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Pedra e cal: o amor freirÁtico na sÁtira luso-brasileira do sÉculo XVII

A poesia satírica produzida na Bahia no final do século XVII, que desde meados do  XVIII vem sendo atribuída a Gregório de Matos e Guerra, que viveu em Salvador entre 1682 e 1695, põe em cena estereótipos acerca de  estamentos, grupos e indivíduos do Império. Apropriando-se de enunciados literais de discursos formais e informais contemporâneos, ela isola as normas sociais da função institucional de regulação prática que têm nos discursos, transformando-as ficcionalmente em  metáforas de princípios éticos e teológico-políticos da “política católica” portuguesa. As representações efetuadas dramatizam as opiniões ou as interpretações institucionais e informais sobre os assuntos do lugar tidas por verdadeiras e mais ou menos previstas na recepção. Assim, quando transforma temas de discursos formais –  como os do Senado da Câmara, da administração de governadores, de ordens-régias, de pragmáticas de tratamento e trajes,  do Santo Ofício da Inquisição, do Tribunal da Relação, etc.-  e da murmuração informal sobre eventos, negócios, grupos e indivíduos locais – corrupção de governadores,  escândalos conventuais, contrabando de farinhas, falta de moeda, aumento de impostos, confusões hierárquicas, rebelião de  escravos , preços monopolistas dos gêneros, crise da lavoura açucareira etc.-  a sátira põe indiretamente em cena a referência de cada um deles, citando  seu sentido  como interpretação prescritiva da significação das deformações cômicas. Figurando a  compatibilidade entre  as interpretações feitas pelos personagens satíricos  em ato  e os atos de interpretação  das recepções empíricas diferenciadas, que conferem valor e sentido à representação , a sátira não imita supostos “fatos” da empiria, mas encontra a realidade de seu tempo como dramatização metafórica de verossimilhanças e decoros partilhados pelos sujeitos de  enunciação e destinatários dos poemas.
Acumula duas funções simultâneas e complementares, como as que Robert Weimann propôs para as images/stories do teatro de Shakespeare :  é  mimética ou representativa, figurando assuntos do referencial do lugar segundo preceitos técnicos do gênero cômico reciclados da tradição retórico-poética grega e latina; e judicativa ou avaliativa, especificando nos estilos que constituem  os temas e os destinatários as posições interpretativas que permitem receber e avaliar adequadamente as deformidades efetuadas. Com outras palavras, a representação encena os temas e, simultaneamente, os critérios técnicos construtivos da perspectiva pela qual devem ser avaliados. A dupla funcionalidade constitui dois tipos de destinatários textuais, discretos e vulgares, figurados como tipos intelectuais conhecedores dos preceitos aplicados (discretos) e ignorantes dos mesmos (vulgares). Assim, as agudezas ridículas ou maledicentes dos estilos  especificam, na maior ou menor congruência semântica das sinédoques e metáforas que compõem retratos dos tipos satirizados, a superioridade do juízo do destinatário discreto, capaz de operar e refazer as distinções dialético-retóricas aplicadas aos conceitos dos poemas. Sinônimo do sujeito de enunciação, o destinatário discreto recebe a representação duplamente, como tipo apto a entender não só  significação engenhosa dos temas, mas também a perícia técnica ou o artifício aplicado à sua formulação. Quanto ao destinatário vulgar, a sátira é composta contra ele, acusando-o de carência de virtudes, para a qual prescreve o sentido legal dos discursos institucionais como correção, e  para ele, divertindo-o com vulgaridades sem regras aparentes do juízo.
As agudezas satíricas têm, assim, função política de conferir e negar distinção social,  funcionando como dispositivo hierarquizador apropriado e deformado  nas inúmeras variantes que compõem a movência oral própria de um gênero popular. No caso, a representação tem quatro articulações complementares: 1a. o uso, numa situação polêmica particular, condicionada material e institucionalmente, de signos figurando uma referência discursiva local; 2a. a produção de um efeito metafórico de presença da referência substituída pelos signos;  3a. a forma metafórica ou ficcional dessa presença ordenada pelos preceitos retórico-poéticos do gênero cômico;   4a. a posição hierárquica encenada na forma como posição social ou representação  testemunhada pelo destinatário constituído na forma como representação.
