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EDGAR ALLAN POE, ANO DUZENTOS

O sobrenome Allan originou-se da família que o adotou ao ficar órfão da mãe Elizabeth Arnold Poe, uma atriz de teatro casada com o também ator David Poe, que a essa altura já havia tomado um rumo para sempre ignorado, se é que já não houvesse também falecido. Assim pode-se dizer que Edgar Poe nasceu por acaso na aristocrática cidade de Boston, Massachusetts, no dia 19 de janeiro de 1809, pois seus pais ali se encontravam para cumprir sob contrato uma temporada de representações num dos teatros locais. Os parentes do lado materno, ingleses, também tiveram alguma ligação com o teatro (seus avós foram atores em Londres), e David era americano com ascendência irlandesa. Os formadores da família Poe nos Estados Unidos haviam chegado, provavelmente, três gerações antes do nascimento de Edgar.

Como muito bem observou Julio Cortázar, tradutor de Poe na Argentina, o sangue inglês e americano “chegou-lhe duplamente enfraquecido e impuro pela má saúde de seus pais, ambos tuberculosos”. Ainda há dúvidas se David já havia abandonado a mulher com dois filhos e grávida do terceiro (Rosalie), mas o fato é que ele não mais está presente no círculo familiar quando a menina nasceu em Norfolk, na Virgínia. Assim como ocorreu no nascimento de Edgar, três semanas depois Elizabeth já estava de volta aos palcos porque precisava desesperadamente de dinheiro. Antes que Edgar completasse o terceiro ano de vida, a mãe não resistiu os efeitos da miséria e da doença, ficando as crianças aos cuidados de algumas damas caridosas de Richmond.

Cortázar diz que a Virgínia, na época, “representava muito mais o espírito sulista do que uma olhada casual no mapa dos Estados Unidos levaria a supor”, pois ali despontariam as tendências “que logo fermentariam no abolicionismo e o regime escravista e feudal do sul”. Mesmo tendo nascido em Boston, Edgar cresceu como sulista e jamais abdicou dessas características. Pouco depois foi adotado pelo comerciante John Allan, um emigrante escocês fixado em Richmond, onde era sócio duma empresa dedicada ao comércio de tabaco e outras atividades curiosas, como a representação de revistas britânicas. Foi no escritório da firma, conta Cortázar, que o pequeno Edgar teve seus primeiros contatos “com um mundo erudito e pedante, ‘gótico’ e novelesco, crítico e difamatório, no qual os restos da engenhosidade do século XVIII se misturavam com o romantismo em plena eclosão, no qual as sombras de Johnson, Addison e Pope abriam espaço lentamente para a fulgurante presença de Byron, a poesia de Wordsworth e os romances e contos de terror”. Com base na biografia escrita por Hervey Allen (Israfel), publicada no Brasil nos anos 40 do século passado pela antiga Editora Globo de Porto Alegre, Cortázar assinala que “boa parte da tão debatida cultura de Poe saiu daquelas leituras precoces”.

Edgar se tornou um membro da família Allan graças ao grande amor que por ele sentia Frances (mulher de John), segundo Cortázar, “primeira influência feminina benéfica na vida de Poe”. Quanto ao comerciante, mesmo concordando com os insistentes pedidos da mulher que nutria verdadeiro amor pelo menino, sempre guardou em segredo a enorme reserva quanto aos necessários trâmites para a adoção legal, que jamais se consumou. Por esse motivo é que Cortázar lembra que John Allan foi para Edgar um quase involuntário protetor: “Era um homem seco e duro ao qual os anos, os reveses e, por fim, uma grande fortuna tornaram cada vez mais tirânico. Para sua desgraça, e de Edgar, as naturezas de ambos divergiam da maneira mais absoluta. Quinze anos mais tarde iriam se chocar encarniçadamente, e os dois cometeriam erros tão grosseiros quanto imperdoáveis”.

