Dois barcos encalhados um no outro, feitos de sabão, aos quais foram acoplados dois conjuntos de caixas de som. De um desses conjuntos de caixas de som sai a voz de um ator masculino; do outro, uma mistura de um coro masculino com um apito muito grave, como o de um navio. Este apito/coro murmura trechos de coros de tragédias de Ésquilo e Sófocles (as letras sublinhadas assinalam a entrada do apito grave, feito pelo alongamento de uma das vogais).
O texto lido pelo ator utiliza fragmentos de “Um lance de dados”, de Mallarmé (tradução de Haroldo de Campos); “História trágico-marítima” (naufrágios do “Galeão São Bento” e da “Nau Santa Maria da Barca”); “Tufão”, “O espelho do mar” e “O negro do Narciso”, de Joseph Conrad (traduções de Albino Poli Jr., de Celso M. Paciornik e de Luzia Maria Martins); “Moby Dick”, de Herman Melville (tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos); “O homem do violão azul”, de Wallace Stevens (versão de Nuno Ramos); os trechos recitados pelo coro são das tragédias “Coéforas”, “Eumênides”, “Agamêmnon” e “Os persas”, de Ésquilo e “Ajax”, de Sófocles (tradução de Mario da Gama Kury e Manuel de Oliveira Pulquério).
(Alto, como se anunciasse alguma coisa em público) Ouçam esta (Coro: Surpreendente!): “Logo através da atmosfera desnorteante e baça, distinguiram seu fantasma que, inclinado, esmaecia; apenas a parte superior dos mastros estava ainda fora da água.” (Coro: Ai de nós!) Ou esta: “Círculos concêntricos colhiam a própria embarcação solitária e todos os marujos, e cada remo flutuante, cada cabo de lança, cada fibra, animada ou inanimada, tudo, girando e regirando num vórtice, até a menor lasca, afundou-se, desaparecendo de vista.” Isso. De novo. Quase isso.
(Apito/ Coro: “O (Ator: Pausa! Pausa!) triste mal destruidor das frutas”)
(Rápido) Quase todo o resto, a borra do mar, depositada no fundo. Transformando-se numa espécie de gosma, de sopa semi-sólida. A porra do mar fecundo, ooooh, fecundando a nós. À terra! Ao horizonte imenso, cor-de-rosa! O mar de sopa fecundando. Quase a melodia. (Rápido) No fundo da saliva azul do mar babão. Quase a melodia, fecundando. Pir-lim-pim-pim. A linha contínua, delicada, de uma canção, por exemplo. Isso também. Isso também fecunda. Uma canção fajuta, vagaba. (Canta uma canção de Assis Valente) – “Andou chupando muita uva, e até de caminhão/ Depois anda dizendo que tá com apendicite/ vai entrar no canivete, vai fazer operação/ (Coro: chão duro!) O que é que tem a Florisbela nas cadeiras dela?” (Pausa) O que é que tem? O que é exatamente que tem a Florisbela nas cadeiras dela? E o que é que eu – eu-eu, este eu exato, incomensuravelmente exato, inevitavelmente coincidente comigo, que me acompanha agora como vem me acompanhando sempre – o que é que eu tenho com isso? Eu, (Coro: adulto!) fulano de tal, nome e sobrenome, primordialmente queixoso e gemente. Eu, portador da minha sombra, carregador dessa sombra como a um duplo escuro, eu que poupo com a espessura do meu corpo o metro de solo que ocupo involuntariamente, e as plantinhas e o asfalto, poupo a todos do sol inclemente, tropical, este sol de rachar, como se diz, de matar, de fritar um ovo sobre o chão. Eu, que faço isso sem que ninguém repare, sem alarde, sem pedir recompensa. Que alastro o espinhaço em horizontais e verticais doloridas, sem receber encômio, nem elogio, nem compreensão. Eu, a quase máscara de uma quase morte, uma carranca, em suma, minha própria carranca, com a qual sequer me identifico, perdida e reencontrada, todos os dias, no fundo de um (pausa, mudança de entonação) naufrágio. (Coro: Abismo!) Palavra mágica. Naufrágio. E sem aplauso! De novo – naufrágio. (Formal, como falando para um público imaginário) Quietos, nenhum comentário. Que ninguém aplauda. Apenas silêncio. Para que possa ecoar: naufrágio. (Coro: Ah, dores causadoras de outras dores) Naufrágio de vidro. Naufrágio dentro do mar fecundo. A quase porra do mar gosmento está gemendo, pedindo mistura, sopa de algas. Naufrágio. Onde tudo se mistura. O quase-pão de uma farinha estranha, dormida, sonhada. (Pausa) Quase isso. Ouça (com entusiasmo): o vento oeste está batendo, o rei dos mares está chamando. Êxito estelar. Ouça – o rítmico suspense do sinistro. Espumas primordiais. Lá dentro. No fundo azul, espesso. Sei lá. Espécie de lama – pra frente, pra trás. Assim, vai. (Coro: Ai!) Mete no lenho. Defunto tesudo. Põe lá dentro. Dentro de um… (Coro: Ai!) naufrágio. Isso. Ouviu? Naufrágio. Põe nos estais. Goza no leme. Fecunda o chão do convés, e ainda a carne de um polvo. Ovas. Mais ovas. (Pausa) Vai. (Alto) Vai!