A poesia assim inventada se inclui numa jurisprudência de “bons usos” da linguagem fundamentados nas autoridades retóricas e poéticas do costume anônimo. Ela se  inclui naturalmente, segundo seus agentes, na concepção corporativa da monarquia absolutista fundada na teologia cristã de um telos ou Causa final, Deus, que hierarquiza e orienta providencialmente a  experiência  da natureza e da história segundo a analogia pela qual todos os seres são seus efeitos e signos. Fundada nesse telos, a hierarquia é doutrinada por seus principais teóricos jesuítas, Suárez e Botero, como unidade de integração do corpo político do Estado. Nessa integração, a liberdade dos indivíduos é definida como subordinação  a papéis estamentais constituídos e limitados pelos privilégios. É nuclear, nessa definição,  o conceito de “bem comum”, doutrinado como a harmonia que nasce não só da imposição das leis, mas também do controle que os membros particulares devem impor-se a si mesmos, reprimindo os apetites,  para obterem e manterem a amizade e a concórdia do todo do corpo político como unidade pública de paz.  “Política” significa, no caso, uma arte de obter, manter e ampliar o poder, que opera em vários dispositivos, ordenando eticamente os corpos subordinados por meio do conceito mercantilista de “interesse”, oposto às teses luteranas, maquiavélicas e hobbesianas: cada membro do corpo político do Estado deve contentar-se com o que é e faz, para garantir a paz do todo e os interesses particulares  das partes. O auto-controle da vontade e da liberdade é realizado publicamente como representação, ou seja, como adequação decorosa da representação individual às formas institucionais impostas pelo aparato. Nas várias circunstâncias hierárquicas da vida de relação, o  auto-controle se reproduz como representação das virtudes católicas anti-heréticas que mantêm, em teoria, a coesão pacífica do corpo político  do Império.   O alvo principal da vituperação satírica são ações que, por  ameaçar e destruir tal coesão pressuposta, são constituídas como contra naturam, vício moral, heresia religiosa,  erro político.
A sátira seiscentista desconhece, obviamente,  a distinção iluminista-liberal  de público/ privado, que não existe ou não é nítida. A não-distinção de público/privado especifica os critérios corporativos que então definem  o trinômio autor/obra/público, regido por uma teleologia diferente da teleologia nacionalista das histórias literárias produzidas a partir do século XIX. Os poetas seiscentistas têm a posse, no sentido do Ticiano fecit da pintura do tempo, mas não a propriedade das obras: inexiste o mercado como livre-concorrência das mercadorias “originalidade”, “direitos autorais” e “plágio”, não havendo controle dos autores sobre a publicação manuscrita, a cópia, a pirataria e a circulação dos  poemas que inventam; assim, também não existe o “artista”, como tipo social definido pela autonomia crítico-estética, expressão subjetivada, propriedade autoral e consciência infeliz. Produzida em circunstância cerimoniais e polêmicas, a poesia não se autonomiza dos usos utilitários como objeto de contemplação desinteressada, integrando-se imediatamente aos decoros das ocasiões solenes e conflitivas da hierarquia. Fundamentada na mímesis aristotélica, não tem autonomia de “objeto estético”, pois não existe a divisão do trabalho intelectual do mundo burguês e as especializações dos regimes discursivos. Principalmente, nunca se autonomiza do princípio metafísico, a luz natural da Graça inata,  que então subentende neo-escolasticamente a concepção de linguagem, as operações do juízo dos autores e o sentido providencialista conferido à experiência da história. E o público não é, como a partir do Iluminismo, a “opinião pública” dotada de representatividade democrática e iniciativa crítica específicas do interesse contraditório de uma particularidade ideológica. O público figurado na sátira é a totalidade mística do corpo político do Império metaforizada nos poemas como “bem comum” ou a esfera da manifestação pública do “corpo místico” do Estado, em que a liberdade dos indivíduos e grupos se define como subordinação à cabeça real e à hierarquia dos privilégios. O “público” é constituído e figurado pela representação como representação de posições sociais subordinadas que, ao  testemunhar a mensagem que lhes é endereçada, ratificam a hierarquia como membros subordinados, ou seja, também  como representação subordinada ao sistema dos decoros.