Nas inúmeras vezes em que deve ter perambulado pelo escritório do pai, sempre cheio de capitães de veleiros que vinham a negócios ou pelo simples prazer da conversa e dos tragos amigáveis, é Cortázar quem intui, “o pequeno Edgar deve ter vislumbrado, ouvinte ansioso, as primeiras images/stories de Arthur Gordon Pym, do redemoinho do Maelstrom e todo aquele ar marinho que circula em sua literatura e que ele soube recolher em velames que ainda hoje impulsionam seus barcos de fantasmas”. Em 1815, o filho ainda na infância acompanhou os pais numa viagem de navio à Inglaterra e Escócia, onde Allan tencionava entabular novos negócios e visitar familiares. O garoto viveu algum tempo em Irvine (Escócia) e depois em Londres, cenários mais tarde descritos no enigmático conto William Wilson que narra a experiência escolar vivida entre 1816 e 1820.

A família retornou a Richmond em 1820 e ao completar 15 anos Edgar já fazia as primeiras incursões na futura carreira literária, garatujando versos que fazia chegar pelas mãos da irmã Rosalie, adotada por outra família de posses, a formosas jovenzinhas de um colégio renomado da cidade. A essa altura, Cortázar diz que Poe “sentia enorme influência de Byron, modelo de todo poeta jovem nessa década” não apenas no estilo de escrever, mas igualmente nas facetas mais variadas. Assim é que “diante da estupefação de colegas e professores, nadou seis milhas contra a corrente do rio James e se transformou no efêmero herói de um dia”. Já se manifestavam, portanto, os sinais de precocidade, talento inegável, orgulho, excitabilidade e alguma violência nascida duma fraqueza fundamental que o fazia tratar com intolerância os inadvertidos competidores. É dessa fase o primeiro amor impossível da vida de Edgar, a jovem e bela Helen Stanard, mãe de um colega de bancos escolares. “Helen, tua beleza é para mim como as remotas barcas nicenas que, docemente, sobre um mar perfumado, traziam o cansado viajante erradio de volta às suas praias nativas”, escreveria a respeito da amada platônica num dos seus poemas mais misteriosos e admiráveis, conforme anotou Cortázar. “Exteriormente, as diferenças de idade e estado social condicionaram o diálogo, fizeram dessa relação um colóquio amistoso que continuou até o dia que Edgar não pôde mais visitar a casa dos Stanard”. Helen adoeceu gravemente e se afastou dos amigos, morrendo em 1824, aos 31 anos. “Há uma ‘história imortal’ que mostra Edgar visitando à noite o túmulo de ‘Helen’. Há testemunhos, igualmente imortais, embora menos românticos que provam o desconcerto, a dor contida, a angústia sem expansão possível. Edgar ficava em silêncio na escola, fugia das brincadeiras, das escapulidas; todos os colegas notaram aquele comportamento sem desconfiar de sua causa e, muitos anos mais tarde, quando o mundo soube quem ele era, lembraram disso em memórias e cartas”.

O refúgio no aconchegante lar dos Allan, apesar do terno amor da mãe adotiva, foi pouco para o adolescente precoce, que respondia à severidade crescente de John com demonstrações de rebeldia juvenil. A diferença entre ambos aumentou quando Edgar soube que o comerciante tinha outros filhos naturais, levando-o a suspeitar que jamais seria adotado legalmente. A situação também atormentava Frances, com quem Edgar partilhava o sofrimento, não minorado sequer pela polpuda herança recebida por John de um tio ou pela linda casa nova para a qual se mudaram. “John Allan começou a saber o que é ter um poeta – ou alguém que quer chegar a sê-lo – em casa. Sua intenção era fazer de Edgar um advogado ou um bom comerciante, como ele. Não há necessidade de discorrer mais sobre a razão fundamental de todos os choques futuros”, lembra Cortázar.

