reproduzindo imagens “iguaizinhas”. Sob a mesma lógica vulgarizante, a fabricação em série do piano – instrumento musical que “invadiu as saletas nuas” – possibilitaria que “todas as meninas” (de famílias abastadas, é óbvio) se tornassem “pianistas”. 

Posto isso, convém ressalvar que, apesar de localizar o “fenômeno da democratização estética” e identificar seus efeitos danosos em distintas manifestações artísticas, o libelo modernista – dada sua natureza telegráfico-literária – evidentemente não se propusera a investigar os fatores responsáveis pelo processo de massificação e rarefação da arte. 

Em busca de subsídios teóricos para proceder à análise dessa dinâmica degenerativa, tentando responder às questões essenciais deixadas em aberto no texto, vem à memória o inaugural ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Particularmente a nota 76, em que Walter Benjamin evocara – como argumento de autoridade de endosso à sua tese – o certeiro diagnóstico do escritor Aldous Huxley sobre a vertiginosa escala industrial de fabricação de arte descartável, cujo perverso efeito seria o imenso acúmulo de lixo cultural (que a prova da história, desgraçadamente, ratificou – retificando o prognóstico, na verdade, como ainda mais desastroso): 

“Os avanços técnicos (…) levaram à vulgaridade (…), a reprodutibilidade técnica e a prensa rotativa possibilitaram uma multiplicação incalculável de escritos e imagens. A formação escolar generalizada e os salários relativamente elevados formaram um público muito grande capaz de ler e de se abastecer de material literário e imagético. Para fornecê-lo, estabeleceu-se uma indústria significativa. O talento artístico, porém, é algo bastante raro; disso segue (…) que a todo tempo e em toda parte a porção preponderante da produção artística tenha sido medíocre. Hoje (…) a porcentagem de lixo no conjunto da produção artística está maior do que nunca (…). Enfrentamos aqui um problema aritmético simples. No decorrer do século passado a população da Europa Ocidental pouco mais que dobrou. Estimo, porém, que o material literário e imagético tenha crescido no mínimo na proporção de 1 para 20, talvez até para 50 ou 100. Se uma população de x milhões possui n talentos artísticos, uma população de 2x milhões terá provavelmente 2n talentos artísticos. A situação deixa-se resumir do seguinte modo: para cada página impressa contendo material literário e imagético há cem anos são impressas hoje vinte, se não cem páginas. Se, por outro lado, existia um talento artístico há cem anos, existem hoje em seu lugar dois. Eu concedo que, devido à formação escolar generalizada, um grande número de talentos virtuais que antes não teriam chegado a desenvolver os seus dons podem hoje tornar-se produtivos. Estabeleçamos, pois (…), que hoje correspondam três ou mesmo quatro talentos artísticos a cada talento artístico de outrora. Mesmo assim, continua indubitável que o consumo de material literário e imagético tenha ultrapassado de longe a produção natural de escritores e desenhistas dotados (…). Disso resulta, pois, que em todas as artes, falando tanto absoluta como relativamente, a produção de lixo é maior do que antes; e assim deve permanecer enquanto as pessoas seguirem, como atualmente, a exercer um consumo desproporcional de materiais literários, imagéticos e sonoros.” (BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Porto Alegre: L&PM, 2017, pp. 114-115).

A leitura do excerto deixa evidente a preocupação sistêmica de Huxley, abrangendo em sua análise estética a totalidade das manifestações artísticas (da literatura à pintura, da música ao cinema, da escultura à fotografia). O autor de “Admirável Mundo Novo”, não é demais enfatizar, estabeleceu uma conexão direta – um nexo de causalidade – entre os “avanços técnicos” e o aumento exponencial de “escritos e imagens”. Exatamente como propusemos já nas primeiras linhas do artigo, constatou a relação inversamente proporcional entre a enorme quantidade de “materiais literários, imagéticos e sonoros” e a baixíssima qualidade das produções. Para concluir por ora, sem esquecer a crítica proverbial sarcástica de Raulzito e Marceleza, a moral desta história, enfim, está na cara: “É muita estrela pra pouca constelação”. 

PS: Definidos os elementos centrais do debate, o foco do próximo artigo será o processo de reprodutibilidade técnica de nulidades estéticas na literatura, com ênfase na poesia brasileira contemporânea.  

 


 Sobre Paulo Cesar de Carvalho

o Paulinho, é bacharel em Direito (USP), mestre em Linguística e Semiótica (USP), professor de Língua Portuguesa (lecionou na ECA-USP) e autor de materiais didáticos de Gramática, Redação e Interpretação de Texto. Publicou seis livros de poesia, constando em antologias literárias no Brasil e em Portugal (como em É agora como nunca, da Companhia das Letras, organizada por Adriana Calcanhoto). Compositor, tem canções gravadas por diversos músicos da cena contemporânea. Foi militante da organização trotskista Convergência Socialista.