Incluído nessa totalidade mística como membro subordinado, cada destinatário produzido na representação deve re-conhecer sua posição subordinada. A sátira reproduz metaforicamente aquilo que cada membro do corpo místico do Império já é, prescrevendo, simultaneamente, que ele deve ser, ou seja, persuadindo-o a permanecer como o que já é. O espaço público assim figurado como totalidade mística de “bem comum” é como um teatro corporativista em que se encena a subordinação hierárquica na qual se revela o próprio público para o destinatário particular como totalidade jurídico-mística de destinatários integrados em ordens e estamentos subordinados. Justamente por isso, impõe-se à sátira e mais artes desse tempo a normatividade retórica e ética, que prescreve a imitação regrada de modelos, ou seja, a repetição das autoridades adequadas à representação verossímil e decorosa dos temas e tipos.
A indistinção de público/privado determina que  parecer algo, como “filho de algo” ou “fidalgo”, seja tão fundamental quanto  ser  algo, uma vez que  os signos da posição social sempre são dados em espetáculo como evidência da mesma. Logo, o saber e o poder têm uma dimensão exterior e espetacular, na qual são aplicados e transformados segundo as conveniências e os conflitos que continuamente desestabilizam a hierarquia. Os dispositivos simbólicos da retórica aristotélica e latina que ordenam as artes são imediatamente práticos,  figurando a unidade do “bem comum” do corpo político do Império e o auto-controle de suas partes como interiorização individual e coletiva da violência legal.
Nessa figuração, a  personasatírica  e mais personagens são inventados segundo os dois subgêneros aristotélicos do cômico, ridículo e maledicência. Os subgêneros aparecem  referidos em um poema que estiliza e parodia boatos contemporâneos sobre Pedralves da Neiva, plebeu com foros falsos de fidalguia que chegou à Bahia por volta de 1690 e foi preso em cumprimento a uma ordem-régia:
“Sejais (sic), Pedralves, bem vindo, / e crede-me, meu amigo, / que tudo, o que aqui vos digo,/ ora é zombando, ora rindo .
Como se deve saber, a matéria do cômico é a feiúra humana, generalíssima. Aristotelicamente, divide-se em feiúra do corpo – subdividida em feiúra não-dolorosa (ou não-nociva)  e feiúra dolorosa ( nociva)-  e feiúra do ânimo, subdidividida  em feiúra derivada da estupidez e feiúra derivada da maldade . A feiúra do corpo dolorosa e a feiúra do ânimo derivada da maldade são deformidades fortes que causam horror, objeto da maledicência da sátira; as outras duas, a feiúra do corpo não-dolorosa e a feiúra do ânimo derivada da estupidez,  deformidades fracas que causam riso, são objeto do ridículo da comédia. Em todos os casos, a feiúra física é metáfora ou alegoria da feiúra moral. Na sátira seiscentista, é comum, no entanto, que matérias ridículas sejam tratadas maledicentemente e vice-versa. Quando o poema aplica a  prescrição “rindo” (ridículo), constrói a persona satírica como um tipo civil que extrai das fraquezas alheias a ocasião para um divertimento irônico e levemente desdenhoso, que imita o modo horaciano da satura. Quando aplica o preceito “zombando”( maledicência), inventa   a personacomo  um tipo vulgar que agride com  sarcasmos e obscenidades. A matriz desse subgênero é a sátira de Juvenal, retomada nas cantigas de escárnio e maldizer da Idade Média portuguesa e nos séculos XVI, XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil.