O namorico com Sarah Elmira Royster foi interrompido pela matrícula de Edgar na Universidade da Virgínia, em Charlottesville, para onde partiu no gelado fevereiro de 1826. No caminho entregou ao cocheiro uma carta para Elmira, provavelmente a última mensagem que a jovem recebeu do admirador. Uma pérfida combinação entre John e Royster interceptou todas as cartas enviadas por Edgar a Elmira e essa acabou se convencendo que fora esquecida pelo namorado, casando-se com outro pretendente, de sobrenome Shelton e que segundo Cortázar “correspondia muito melhor que Edgar à idéia que Allan e os Royster do mundo sempre têm a respeito dos esposos adequados”. O ingresso do jovem Poe na vida acadêmica logo foi contagiado pelo clima de libertinagem e dissipação que encontrou na convivência com seus colegas, bem ao contrário da esperança acalentada por Thomas Jefferson, gênio fundador da citada universidade. “Os estudantes, filhos de famílias ricas, jogavam a dinheiro, bebiam, brigavam e se batiam em duelo, endividando-se com a maior extravagância, certos de que ao final de cada período escolar seus pais pagariam tudo”, e com Edgar não foi diferente, embora John tenha negado desde o primeiro momento remeter quantia maior de dinheiro que a suficiente para custear corriqueiras despesas pessoais. Nesse sentido, o arguto comerciante se escudava num agudo senso prático e na proverbial avareza que se acentuava com o passar dos anos.

Acabrunhado pela falta de notícias de Elmira, sem saber que para isso concorria a trama concebida pelos pais de ambos, Edgar se deixou atrair pelas doidices da maioria dos colegas, prefaciando um cenário sombrio para a curta existência: “Pela primeira vez ouvimos o álcool ser mencionado na vida de Edgar. O clima na universidade era tão favorável quanto o de uma taverna: Poe jogava, perdia quase invariavelmente, e bebia. Isto leva a pensar em Puchkin, o Poe russo. Mas o álcool não fazia mal a Puchkin, ao passo que desde o princípio causava em Poe um efeito misterioso e terrível, para o qual não há explicação satisfatória a não ser sua hipersensibilidade, suas taras hereditárias, aquele ‘feixe de nervos’ à flor da pele. Bastava-lhe beber um copo de rum (e o bebia de um só gole, sem saborear) para se intoxicar”. É ainda Cortázar quem afirma que “o segundo gole o submergia na bebedeira mais absoluta, e o despertar era lento, torturante. Poe se arrastava durante dias e dias até recuperar a normalidade”.

Embora agindo como um doidivanas, Edgar desperta a atenção de todos pelo excelente desempenho em línguas clássicas (que falava e traduzia), história antiga e natural, matemática, astronomia, além de leituras copiosas de romancistas e poetas. Na outra face da moeda, desenhava com assanhada voluptuosidade o seu lado libertino, até que o frio John Allan recusou pagar pesada dívida contraída nas noitadas de jogatina. “Edgar teve que abandonar a universidade. Na época, uma dívida podia levar uma pessoa à cadeia ou, pelo menos, impedir-lhe o reingresso no estado em que a contraíra. Edgar quebrou os móveis do seu quarto para acender um fogo de despedida (era dezembro de 1826) e abandonou a casa de estudos. Seus colegas de Richmond o acompanharam; para eles era o começo das férias, mas Poe sabia que não voltaria mais”.

Frances o recebeu com o desvelo de sempre, mas as coisas com John pareciam não ter conserto e o enfrentamento se tornou insuportável porque Edgar não aceitava seguir outra carreira senão a das letras, para a qual se sentia irremediavelmente vocacionado. A ruptura não demorou e o jovem decidiu tomar o rumo de Boston, onde nascera, em busca de oportunidades. A extrema dureza de John foi compensada pela boa mãe que deu algum dinheiro ao rapaz que se pôs a caminho para tentar a sorte. Os biógrafos não conseguiram descobrir o que fez Edgar entre os anos de 1827 a 1829, embora o próprio tivesse recheado o período com fantasiosas viagens à Rússia, França e Inglaterra. “Hoje sabemos que não saiu dos Estados Unidos”, registram os biógrafos, embora tivessem anotado um feito definido por Cortázar como prova da determinação de viver de acordo com o seu destino: “Mal chegou a Boston, a amizade incidental com um jovem impressor lhe permitiu publicar Tamerlão e outros poemas, seu primeiro livro (maio de 1827)”, para dizer o mínimo, um rotundo fracasso de vendas. A miséria apertou o cerco em torno do jovem literato que, sem outra solução, alistou-se como soldado raso no exército norte-americano. Servindo no forte Moultrie, na Carolina, o escritor em processo ao observar a pitoresca paisagem local recolheu o material que tempos depois serviria de cenário perfeito para o conto O escaravelho de ouro.