(Apito/ Coro: “Ai! Tristes crimes!…(Ator: ver! ver!) Morres cruelmente!/ Quanto mais tarda, mais cresce o castigo.”)
Palavra mágica. Naufrágio. Mar morto. Ouça esta: abismo. Mesmo quando lançado em circunstâncias eternas. Não sei. Ouça esta: seja que o abismo branco, irado. Seja. Então seja. Silêncio. Nenhum comentário, tosse, celular tocando, pigarro. Nada. Todo mundo falando baixo, como num velório. Para que apenas uma palavra ecoe pela sala. Esta palavra – (Coro: Ai!) abismo. Apenas seja. Que ele seja. Que esteja aqui, presente entre nós. Neste exato momento. De novo: seja que o abismo. Que nossos corpos, em suaves prestações de afogamento, oceano adentro, metro a metro, estejam afundando, como pedaços de ferro maciço – enquanto rimos e rimamos, e continuamos a comer, e a ler, amar, e a fazer estas (num crescendo) o-bras-lin-das (Coro: castigo!). Seja que todos juntos façamos isso e por isso, exatamente por isso, ninguém perceba o que está acontecendo e assim continuemos todos a fazer as mesmas o-bras-lin-das todas os dias, sem ninguém se queixar (afinal, são lindas), enquanto nossos corpos, não nós, não exatamente nós, eles, eles, os corpos, nossos corpos, enquanto eles afundam. Seja que toda a orla tenha sido lambida, a palavra é esta, por uma onda salgada, salgadíssima, como um bacalhau mal cozido, e agora uma duna cubra a avenida beira-mar desta (recitando em ritmo mecânico, num crescendo) (Coro: dor!) ci-da-de-ma-ra-vi-lho-sa. E ninguém note nada, pelo motivo que acabo de explicar (o fato de ela ser maravilhosa) e, também, pelo fato de que continuamos afundando a profundidades inimagináveis, de um azul cada vez mais escuro, a afundar todos juntos, enquanto comemos, vamos ao escritório, ganhamos dinheiro, montamos uns sobre os outros em posições e penetrações inimagináveis. (Coro: Ai! Tristes crimes!) Sim, seja. Seja exatamente assim. Seja esta hipótese, confirmada por observações científicas, minuciosas, por provas e contraprovas, balanças e agulhas medindo a umidade do ar, medindo a radiação de fundo, o movimento das partículas mais elementares e, ainda, a formação da libido dos cientistas e dos observadores internacionais. (Pausa) A avenida beira mar desta cidade linda, coberta de areia. Seja assim. Mas ainda assim a minha voz – ouça. É mais forte do que eu (Cantarolando) – “você é um doce de coco, tá me deixando louco, tá me deixando louco” (Coro: Ai!), “você é um doce de coco, tá me deixando louco, tá me deixando louco”. É mais forte do que eu. Não posso parar. Não posso parar. (Coro: Assassino!) Ela afunda, também. A melodia que estou cantando. Esta cançãozinha vagabunda vai acabar estragando tudo. Esta melodia mixuruca. Não consigo parar.