Para compor o feio, a sátira  opera com três espécies de deformações correspondentes às misturas e deformidades da falta de unidade dos vícios. A mais rotineira consiste em produzir um misto estilístico, que figura o tipo satirizado com pedaços, metonímias ou sinédoques recortadas de vários campos semânticos contemporâneos: vassoura para o cabelo, tromba para a boca,  agulha para o corpo, garras para as mãos, pés de pato para os pés, à moda dos caprichos de Bosch.  Outra  espécie de deformação amplifica uma parte do corpo. É rotineiro o nariz fálico, imitado de  Quevedo,  como o do governador Antônio Luís da Câmara Cotinho, que chega à praça duas horas antes que o dono. A terceira deformação é mais rara e consiste em autonomizar  partes  do corpo,  dotando-as  de vida própria que faz com que no mesmo indivíduo coexistam duas vontades ou duas naturezas contraditórias. Caso do nariz de  cócoras na cara a praticar uma ação fisiológica indecente; ou   fugindo para um túmulo distante da boca satirizada.
Sempre operadas como combinatória semântica de animado e inanimado, as deformações cômicas transferem as qualidades de um ser  para outro, efetuando mistos sem unidade. Qualidades de animais transferidas para seres humanos formam seres monstruosos, como “padre caracol”, “lombriga racional”, “papagaio humano”, “frade mula”, “Frei sanguessuga”etc. A transferência de inanimado para inanimado forma representações como “a cara é um fardo de arroz… que é ração de um elefante (…) a boca desempenada é a ponte de Coimbra”.  Transferências de  animado para inanimado produzem  personificação: “Olhos cagões”; “Chato o nariz de cocras sempre posto”; “Os olhos dois ermitães/ que numa lôbrega estância/ sempre fazem penitência/ nas grutas da vossa cara”. A transferência de  inanimado para animado compõe  significações equívocas, como as de poemas em que a narração dos cuidados com uma lancha que  faz água alude a  atos obscenos.
Os subgêneros ridículo e maledicência também compõem duas possibilidades de ação da persona satírica. Geralmente, esta aparece modelada  como o  vir bonus dicendi, o varão prudente e perito em falar da oratória romana, tipo virtuoso e indignado contra a corrupção do “bem comum” da Cidade conforme a afetação retórica de indignação, como no verso 79 da Satura 1, de Juvenal: “si natura negat, facit indignatio versum” ( “se a natureza falha, a indignação faz o verso”). A persona do poema de Juvenal afirma que a ordem racional do universo está corrompida e que  sua indignação  causa  o verso. Constituído como tipo  irracional que também ignora o valor da disciplina poética, o personagem  afirma que, por viver em um mundo caótico,  fala caoticamente, como se expressasse sua ira de maneira informal. Mas é contrafacção:  artifício que  afirma não haver artifício no que é dito artificiosamente. As paixões estão na natureza, porque são afetos da alma; poeticamente, contudo, não são informais, pois são afetos naturais representados retoricamente .
Estudando a poesia satírica elizabetana, Kernan demonstrou que a persona dos poemas apresenta inconsistências e contradições construídas retoricamente como cinco  pares de tensões:
1o.- a persona afirma ser dada à simplicidade e à conversação humilde, criticando a afetação de vulgares, mas faz um uso extremamente complexo de técnicas retóricas para dizê-lo;
2o.- a persona afirma que  é verdadeiro o que diz, mas distorce  ações e  descrições- por exemplo, quando amplifica as ações e as descrições de tipos viciosos, compondo-os como mistos  monstruosos;
3o.- a persona vitupera o vício, mas demonstra inclinação pelo escândalo;
4o.- a persona afirma que sua crítica tem finalidade moral, mas demonstra prazer em rebaixar as vítimas, geralmente pobres diabos indefesos;
5o.- a persona afirma a própria racionalidade, mas adota posturas irracionais, como ira, vingança, luxúria, agressão,  obscenidade etc.