Os cinco anos que pretendia passar no exército foram abreviados para dois, mas o pedido de baixa requeria um pistolão à altura. O remédio foi apelar para John Allan, mas a resposta para o pedido foi o silêncio. Sem desistir do intento, Poe inventou um estratagema que talvez convencesse o pai a interceder por ele: decidira ingressar na academia militar de West Point, em verdade uma carreira promissora imediatamente chancelada pelo pai. Mas nesse interregno Edgar foi abalado pela da morte de Frances, sua adorada mãe que sequer conseguiu ver no caixão, pois a mensagem chegaria tarde demais no quartel para o qual havia sido transferido. Enquanto aguardava a viabilização de sua ida para West Point, com o pouco dinheiro recebido de John, Edgar procurou fazer contatos mais próximos com editores e diretores de revistas, visando publicar o longo poema Al Aaraaf (1829), sem sucesso. Frustrado, o poeta viajou para Baltimore em busca da verdadeira família. Sem recursos financeiros, encontrou abrigo na casa de sua tia Maria Clemm, onde moravam também a avó paterna de Edgar, o irmão mais velho que morreria aos 24 anos, vítima de tuberculose em último estágio, além dos filhos de Maria, Henry e Virgínia. Esta “viria a constituir o complexo e jamais resolvido enigma da vida do poeta”, escreveu Cortázar. A duras penas consegue publicar num só volume o poema Al Aaraaf e os anteriores de Tamerlão, seu livro de estréia ainda ignorado pelo público.

A chegada na academia ocorreu em 1830, onde imediatamente Edgar percebeu que a vida seria mais penosa e desagradável que a do soldado raso na Carolina, sobretudo em função do rigor dos exercícios físicos exigidos dos cadetes, um tormento para um organismo em processo inicial de debilitação. O velho Allan prosseguia fiel ao intento de tratar o jovem a pão e água, negando até os míseros centavos para as despesas comezinhas. Seis meses depois Edgar já arquitetava uma trama que reverteria em sua expulsão, insistindo em violações do rígido código disciplinar da escola militar, tais como o não comparecimento às aulas e serviços religiosos. Antes de sair, contudo, foi capaz de um feito digno de menção: com a ajuda de um coronel, conseguiu que os colegas de West Point lhe doassem o dinheiro necessário para custear a edição de mais um volume de poesias: Israfel, A Helen e Lenore. No dia 19 de fevereiro de 1831, um mês depois de completar 22 anos de idade embarcou para Nova York, mas a fome e o frio o fizeram regressar à casa de Maria Clemm em Baltimore, onde pouco depois morreria seu irmão mais velho. Cortázar lembra que o pequeno aposento que dividia com o irmão restou inteiro para Edgar e, a atenção que antes dava à poesia volta-se para o conto, “gênero mais vendável” e capaz de responder efetivamente à principal carência do jovem literato. “Poe logo percebeu que seu talento poético, devidamente encaminhado, podia criar no conto uma atmosfera especialíssima, subjugante, que ele dever ter sido o primeiro a vislumbrar com irreprimível emoção. Tudo consistia em não confundir conto com poema em prosa e, sobretudo, não confundir conto com fragmento de romance. A conclusão do autor de O jogo da amarelinha é perfeita: “Edgar não era homem de incorrer nestes erros grosseiros, e seu primeiro relato publicado, Metzengerstein nasceu como Palas, armado de cima abaixo, com todas as qualidades que alguns anos mais tarde chegariam à perfeição”.