(Apito/Coro: “Nenhum mortal consegue atravessar/ a vida inteira livre de amarguras”)
O clamor do grunhido. De dentro. Desde o âmago do estômago, declamando. Uma voz âncora, sendo arrancada lentamente. A voz submersa de uma agrura intestina. A voz que toma os espaços e ocupa a atenção dos ouvintes. Sim, a voz que cancela a deriva dos barcos, a flutuação do vento e o devaneio dos homens. (Com orgulho) A minha voz. (Som de quem arranha a garganta, como quem vai cuspir ou gargarejar, preparando-se para cantar). Agora. Ouça. (Coro: Castigo!)(Pausa, começando rápido, de uma só vez) Voz voz voz voz voz voz voz voz com com com areia areia areia areia areia areia igual igual igual igual igual igual igual igual a a a a a a a a a a a. (Pausa) Voz com areia igual a quê? Ou esta (Pausa, ruído de limpeza de garganta, começando súbita e rapidamente): poema poema poema poema poema poema poema poema poema (Coro: Assassino!)poema poema com com com com com com com com com com com com com petróleo petróleo petróleo petróleo petróleo (Coro: Vítima) petróleo petróleo petróleo igual igual igual igual igual a? a? a? poema com petróleo igual a? Diga, diga? Um edifício de frente pro mar, misturado ao batimento das asas de uma ave migratória que acaba de pousar em, digamos, Ubatuba ou São Conrado (Pausa) igual igual igual igual a? a? a? Diga, diga, idiota, o o o o o o o o o o o o o o som som som som de de de uma uma uma uma ave ave ave ave ave Maria Maria no no no no morro morro morro morro, o som de uma ave Maria, uma ave Maria no morro, no alto, as vozes uníssonas de criancinhas em idade escolar, de banho tomado, um coro dessas criancinhas misturado às mandíbulas, repito, mandíbulas de um pitt-bull feroz que as ataca e destroça, (Coro: Praga) a voz deste coro de inocentes misturada à acidez atmosférica que contamina nossa pele ou à lagarta que devora agora a folha verde igual a? a? igual a quê? (Pausa) (Coro: Morres cruelmente) Única resposta: igual a isto, isto que está aqui, exatamente isto – idiota, igual a isto que você está vendo vendo vendo, isto que você está vendo agora, isto que foi anunciado e cumprido pelo desenrolar dos fatos e da publicidade da história gloriosa da luz imortal deste dia idiota. Em suma (mais lento agora), isto, isto aqui, exatamente isto, assim como está, o sempre-foi e o agora-é desta cena, esta mesma, desabada nela, sobre ela, debaixo dela, virando a pele ao avesso para encontrar-se de novo, iluminada de novo, experimentada de novo, anunciada num ciclo interminável de cópias idênticas, repita, (Coro: Surpreendente!) a paisagem, esta luz cintilante, esta encosta desabada, de novo, novamente de novo, como uma glória da auto-satisfação de um dia interminavelmente bonito que só faz repetir-se, de novo, de novo e de novo. (Coro: Praga!) (Pausa) Tropical. Bronzeado. Escaldante. De novo. (Pausa) E ainda de novo. (Coro: Castigo!) (Pausa) É isso. Falei. E disse. Olá.
(Apito/ Coro – “Caindo sobre vosso chão, a (Ator: olá) praga/ será a ruína deste território” (Ator: de novo!)
(Tom professoral) O inferno é profundo. A bondade é profunda. A alma é profunda. Até o cu é profundo. Mas isto, não – esta cena, não. Dela se poderia dizer que tem a profundidade de uma poça d’água. Por isso retorna, interminavelmente. Dela se poderia dizer que não passa de aparência, um recobrimento, uma cobertura, como marshmellow sobre sorvete. Tem certeza? Tenho. Absoluta? Absoluta certeza. Já leu sobre isso? Sim, já li. Muito? Muito, muito. E o pior: o desiludido tem a profundidade daquilo que o engana. Sério? Sério. Já leu sobre isso, também? Sim, já li. Estudei. E pior ainda: (Coro: Surpreendente!) o anúncio da desilusão coincide com o próprio engano, quero dizer, (aumentando a velocidade) aquilo que chama e aquece seu peito e seu orgulho e massageia suas costas e aplica um blow job nele antes que ele, o agente, entre em casa, escondendo a cabeça, coincide exatamente com aquilo que ele, o agente, queria esquecer, digamos, deixar para trás num cofre para sempre trancado. Estou falando do elemento neutro que recebe o impulso do agente, entendeu? (Pausa) Entendeu? Nem eu. Repetindo: (Coro: Do amor! Do amor!) o blow blow blow blow blow blow blow job job job é raso, uma chupada besta, uma linguada rápida mas toma o lugar exatamente daquilo que deveria preservar-se dele, desse mesmo blow job, dessa mesma chupada, bastando-se em sua própria miragem. Isso acaba, infelizmente, misturando-se àquilo, a tudo o que aqui combinamos como pertencente à palavra aquilo, ao conjunto finito de itens e às regras que ordenam estes itens que incluímos na palavra aquilo, isto é, isto, isto aqui, aqui mesmo, à nossa frente, materialmente encarnado, verbo transformado, em suma: ei-lo. (Coro: Do amor! Do amor!) Aí está. Silêncio. Nenhum aplauso, pigarro, tosse, ruído de celular. Como num velório, murmúrios apenas em respeito ao. Aí está. Aqui está. (Como quem anuncia um fato gravíssimo) (Coro: Ai!) Ele está entre nós!
