S.A., Glaura, Rondó XXV
Nascido embora em Vila Rica, Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814) logo a deixa pelo Rio de Janeiro e depois por Coimbra, onde cursa Leis; de volta ao Rio, dá aulas de Retórica e produz o melhor de sua vida literária: os versos bucólicos em que Alcindo declara seu amor a Glaura. Publicados pela primeira vez na Oficina Nunesiana de Lisboa, em 1799, 117 poemas, reunidos sob o nome da pastora, desfiam implacavelmente os seus dons. O conjunto inteiro, que guarda forte unidade entre si, vaza-se em duas formas poéticas principais. Primeiro, o rondó, de origem francesa medieval, presente no cancioneiro galego-português, mas depois esquecido por algum tempo, até reaparecer com grande interesse na obra de Voiture, já no século XVII. Depois, o madrigal, forma popular italiana de que se apropria Petrarca, entre outros poetas eruditos; restrito inicialmente a temas amorosos, ampliou-se o seu uso, no XVII, para assuntos religiosos e morais; no século XVIII, já sob forte influxo francês, o madrigal torna-se galante e epigramático para então praticamente desaparecer sob os efeitos de oralidade buscados pelo Romantismo. Ambas as formas estão previstas nos gêneros menores recomendados no segundo canto da Arte Poética, de Boileau, cada uma delas com a beleza própria de sua “pobreza”: o rondó fazendo valer sua “ingenuidade”, e o madrigal demonstrando-se “nobre” e “simples” em sua suavidade amorosa.
Silva Alvarenga adapta-os, em Glaura, com estruturas bem definidas. O rondó compõe-se de um estribilho e dois quartetos, geralmente em redondilhas maiores, divididas estas em tempos de três e dois sons, mas podendo também ocorrer redondilhas menores. O seu esquema de rimas privilegia, no estribilho, as internas ou encadeadas (a ab bc cd), e nos demais versos as emparelhadas e alternadas, rematando sempre com o som final do estribilho (por exemplo, e f f ed):
De teu canto a graça pura,
E a ternura não consigo;
Pois comigo a doce Lira
Mal respira os sons de Amor.
Quando as cordas lhe mudaste,
Ó feliz Anacreonte,
Da Meônia viva fonte
Esgotaste o claro humor.
O ruído lisonjeiro
Dessas águas não escuto,
Onde geme dado a Pluto
O grosseiro habitador.
(…)
O madrigal tem mais simples a disposição das rimas (em geral, a b b a a c c d d), compondo-se de uma estrofe única, de extensão variável entre 8 e 11 versos heróicos, com amplo uso das cesuras na sexta sílaba:
Suave fonte pura,
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti os seus olhos a ternura;
Ela já te procura;
Ah! como vens formosa e sem desgosto!
Não lhe pintes o rosto:
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade
Meu terno amor, minha infeliz saudade.
O mesmo rigor formal, patente nos esquemas sonoros e rítmicos, encontra-se na economia de suas tópicas. Com efeito, Glaura não tem mais assunto que a própria engenharia de construção do cenário campestre, que ecoa o apelo do pastor à ninfa muito amada. Em termos gerais, tal lugar retórico constrói-se como um bosque afortunado ou aprazível, cuja delícia reclama a da ninfa para ser plena, ou, ao contrário, como um bosque penetrado de má fortuna, em que a presença da musa amantíssima igualmente tarda. Nessa variante mais sombria, parte importante da tradição crítica brasileira tem reconhecido traços realistas do poeta, em primeiro lugar, por interesse histórico de estabelecê-los como sinais e indícios, isto é, como signos de formação do que posteriormente se fixa como sistema particular de uma literatura nacional. Concorre para o mesmo fim a notícia de que Silva Alvarenga esteve preso por dois anos sob acusação de envolvimento em conspiração antimonárquica, ao lado de outros companheiros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, da qual era sócio fundador. Tal chave de leitura, marcadamente biográfica e sociológica, aplicada também com freqüência aos versos posteriores à prisão de todos os chamados “poetas da Inconfidência”, torna-se especialmente atraente por encontrar uma brecha de interpretação poética fora da convenção inequivocamente classicizante e universalista que adotam. Em segundo lugar, de modo não excludente, tal reconhecimento biográfico dos versos naturalmente agrada à crítica romântica, muito duradoura e nem de longe exclusivamente nacional. É a tal matriz que Borges se refere, por exemplo, ao comentar o entendimento ainda muito insuficiente de Quevedo, no início dos anos 50:
“Para la gloria, decia yo, no es indispensable que un escritor se muestre sentimental, pero es indispensable que su obra, o alguna circunstancia biográfica, estimulen el patetismo.“
Está aqui, se não me engano, o maior infortúnio na leitura da poesia árcade, onde quer que ela tenha existido: com a ruptura da confiança clássica e aristocrática nas correspondências proporcionadas entre excelência essencial e manifestação convencional pública, e a adoção da crença romântica e burguesa na profundidade e interioridade incognoscíveis da alma, tivemos sempre imensa dificuldade em compreender o interesse poético da convenção, julgada então artifício frio e aparência supérflua. Assim, paradoxalmente, apenas tendemos a louvar nos árcades o que julgamos encontrar obliquamente de supraconvencional, seja pela alusão subjetivo-biográfica, cujo tom pode oscilar entre o existencial e o psicológico, seja pela referência realista e sociológica, que sempre acha meio de descobrir no código estéril um broto de nacionalidade. Entretanto, passado enfim o período historicamente mais criativo dessa repugnância à convenção, não é especialmente difícil postular que o bosque desgraçado de Glaura é mesmo bosque de folhas de papel e letras codificadas cujo principal interesse reside na força significativa gerada pelo estrito domínio da composição convencional, em seus limites precisos e desafiadoramente estreitos. É essa a via que entrevejo, ao menos, para se reconhecer o brilho particular da pauvre beauté de que fala Boileau.