Jamais se chegará a compreender a forma pela qual amadureceu a vocação de um escritor acossado pela fome e a miséria quase absoluta, não fosse a extraordinária bravura de Maria Clemm que, por volta dos anos 1830 e 1831 andava com uma cesta pela vizinhança, na qual as amigas depositavam legumes, ovos e frutas. O escasso dinheiro que Edgar conseguia ganhar sumia rapidamente, mesmo que o rapaz fosse austero o suficiente para entregá-lo todo à proficiência da amada tia. Por esta época, enredado pelos laços que o acompanhariam até o final da vida, as paixões impossíveis, Edgar namora uma vizinha dos Clemm, a bela Mary Devereaux, responsável pela mais perfeita descrição de Poe, mesmo decorridos tantos anos: “Seu cabelo era fino como a seda; os olhos, grandes e luminosos, cinzentos e penetrantes. Mantinha o rosto completamente barbeado. Seu nariz era longo e reto, e os traços muito finos; a boca, expressivamente bela. Ele era pálido, exangue, de pele lindamente olivácea. Tinha um olhar triste e melancólico. Era extremamente magro… mas tinha uma fina postura, um porte ereto e militar, e caminhava rapidamente. O mais encantador nele, porém, eram seus modos. Era elegante. Quando fitava alguém parecia capaz de ler seus pensamentos. Possuía uma voz agradável e musical, mas não profunda. Usava sempre uma jaqueta preta abotoada até o pescoço… Não seguia a moda, tinha seu estilo próprio”. Como tantos outros, o romance com Mary durou pouco.

Em julho de 1832, Edgar ficou sabendo que John Allan, gravemente enfermo, fizera um testamento. Resolveu seguir ao encontro do pai, mas as coisas ficaram ainda piores. Já havia uma segunda sra. Allan e essa o recebeu como a um intruso. Com o pai doente a discussão foi ainda mais lamentável e a visita resultou em rancoroso fracasso. Um ano depois o rompimento final de Edgar com John Allan se consumou, servindo como consolo o recebimento do primeiro premio (50 dólares) num concurso de contos promovido pelo Baltimore Saturday Visiter, com Manuscrito encontrado numa garrafa. No ano seguinte John Allan expirou sem deixar ao filho adotivo um miserável tostão de sua imensa fortuna.

O poeta Paul Valéry escreveu em 1924 que Edgar Allan Poe, “este grande homem”, estaria hoje completamente esquecido não houvesse Baudelaire se incumbido de introduzi-lo na literatura européia. “Não nos furtemos de observar aqui que a glória universal de Edgar Poe não é ofuscada nem contestada a não ser em seu país de origem e na Inglaterra”, acrescentou. Vale lembrar que as palavras de Valéry foram escritas 75 anos depois da morte de Poe (1849), significando que mais de sete décadas já haviam transcorrido e a obra imortal do poeta bostoniano ainda continuava execrada nos meios literários mais avançados.

Assim, coube a Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta francês que encontrou a mesma vereda calcada por inumeráveis malditos da literatura mundial, a glória pessoal de ter descoberto a obra de Poe e, no dizer esplendoroso de Valéry construído uma identidade tão íntima com o autor de O corvo, a ponto de trocarem valores entre si: “Cada um dá ao outro o que tem e recebe do outro o que não tem”. Poe revela a Baudelaire todo um sistema de novos e profundos pensamentos: “Ele o esclarece, o fecunda, determina suas opiniões quanto a uma diversidade de temas: filosofia da composição, teoria do artificial, compreensão e condenação do moderno, importância do excepcional e de uma certa estranheza, atitude aristocrática, misticismo, o gosto pela elegância e precisão, a própria política… De tudo isto Baudelaire se impregnou; tudo ele absorveu, interiorizou”.