(Apito/Coro – “Belos cordeiros gêmeos/ quando chegar a hora fixada”)
Entre nós. Sim, agora. Nesse mesmo momento. Entre as nossas besteirinhas, nossas mesquinhas certezas e desejos, nossos projetos de viagem e financiamento de casa própria, sim: ele está aqui, agora. Garanto. (Pausa) Mas, de novo: (Coro: Castigo!) naufrágio – que palavra! Que palavra! Deviam dar este nome a um edifício. Seja que um abismo. Um cálculo total em formação. Ouça bem: em formação. Terá tido lugar. Este cálculo. Entendeu? Observe. Seja. Seja assim, exatamente isso. Veja bem. Ele está entre nós, agora, mas submerso, também ele, dentro da placenta azul. Que coisa. Que coisa. (Pausa) (Coro: Ai! Tristes crimes!) O melhor seria elogiar. Continuar elogiando. Assim: ponha-se de quatro, real real. Real que está entre nós. Agora. Real misturado a nós neste exato momento. Abra bem as dobras, afaste as pelancas cansadas e deixe o verbo entrar. (Coro: Ai!) Abra, luz, a pupila carnal do dia imenso. Assim: real real. De novo. Agora. Aqui chegado. Entre nós. Silêncio. Agora enfia. Vai. Tu és a fonte viscosa de tudo o que é sólido, a água futura da pedra, a chuva futura da nuvem. A cara futura do feto. Tu és belo, meu sinal. Toma de volta, espelho lindo. Minha palavra te responde. De novo. Vai. Vem. E vai e vem. Quero. Te quero. Muito. Hmmm. Vem. De novo. Em suma. Gostei. (Coro: Surpreendente!) Vermelho, és vermelho, profundamente vermelho. Dourado, és profundo, exatamente dourado. Asfalto, profundamente asfalto e corcovado, és extremamente corcovado. (Em tom de conclusão) Cada coisa emoldurada por aquilo que é. (Pausa, falando lentamente) Aquilo que é! Entre nós. Agora! (Tom normal, de novo) Aquilo que é! Este, este banquinho. Subo nele para exprimir a todos os convivas a minha satisfação, maravilhamento mesmo, com o estado que atingimos, que alcançamos afinal, por mérito nosso, e a coincidência deste estado maravilhoso consigo, como dois gêmeos copulando. Real! Real! Pousaste entre nós, e ocupaste teu lugar. (Coro: Assassino!) Quero que todos percebam agora meu maravilhamento com o ponto que alcançamos, meu espanto com o alto índice de retorno e com as taxas de crescimento, sim, e com a identidade de tudo isso consigo próprio. Ponho agora o banquinho sobre a mesa para elogiar (Coro: Assassino!), subo neste banquinho para elogiar, de um ponto ainda mais alto, as conquistas soberanas da comunidade, esta comunidade, que me pertence e à qual pertenço também, que me recebeu, sendo por mim recebida também, e nosso completo acolhimento no mundo lá fora, no vasto conjunto de lata e areia e percevejos e pontas de cigarro apagadas e paredes de veludo e cheiro de defunto. O meu espanto, meu completo assombro. Aí estão. (Coro: Vítima) Os números não mentem. Os anúncios de sabão e de cerveja, as gostosas contratadas pelas agências de publicidade nunca mentem. As estatísticas comprovam. Subo no lustre. Todos podem ver. E os ratos daninhos, os pessimistas, fuinhas, pessoas sem tesão para anunciar aos quatro cantos a boa nova encomiástica e a eternidade do elogio, estes serão massacrados, não por nós, que não massacramos ninguém, não temos ódio de ninguém, apenas amor para dar, mas pelo coro anônimo das ruas, pelo curso inevitável do tempo. Pelos distraídos. Pelos que nunca pensaram nisso, nem em nada. (Pausa) Subo no teto. Grito num megafone. Atenção. Quero. Te quero. Muito. Vem. Agora. Entre nós. Hmmmm. (Coro: Ai!, Ai! Ai!) Gostei. Coincidência! Coisa igual a si mesma! Real-real! Vem! De novo. Vai. Põe. Real. Em mim. Em ti. Aqui. Ali. Em suma! Em suma!
(Apito/coro “Ai! Ai! Faze-nos ver nossos amigos/ sendo levados ao sabor das ondas/ nas praias onde o mar cobre (Ator: em suma! Em suma!) e descobre/ continuamente os corpos já sem vida/ movendo-os de um lado para outro!”)
Em suma, continuo. (Alto, anunciando) Ouçam esta: “O barco estava sendo pilhado pela tempestade com uma fúria destrutiva e sem sentido: velas arrancadas dos estais, lonas e toldos com amarras duplas carregados pelo vento, a ponte varrida, as amuradas torcidas, os anteparos das lâmpadas despedaçados – e os dois botes já se tinham ido.” Ou ainda esta (Coro: Ai! Ai de nós!): “Andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas e outras coisas que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; era coisa medonha de ver, e em todo tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia, e os diversos gêneros de tormentos com que geralmente tratava a todos.