Kernan demonstra que toda persona satírica tem algo de Jekyll e Hyde, como se tivesse uma personalidade pública e outra privada. Se aparecesse apenas com a personalidade pública, prudente  e virtuosa, o esquematismo de seu caráter plano pareceria  inverossímil, pois  pouco complexo para lidar com o mundo caótico que acusa. Pela prescrição, é porque vive virtuosamente para a crítica dos vícios que  a persona acaba adquirindo características que tornam suspeita sua pose de amante da virtude. Tais características são compositivas como os pares de tensões referidos e ordenam a sátira de Juvenal, a sátira medieval, renascentista e seiscentista,  indiciando a longa duração da preceptiva. As poéticas seiscentistas que reciclam Aristóteles, como o “Tratado dos Ridículos”, de Il Cannocchiale Aristotelico, de Emanuele Tesauro, as  prevêem  como técnicas  para construir a ficção da persona como persona dramática, conforme a codificação da satura romana que, antes de ser um gênero poético,  foi um gênero teatral .
Na interpretação antiga das inconsistências que constróem a persona, há duas vertentes recicladas até o século XVIII: a peripatética e a estóica. Segundo a versão peripatética, o satírico é um  tipo nobre e honesto que se indigna contra os vícios e os viciosos que corrompem sua pátria. Logo, sua ira e agressão obscenas estão previstas. Na versão estóica, como a de Sêneca, no De Ira, a própria indignação é in-digna, porque  irracional; logo, a persona satírica é um tipo vulgar, um louco vingativo. Só neste sentido, aliás, é que se aplica à poesia satírica, ficção, o “ressentimento” psicológico que se costuma atribuir ao homem Gregório de Matos e Guerra  desde o século XIX. Um  “ressentimento” a ser definido não como expressão psicológica, mas como  aplicação técnica de afetos de um caráter ou éthos .
Os lugares comuns aplicados para construir o caráter ora virtuoso, ora  vicioso da persona satírica também se aplicam à composição das personagens satirizadas. Como  na sátira de Juvenal, a sátira seiscentista aplica lugares  de pessoa (loci a persona) do gênero epidítico, próprios para vituperar. Os lugares funcionam como  argumentos genéricos preenchidos pelos temas estilizados e parodiados dos discursos institucionais e informais da Bahia do século XVII. Por exemplo, o lugar genérico e indefinido, “Se o tirano governa bem”,  é preenchido pela questão definida,  formulada como metaforização de  informações dos discursos locais, “Se o governador Souza de Meneses, o Braço de Prata, governa bem a Bahia em 1683”. Considerando o uso dos lugares, a leitura dessa poesia deve prever duas coisas: de um lado, o conhecimento dos lugares comuns, sem os quais ela aparece como “original” e “criativa”; de outro, o conhecimento da formulação particular que preenche os lugares comuns, sem a qual  aparece como “mecânica” e “plagiária”. Tem-se de considerar que o autor do poema, não importa quem tenha sido, tornou o lugar comum genérico e indefinido em algo particular e  definido, quando o integrou a uma situação de uso específico, como é o caso dos discursos sobre amores de convento que circularam na  Bahia no final do século XVII.

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Em  18 de março de 1690, o rei D. Pedro II  enviou uma ordem-régia para Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, então  vice-rei do Estado do Brasil:
“Governador do estado do Brasil Amigo.