A contrapartida, diz ainda Valéry, foi sublime, pois “em troca destes bens, Baudelaire empresta ao pensamento de Poe uma dimensão infinita”, tornando possível uma constatação ao mesmo tempo grandiosa e eterna: “Ele o apresenta ao futuro”. Valéry expressou também uma convicção inigualável sobre a influência de Poe na literatura vindoura: “Quer tratemos de Julio Verne e de seus seguidores, de Gaboriau e de seus pares, ou, em gêneros bem mais rebuscados, evoquemos as produções de Villiers de l’Isle-Adam ou as de Dostoievski, é evidente que A narrativa de Arthur Gordon Pym, Os crimes da rua Morgue, Ligéia e O coração denunciador lhes serviram de modelos fartamente ilustrados, profundamente estudados, jamais ultrapassados”.

Citando diretamente a poesia de Baudelaire, Valéry assinalou que não poucos poemas de As flores do mal “extraem dos poemas de Poe seu sentimento e sua substância. Alguns contêm versos que são exatas transposições”. A comunhão espiritual e literária entre Edgar Poe e Charles Baudelaire decerto começou antes, mas tem sua primeira revelação com a publicação em La liberté de penser, do dia 15 de julho de 1848, do conto Revelação mesmeriana, primeiro texto poeano a ser traduzido para o idioma francês pelo autor de Pequenos poemas em prosa. Quatro anos mais tarde, em 1852, na edição correspondente aos meses de março/abril, a Revue de Paris daria a conhecer ao mundo literário o ensaio Edgar Allan Poe, sua vida e suas obras, mediante o qual Baudelaire cumpria o feito memorável de apresentar ao futuro, na feliz acepção de Paul Valéry, a controvertida e, sobretudo, injustiçada personalidade do gênio transformador da arte de pensar. Baudelaire se refere a Edgar com um respeito fraternal: “Cabe-me escrever a história de um destes ilustres infelizes, por demais rico em poesia e em paixão, que veio, após tantos outros, fazer neste mundo mesquinho o rude aprendizado do gênio entre almas inferiores”. A constatação imediata de Baudelaire diz respeito aos malefícios que os Estados Unidos causaram a Poe, servindo em apropriada metáfora como “vasta prisão que ele percorria com a agitação febril de um ser feito para respirar em um mundo mais aromal”, na verdade transmutado na armadilha em que “sua vida espiritual de poeta ou mesmo de bêbado não era mais que um esforço perpétuo em escapar à influência desta atmosfera incompatível”.

Depois da leitura cuidadosa da biografia de Poe escrita, a pedido deste, pelo reverendo Rufus Griswold, editor da prestigiada Graham’s Magazine, Baudelaire enquadrou-o como um vampiro-pedagogo que “difamou extensamente seu amigo num enorme artigo, crasso e odioso, bem à testa da edição póstuma de suas obras”. E perguntou indignado: Será que não existe na América um regulamento que impeça os cães de entrarem nos cemitérios? Ao citar a morte do poeta, Baudelaire diz que a mesma foi um suicídio longamente preparado, levando-o a valorizar a opinião de um desconhecido que escreveu ter a América literária perdido “sua inteligência mais ilustre”. Todavia, o reconhecimento mais profundo foi reservado “ao coração trespassado por sete espadas” de Maria Clemm: “Para mim, esta é uma grande mulher da mais alta nobreza. Atingida por um golpe irreparável, só pensa na reputação daquele que era tudo para si, e não bastava, para contentá-la, que se dissesse que ele era um gênio; era preciso que se soubesse que era um homem de respeito e de afeto. É evidente que esta mãe – uma tocha e uma lareira iluminadas por um raio do mais alto do céu – foi dada como um exemplo à nossa raça tão indiferente à devoção, ao heroísmo e a tudo que esteja além do dever”.