(Apito/coro-“Horríveis, sim, horríveis sofrimentos!/ Dilacerantes, imprevistos males!)
Geralmente, ouviram? Geralmente. Não é sempre, nem é nunca. É geralmente, quase sempre, tendendo ao sim.
Apito/Coro- Ai! Ai de nós! (Ator: Ou esta!) Ah, dores causadoras de outras dores!/ Foi ele quem nos privou do contato/ encantador das coroas de flores/ das taças fundas e do som suave/ das flautas – ah, maldito!- e os prazeres/ do leito em plena noite! Quanto a nós, /ele nos afastou do amor – do amor! / Ainda nos demoramos aqui/ – ai, ai de nós!-, deitados no chão duro.)
Ou esta: “Viu um homem um olho de fogo sobre a nau, que parecia um forno de vidro, com muitas cores, e fedia a enxofre, coisa que fazia medo de ver, e parecia que se fundia o mundo”. Um forno de vidro, no meio do mar! (Pausa) Nessa hora, inevitavelmente, ocorre a todos a grande idéia: a terra. Uma idéia unânime, simultânea, infiltrando-se pela madeira do convés, como um hino silencioso: queremos terra. (Coro: Castigo!) Por Deus, como queremos. Queremos agora. Mas vai ser pior ainda. A terra não é bem terra, granulada e fofa, onde o trigo cresce; é uma pedra. Não é a mãe que sustentava o Homem enquanto ele caía, mas uma pedra, uma pedra sólida e que parece exatamente isso, feita disso, por fora e por dentro, robusta na sua definição, comungada ao nome próprio e ao silogismo que a enumera. Pedra. Pedra. Uma carrasca invejando a morte, invejando a própria vida que levamos, procurando, enfim, soluções finais, num dueto com o coveiro. (Coro: chão duro!) Em suma. (Alto) Alô. Alô. Alô. (Voz normal) Esquece. É isso. É assim. Parece que nunca vai acontecer com você mas acontece. Acontece todo dia, a toda gente, acontece exatamente assim, sem mais nem menos. Ninguém nota, mas acontece. (Pausa) É isso.
(Apito/coro – “Ah! É longa demais a existência/ que deixa velhos como nós (Ator: Ou esta!) ouvirem/ esta notícia atroz, surpreendente”)
Vamos voltar ao ponto onde estávamos, de que me desviei contemplando estes escombros; vamos voltar ao nosso pequeno assunto. Isso, exatamente. Este, este assunto. O assunto que me coube, que a mim colheu, entre tantos, para fazer-se ouvir. Subo agora no banquinho, novamente no banquinho, este, este banquinho, de onde admiro, para alardear o sucesso desta coincidência consigo, e ainda comigo, do que me é externo, e úmido, e carregado de promessa como uma árvore pesada de frutos. Passando à prática, deixando para trás essas palavras, usando o banquinho para sentar-me e não para alardear minhas palavras, costuro minuciosamente em minha, ai, (Coro: Ai!) pele, o peso da matéria alheia – anéis, jornais, cadáveres, móveis antigos –, costuro ao corpo, meu corpo, a este corpo que agora apresento a vocês, este algodão doce e fictício feito de texturas, nomes e datas. Ei-lo, meu corpo, mijão, cornudo, costuro o que encontro, o que se oferece à mão. Meu corpo. (Coro: Surpreendente) (Como quem anuncia um fato muito grave) Ele está entre nós. (Coro: Assassino!) Agora. (Coro: Vítima) (Pausa) Sim, está entre nós. Tanto que (pausa)…. dói. Sim. Ai. (Coro: Ai!) Seu nome: nau. Corpo cheio de cracas e surdez, e naftalina, e o cristalino opaco onde a luz demora. Espinha fincada em minha vida, cravada como estaca em minhas costas. Corpo de piche, onde tudo gruda, lama, porra, cuspe. Coro: Ah, maldito Saliva dos besouros, que dá a mim meu alimento. Visão de frente, estendida em ré, múltipla, de trás para diante, conduzida aos pontapés. (Coro: Morres cruelmente!) Nau de um corpo real, real-real, aberta desde o cu até a fronte ao vento universal. Vento, cola nessa nau toda a escumalha, a espuma-coisa dissipada em música, em samba feito de juncos, em notícias abstratas de jornal. Juncos feitos de shoppings, de ruas movimentadas, mercadorias morrendo em seus contâiners. (Coro: Ai, tristes crimes!) Rua, ouve o que ainda é rua, o sopro-fora até o pulmão de dentro, este pulmão, que é parte também da nau do mesmo. Os anos que me tomaram, dezenas de anos, não te levaram para o fundo, corpo-nau, mas perdi meus mastros e a mezena, e agora fiquei preso, exausto, dentro de ti, sozinho. (Pausa) Nau naufrágio. Preso dentro. (Pausa) Alô (Pausa) (Coro: Ninguém.) Há alguém aí? Alô (Pausa) (Coro: Ninguém.) Alguém? (Pausa) Eu. Preso aqui. Deve ser isso. Dentro de um naufrágio. Será que alguém me ouve? Tem alguém aí? (Pausa) Eu. Eu mesmo. Alguém? Deve ser isso.