Eu El Rei vos envio muitos saudares. Ao Arcebispo dessa cidade mando recomendar se reformem as grades dos conventos das freiras pondo-se em distância de seis palmos de grossura e tapando-se em redor dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares e ordinários têm mandado  executar nos conventos das Freiras da sua obediência neste Reino, recomendando-lhe também o grande cuidado que deve pôr para que se evitem todas as amizades ilícitas escandalosas com as Religiosas desse Convento e vos recomendo muito que eviteis semelhantes amizades pelos meios que vos for possível, não só por aqueles que mandam as leis mas todos os que a prudência vos ditar, para que as Religiosas vivam sem inquietação alguma espiritual causada por pessoas seculares ou eclesiásticas e quando o Arcebispo (o que eu não espero do seu grande zelo e virtude) falte em proceder contra as pessoas da sua jurisdição que nesse convento tiverem amizade ou trato ilícito me o fareis presente e quando não lhe dê remédio conveniente me dareis conta, mandando primeiro tomar alguma informação quando não conste das devassas que se tirarem judicialmente(…) e para o Arcebispo fazer a reforma que lhe recomendo lhe dareis toda a ajuda e favor até que com efeito se consiga. Escrita em Lisboa, 18 de março de 1690. Rei” .
Em 19 de junho de 1691, o Governador respondeu,  prestando contas  dos “remédios convenientes” que aplicara ao Convento de Santa Clara do Desterro. Sua carta reitera o que  então propunham outras autoridades de Salvador, como o arcebispo e prelados regulares, evidenciando a posição oficial quanto ao assunto das visitas masculinas ao convento e as “amizades ilícitas” das freiras:
“Por carta de Vossa Majestade de 18 de março do ano passado me manda Vossa Majestade saber se as grades dos locutórios das Freiras estão em distância de seis palmos craveiros, tapando-se as rodas dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares ordenaram; e se tem mandado executar nos Conventos das Freiras das Freguesias e juntamente não consinta haver amizades ilícitas no Convento das Freiras desta Cidade, e que além das leis que nesta matéria estão postas, o evitem pelo caminho que mais medita a prudência, ajudando ao Arcebispo nesta matéria em tudo o que estiver no meu poder. As grades estão como Vossa Majestade manda. As rodas do locutório fechadas. As Freiras vivem, como convém, de que tenho particular cuidado; assim pelo que  toca ao serviço de DEUS, como ao mandato de Vossa Majestade. E enquanto eu governar segure-se Vossa Majestade que nesta parte pode estar sem cuidado; porque todo o meu desvelo, é não faltar um ponto ao que Vossa Majestade me manda” .
Em 1677, quando foi fundado em Salvador o Convento de Santa Clara do Desterro, abriram-se 50 vagas para freiras de véu preto e 25 para as de véu branco. As 50 de véu preto destinavam-se a “mulheres de representação”, filhas dos “melhores” ou “homens bons” do local, tendo sido imediatamente preenchidas.  Nenhuma das 25 de véu branco foi solicitada,  porém, pois  eram destinadas para jovens que não poderiam fazer os votos, devendo ocupar-se de trabalhos manuais, como a limpeza do convento e a cozinha, definidos como próprios de pessoas de condição inferior. Em 12 de agosto de 1688, o  Senado da Câmara de Salvador encaminhou uma carta ao rei, solicitando-lhe que transformasse as 25 vagas de véu branco não-ocupadas em vagas de véu preto. A carta fornece  razões para o pedido, alegando principalmente que muitas mulheres nobres e autorizadas de Salvador tornavam-se religiosas por falta de dotes para se casarem:
“Vossa Majestade(…) prometeu esta concessão com número de Cinquenta Religiosas de Véu Preto, e vinte e cinco de Véu Branco, que também são Religiosas, mas como não têm voto, até hoje não houve mulher alguma que intentasse algum desses lugares. E porque o número das Cinquenta de Véu Preto está completo, e ficaram que as pessoas nobres, filhas de Cidadãos que têm servido, e servem a Vossa Majestade sem recurso para entrarem, Motivo que nos obriga a pedir a Vossa Majestade como em remuneração dos Serviços (…) nos permita Vossa Majestade conceder faculdade para que os Vinte e Cinco lugares que se deram para as mulheres de Véu Branco se comutem em que sejam todas de Véu Preto porque desta Sorte não se acrescenta o Número da Concessão, nem se falta ao remédio de muitas mulheres nobres e autorizadas, que por não terem dotes competentes para casarem, se acomodam ao de Religiosas” .