É bem conhecido o fato do casamento de Edgar com a ainda adolescente Virgínia, filha de Maria Clemm e, portanto, sua prima irmã. O primeiro casamento realizado em Baltimore, conforme o biógrafo Hervey Allen ficou em segredo e teve como única testemunha a própria mãe da noiva, tendo em vista a irrestrita oposição de parentes próximos em face da tenra idade de Virgínia. Jamais se conhecerá a medida exata do amor dedicado por Maria Clemm a Eddie e à frágil Virgínia e, tampouco, que sentimentos recônditos levaram-na a consentir com o casamento. A segunda cerimônia aconteceu no juizado de paz da cidade de Richmond, a 16 de maio de 1836, tendo a jovem declarado a idade de 21 anos. “Na realidade, tinha ela menos de 14 anos de idade naquele tempo e a aparência de uma criança”, relatou Hervey. Numa dedução correta Cortázar acrescentou que Virgínia jamais teve perfeito desenvolvimento mental, sempre se comportando como a criança que foi até o fim. Para ele, “a hipótese mais sensata é a de que Poe casou-se com Virgínia para se proteger dos relacionamentos com outras mulheres e mantê-los no terreno da amizade”, gerando obviamente uma cascata de interpretações ambíguas: “A única coisa verossímil é supor uma inibição sexual de caráter psíquico, que obrigava Poe a sublimar suas paixões num plano de devaneio e idealização, mas que ao mesmo tempo, o atormentava a ponto de exigir-lhe ao menos uma fachada de normalidade, fornecida neste caso por seu casamento com Virgínia”.

Dificuldades financeiras ilimitadas marcavam a vida de Edgar, agora casado legalmente com a prima Virgínia, mas como se sempre fez, ele não se intimidou e continuou escrevendo contos e resenhas literárias, oferecendo-as aos editores de inúmeros magazines. Foi o gesto solidário de uma espécie de protetor que resultou na apresentação de Edgar, em março de 1835, ao proprietário do Southern Literary Messenger, editada em Richmond, na qual estreou o conto Berenice. Meses depois Edgar foi convidado a integrar-se à redação da revista, naquele que foi o primeiro emprego decente de sua vida. Todavia, nesse mesmo período se acentuam os problemas com o álcool e o ópio (em forma de láudano). Aos 26 anos, Edgar estava prematuramente envelhecido e sua vestimenta, habitualmente de cor preta, dava-lhe a aparência byroniana que cultivaria com esmero até a morte. O trabalho no Messenger rendia a Edgar a quantia de dez dólares por semana, o reencontro com amigos do tempo em que viveu na cidade, mais a ausência de Virgínia e Maria Clemm, que continuavam residindo em Baltimore, contribuíram para a volta ao ambiente boêmio que tanta fascinação exercia sobre ele. A mulher e a tia acabaram se mudando para Richmond diante das crises nervosas agravadas pelas bebedeiras do escritor, que assim mesmo seguia produzindo editoriais, artigos de fundo, resenhas e contos, com os quais conquistaria a fama. A revista, que conseguirá multiplicar oito vezes a tiragem desde que os escritos de Poe começaram a ser publicados, agora oferecia aos leitores na forma de folhetim a Narrativa de Arthur Gordon Pym.

Não demorou, porém, e a família Poe estava novamente na estrada em direção a Nova York, onde a depressão econômica da presidência Jackson tornava quase impossível encontrar um lugar na imprensa. Novos contos foram escritos e Gordon Pym ganhou a forma de livro, embora tenha repetido a saga dos livros anteriores mofando nos depósitos das livrarias. Em 1838, a família aparece instalada em humilde pensão da Filadélfia, na época, o maior centro editorial e literário da América. Aparecem Ligéia, o texto preferido pelo próprio Edgar, e um ano depois A queda da casa de Usher, com uma profusão jamais ultrapassada em outras produções de elementos biográficos que sublinham – testemunhou Cortázar – “o lado anormalmente sádico e necrofílico do gênio de Poe, assim como a presença do ópio”. Já com a idéia de editar sua própria revista, Edgar assumiu a função de consultor literário do Burton’s Magazine, imediatamente colocada à frente das demais.