(Apito/coro- “Saudando teu regresso gemeremos/ para exprimir somente desencanto/ com a voz entrecortada de soluços”) (Ator: Ele está entre nós!)
Dentro – esse é o problema. O estoque no porão desequilibrando o casco. O empilhamento do combustível. Aquilo que a carcaça guarda, e que a leva para o fundo, levando o fundo junto com ela. O dentro, a voz do interior da carcaça, respeitável público. Estão ouvindo? E o sopro que ia dentro dela, procurando o céu em bolhas. A voz da cinza. O porão inundado. As maçãs boiando. Ruídos mecânicos. (Coro: Horríveis sofrimentos!) Uma canção, de novo? Não, um forno queimando, coração de petróleo e carvão, já consumido, mas ainda, e misteriosamente, brilhando e movendo a nau. A nau carcaça, sem leme. (Alto, anunciando) (Coro: Ai, tristes crimes!) Ouça esta: “Os colchões das camas flutuavam na crista das ondas, os cobertores, abertos, ondulavam, enquanto as arcas, cheias de água e com uma forte inclinação, mergulhavam pesadamente, como o casco de um navio sem mastros, antes de afundarem”. Aos poucos, por contaminação, desde o centro daquele forno incandescente, semi-inundado mas incandescente, toda a barcaça foi-se transformando em vidro e a água salgada que seu casco singrava ficava também transparente, como glóbulos de areia derretida. Não vejo nada, disse então o marujo. Não vejo nada, repetiu. Foda-se, (Coro: dor) disse o capitão. Queria enxergar alguma coisa, senhor, disse o marujo. Foda-se, repetiu o capitão, e sua voz exultava, como um morcego que, para acionar seu radar, lançasse ao nevoeiro os gritos mais agudos. Foda-se, (Coro: Ah, maldito) disse de novo o capitão, marujo de merda, se não tem raiva suficiente deste barco para desejar vê-lo destroçado, se não gargalhar abraçado ao mastro antes que afunde completamente, se ficar aí como um cagão prudente, por Deus, por Deus que te jogo pela murada. E o marujo, de olho arregalado, viu que seu capitão falava sério.
(Apito/coro – “Por que é que este terror assedia/ sem tréguas o meu coração pressago? / Nós, homens, tomamos conhecimento/ de muitas coisas porque são visíveis,/ mas o futuro e o nosso destino,/ (Ator: É isso) nunca existiu um único adivinho/ capaz de conhecê-los com certeza.”)
Horizonte unânime. Cadáver pelo braço, apartado do segredo que carrega. Maníaco encanecido. Sim. Isso tudo, ao mesmo tempo, como um conjunto organizado de sinais, ecoa aqui. Sombra pueril. Fantasma de um gesto, como se. Exatamente. Isso tudo. Como se. Suponha. Aqui. Bem aqui. De novo. Como se estivéssemos descobrindo, nós, os pobres pilotos desta carcaça, um novo continente. Aos poucos, nos convencemos uns aos outros disto. Exatamente. Apoiando-nos mutuamente, mu-tu-a-men-te, fingindo que acreditávamos e atribuindo aos demais a autoridade que nos faltava. E agora, veja, quanta água acumulada, quanto sentido violado, quanto silêncio profanado. Os próprios animais se afastam, alimárias de sobreaviso. Sim, os pássaros nos observam, mas não predam; mesmo as pedras (Coro: Surpreendente!) cheias da substância verde que destilam, essas pedras que digerem o próprio estômago de pedra, cheias de uma bílis rochosa preenchendo a forma que têm quando pisamos nelas, suspeitam de nós, sim, suspeitam, posso ouvir como falam baixo quando passamos. (Pausa) Claramente nos evitam. (Pausa) Seria melhor, por isso, antecipar-nos e isolar-nos, fugindo delas, do real-real, (Coro: ah, maldito) por iniciativa própria. (Pausa) Melhor assim. Seria melhor assim. Guardar-nos para isso. (Pausa) Para o enorme despovoamento, (Coro: Ninguém) o sopro frio feito verbo isolando os homens.