Em dezembro de 1839 sai mais um volume assinado por Edgar Allan Poe – Contos do grotesco e do arabesco – que anos depois seria traduzido por Charles Baudelaire sob o título Histórias extraordinárias, pelo qual é conhecido até hoje. Com o aparecimento do Graham’s Magazine, em 1840, Poe foi convidado para o posto de diretor literário. O trabalho nessa revista foi retumbante, e o resultado logo apareceu na circulação que saltou de cinco mil para quarenta mil exemplares mensais. O salário pago ao diretor, porém, era mesquinho. Enquanto isso brotam da pena inspirada de Poe outras jóias como Eureka, Os crimes da rua Morgue, e O mistério de Marie Roget, sendo que nos dois últimos textos mencionados, Poe apresentou ao mundo seu alter ego, C. Auguste Dupin, enfim, a fórmula primordial que serviria de roteiro para uma infinidade de autores de contos policiais ou de terror.

No final de janeiro de 1842, Virgínia sofreu uma hemoptise brutal e entrou numa fase de crescente agonia que prenunciava o fim. Poe começou a beber feito um desesperado e perdeu o emprego na Graham’s. Em compensação passa a rabiscar os primeiros versos de O corvo, a obra-prima carinhosamente burilada que só viria a ser concluída alguns anos mais tarde, enquanto o autor pulava de um emprego para outro. No inverno de 1845, o Broadway Journal, de Nova York, publica o poema e o nome de Edgar Allan Poe é divulgado “para além das fronteiras de sua pátria e o transforma no homem do momento”. Segundo Cortázar “a misteriosa magia do poema, seu apelo obscuro, o nome do autor, satanicamente aureolado por uma ‘legenda negra’ confabularam-se para fazer de O corvo a própria imagem do romantismo na América do Norte e uma das mais memoráveis instâncias da poesia em todos os tempos”. A apoteose literária de Poe, a abertura dos salões elegantes para suas conferências, enfim, a glória construída sob o império da pobreza, é também o ponto inicial da tragédia.

Virgínia morreu no final de fevereiro de 1847 e Poe acompanhou o cortejo fúnebre envolto na velha capa de cadete trazida de West Point, nos últimos meses a única coberta do leito da moribunda. Dilacerado pela perda da amada, Edgar tenciona reavivar antigos casos de amor, mas tudo isso parece decorrer de uma insanidade crescente e fatal. Em setembro de 1849, afinal, o poeta marca casamento com Elmira Royster, sua noiva distante e, agora, uma respeitável viúva. Antes Edgar teria de viajar mais uma vez a Nova York a fim de ultimar os preparativos para a edição completa de suas obras, com o reverendo Rufus Griswold, o mesmo que viria a ser seu maior carrasco. Depois de pronunciar a última conferência sobre o princípio da composição poética, em Richmond, na madrugada do dia 29, Poe foi levado pelos amigos para o embarque com destino a Baltimore. O círculo vicioso se fecharia a bordo do navio, pois decerto Poe bebeu durante a travessia, embora estivesse sóbrio ao desembarcar na cidade segundo o testemunho de amigos. O que ocorreu nos cinco dias seguintes jamais se conseguiu saber. Havia eleições em Baltimore e muitos conjecturam que em troca de doses fartas e  gratuitas Poe se deixou usar como “eleitor de cabresto” por um dos partidos, sendo arrastado entre um copo e outro pelos vários distritos eleitorais, até ser levado em coma a um hospital.

As derradeiras palavras ditas pelo extraordinário poeta foram: “Que Deus ajude minha pobre alma”. Raiava o alvorecer do dia 7 de outubro de 1849 e o homem que deixava a vida para ingressar na lenda, mal completara 40 anos.

 

* Ivan Schmidt é jornalista e escritor; autor da biografia Edgar Allan Poe, Nunca estive realmente louco.

 

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Vide

Manuscrito encontrado numa garrafa e o Corvo

 


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