(Apito/coro – “Ninguém, adulto (Ator: Cagão prudente!) ou jovem/ conseguiu elevar-se acima da grande rede da escravidão, da ruína que tudo vence”)
Ver! Ver! Este é o anseio do marinheiro, bem como do resto da humanidade cega. Por trás da fuligem. Lá. Ver o elemento que te envolve, como uma mão invisível, delicada, durante um exame de próstata, tocando a base da espinha do cidadão por dentro, ver o elemento natural, o ar, a neblina, a fuligem, como uma mulher que te abraça quando você ainda dorme, e vai descendo pelo teu, digamos, pelo teu aquilo, primeiro faz cócega depois é bom, bom mesmo, bom pra cacete, ai Jesus, e quando, bem, uma aflição meio próxima da vontade de fazer xixi e ela põe aquilo, o teu aquilo inteiro na boca dela, ver por trás dessa mulher, em suma, por trás do fundo do naufrágio dessa mulher que chupa, (Coro: Surpreendente!) em suma, ou do dedo que toca a própria próstata atrás do rim ou não sei que cacete de órgão é aquele, senhores, o cidadão, o resto da humanidade, o marinheiro, todos querem ver! ver! ver!, porque ver é o anseio da humanidade cega. (Coro: Chão duro!) Cega, mas com os órgãos quentes, as extremidades afiadíssimas pulsantes, disponíveis, oferecendo-se e depois querendo alívio, exaustão, sono ou o jorro mesmo, a própria matéria de um jorro. (Coro: Ah, maldito) Ver o dedo que te cutuca, ver o próprio elemento onde a mulher se esconde, a forma montanhosa de seus peitos, como um vassalo de alguma coisa pressentida muito mais intensa do que aquilo que afinal se revela, isto é, uma promessa, nunca cumprida, ver o que motiva essa promessa que te enganou a vida toda, é isso o que quer a humanidade cega. (Coro: Ah! Ah! Ah! Dores causadoras de outras dores!) A caveira, por exemplo, no fundo de um naufrágio, nunca abolirá os olhos que perdeu, mas ainda assim a própria estrutura óssea, cava, vacante e branca parece olhar, olhar, olhar é o que quer a humanidade cega, a própria ossada da cara do cidadão parece olhar e rir, numa comédia infindável dentro de um caixote a sete palmos do chão.
(Coro/apito- “Tentamos entoar um canto lúgubre/ em queixa triste sobre a nossa dor” (Repete “dor”) (Ator: Ver! Ver!))
Quantas vezes vou começar de novo? A nadar de novo, a ter esperanças de novo? Sempre assim. (Coro: Surpreendente!)(Pausa) Não me canso disso. Quanto mais um nabo imenso penetra as ancas da multidão anônima, mais palavras de louvor e agradecimento. Toda essa gente que largou as suas casas para entrar num porão de madeira, uma caixa de fósforo minúscula boiando nas toneladas de sal e de água até um novo continente, toda essa gente, até onde eu saiba, quanto mais se fodeu mais agradeceu e de tanto agradecer sabe o que acabou acontecendo? Eles venceram! Acabaram vencendo aquele a quem agradeciam humildemente, (Coro: Ninguém!) –trocar quanto mais ralavam a bunda metro a metro nos corais da costa do chifre da África por séculos inteiros, quanto mais água salgada do oceano Atlântico, Índico ou do Cabo Horn iam bebendo mais diziam obrigado, obrigado, Senhor, Senhor, obrigado por este sal, por este urubu bicando meus olhos, obrigado por inundar meu pulmões como um porão furado, e sabe o que aconteceu? Acabaram transformando o oceano imenso numa poça pálida, rasa, de tanto louvarem o nome de quem os ferrava minuciosamente todo dia acabaram derrubando o pobre coitado e transformando o grande mar numa banheira de água morna e hoje ninguém agradece nem lamenta mais nada, só morrem de tédio e aborrecimento, gozando o conforto perfeito dos seus pés quentinhos, agradecendo sempre por isso, que não conseguem parar de agradecer. (Pausa) Assim é. (Ator: Diz!) (Pausa) Assim é.tirar (Pausa) Acho que sim.
(Apito/Coro – “Ela foi destruidora de navios, (Ator: ver!, ver!) destruidora de homens, destruidora de cidades/ evadindo-se das cortinas preciosas da câmara nupcial para sulcar o (Ator: ver! ver!) mar”)
Sobre um moribundo (Coro: Morres cruelmente!), é correto perguntar: que é que lhe resta, que é pode ainda que valha a pena, agora que pode tão pouco? E se seu cu piscasse, acendendo desde os bagos todo o seu interior, como um bode renascido irradiando calor pelas entranhas, quando seu papel agora seria morrer pacífica e dignamente, é isso o que se espera de um moribundo, (Coro: ah, maldito!) que morra solenemente, sem muita expressividade, como um conviva discreto, mas de repente, num último assomo, com palavras e tudo, cuspindo o tubo em sua glótea, cheio de energia e de gestos espalhafatosos, gritasse “o que eu quis antes não tem importância, não tem a menor a menor importância”, apalpando os seios de quem o visitava na UTI, arrancando os botões da blusa da enfermeira num estertor enquanto murmura “agora, agora, eu quero agora”, com uma força imprevista, um desejo de vida, mais vida, ali bem na última fronteira, de modo que ninguém pudesse sequer falar mal, afinal o cara renascia, constrangimento geral na família, ele nunca se comportou assim etc. Seja. Do fundo de um. Que palavra. Em torno ao vórtice, sem fingir nem fugir. E sua pequena razão viril, nem tão pequena agora, mergulhada na cavidade bucal da enfermeira, na saliva pegajosa da grande centopéia. E desabando em seguida, depois do estertor, sobre a própria enfermeira que abraçou com força sobre-humana, morto agora, (Coro: do amor! Do amor!) perfeitamente morto, que lembrança deixaria? Como seria julgado? Pelo sim? Pelo não? E a quem importaria, afinal, essa sentença, uma vez que ele, o isso dele, o aquilo dele, coincidente ou não com seu formato e seu pronome, estaria inerte como um tronco despedaçado no chão – e a enfermeira (isso é o pior de tudo) talvez tivesse até gostado daquele estranho assédio?
(Apito/Coro – “O (Ator: ele está entre nós) tempo envelheceu desde que a recolha das amarras/ levantou no (Ator: Pausa! Pausa!) ar a areia. Ai de mim! Que essas palavras/ já tocam na morte.”)
Se eu pudesse escolher, escolheria entregá-los aos peixes (Coro: Ai!). Ou faria exatamente o contrário, entregando-os à praia, às aves, ao céu aberto. Se eu pudesse, ainda uma vez, contrariar o que acabei de dizer, eu os entregaria ao fogo (Coro: Ai!), à fumaça, limpando as ossadas com calor. Em todo caso, jamais poria terra em cima deles, coitados. Isso eu não faria nunca. (Coro: Ninguém!) Com uma cruz em cima e uma ave Maria? Nunca. (Falando bem alto) Isso, nunca. Enterrar essa gente, nunca. A sete palmos de terra? Ninguém merece. Nunca! (Pausa) Pausa! (Falando alto de novo, após uma pausa) Pausa! Nunca!
Aproximar.
(Apito/Coro – “Já para um novo castigo/ o destino afia a justiça com outras pedras de amolar. Quem é o (Ator: Naufrágio!) assassino? Quem é a vítima? Diz!”)
(Voz normal) Pausa! De novo. Nunca!
(Apito/Coro – “Jamais as profecias comunicam/(Ator:Pausa!) mensagens agradáveis aos mortais;/ os palavrosos dons oraculares/ (Ator: Nunca!) sugerem desventura e causam medo (Ator: Cagão prudente!)”)
Ainda uma vez. (Em tom solene) Pausa. Devo dizer uma coisa. (Pausa) Nunca! (Pausa) Um afogado tem o cu lavado. (Coro: ah, maldito) (Pausa) Pausa. Bem lavado. Pausa. (Coro: Surpreendente!) Inteiramente limpo. (Pausa.) Nunca. Limpíssimo. Falando sério. Ninguém tem o cu melhor lavado do que ele. (Coro: Ninguém!) (Pausa, falando alto) Um afogado. (Pausa, falando alto) A água salgada fica batendo ali por muito tempo. Entrando e saindo. Pausa! Lavadíssimo. Pausa!
(Apito/Coro – “Nós, as temíveis, temos o (Ator: Naufrágio! Que palavra!) poder/ de bem cumprir nossa missão, humildes/ e desprezadas, distantes dos deuses/ num pântano sem sol, (Coro: Ai de nós!) intolerável/ para quem já morreu e para os vivos”)(Repete vivos (Ator: num dueto com o coveiro))
(Alto) Pausa!
(Apito/Coro – “Ai! Ai de nós! (Ator: Ele está entre nós) Nosso mortal veneno/ vai ser a arma de cruel vingança!/ As gotas, destiladas uma a uma/ por nossos corações, custarão caro/ a este povo e a esta cidade”)
(Alto) Pausa!
(Apito/Coro – “Tentamos entoar um canto lúgubre/ em queixa triste sobre a nossa dor”( Ator: ver!, ver!) (Repete “dor”(Ator: Eles venceram!))
Ainda uma vez. Pausa! Agora. De novo. Nunca. (Pausa) (Coro: Ah, dores causadoras de outras dores) Pausa! Pausa!
(A voz do Ator recita junto com Apito e Coro – “Tristezas, canta tristezas/ e possa o bem triunfar”)
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Material dos barcos: sabão (2 toneladas e meia)
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