Convenhamos, então, que nada pode fazer menos bem à leitura de Silva Alvarenga do que buscar o seu realismo inverossímil: são mais de uma centena de versos habitados por indefectíveis deuses e heróis olímpicos; musas solícitas na companhia de amorezinhos com faunos à espreita; hamadríades animais e florais; zéfiros ligeiros e desejos voadores; pastores cultos, cruas pastoras; montes, prados e ribeiros delineados sob cópias de Virgílio, Horácio, Ovídio, Anacreonte, e batidos pelo soberano e surdo Fado etc. Neste mundo inelutável, a pièce de resistance realista apenas pode ficar por conta da referência a um ou outro cajueiro ou mangueira, ali plantados como exemplares da nativa cepa. Que, ademais, não fazem outra coisa além de ocupar lugares precisos no sistema herbário que os árcades gostam de plantar. Para a mangueira, reserva-se o colorido do fruto e o lirismo modesto que não sofre menoscabo ao deixar o gênero épico pelo pastoril:
Vi mil cândidos Amores,
E mil Risos namorados,
Da Mangueira pendurados
Lindas flores desfolhar.
Para o cajueiro, retorcido e seco, Silva Alvarenga reserva sobretudo a interpelação queixosa do pastor face aos azares da fortuna:
Cajueiro desgraçado,
A que Fado te entregaste,
Pois brotaste em terra dura
Sem cultura e sem senhor.
(…)
Ambas as espécies alusivas à paisagem brasileira absorvem-se, pois, nas convenções universalizantes adotadas pela poesia árcade. De qualquer modo, para reconhecer o rendimento quase nulo das leituras espontaneístas, biográficas ou nacionalistas dos árcades, não precisamos de nenhuma teoria nova. Se calhar, basta seguir com atenção algumas pistas deixadas por Sérgio Buarque de Holanda, bem menos lido do que poderíamos imaginar pela quantidade de menções devotas a seu respeito:
“No mundo dos árcades, o que nos chama a atenção constantemente é bem o oposto daquelas tendências individualizadoras que o Romantismo irá cultivar. E isso parece verdadeiro mesmo num caso como o do nosso Tomás Antonio Gonzaga, tantas vezes celebrado pelo timbre realista de suas descrições. No próprio retrato de Marília, é fácil observar-se como, ao contrário, o típico e o ideal prevalecem em todas as circunstâncias sobre o individual. Por isso mesmo, assumem escassa importância os elementos contingentes e sensíveis que serviriam para compor sua silhueta mortal.”
E sobre a questão do suposto realismo do retrato, Sérgio Buarque escreve ainda que
“(…)os traços exteriores de Marília não precisam corresponder aos de sua representação poética. E é muito provável que a contradição notada mais de uma vez pela crítica [loira ou morena, segundo a passagem lida], já afeita a buscar na criação artística o individual e episódico, deixasse indiferentes ou insensíveis os contemporâneos de Gonzaga.”
Assim, para o crítico, as tais celebradas notas realistas afincadamente procuradas entre os árcades “fazem parte, em verdade, da convenção e até da afetação bucólica”, que entende como “inseparável da adesão a um ideal de vida eternamente válido”, que, em seus termos básicos, procurava “restaurar na esfera da arte uma espécie de paraíso perdido, ainda quando não o pudessem restaurar nas formas de existência e convívio” . Resguardando-se das leituras teleológicas e conhecendo os modelos internacionais emulados pelos autores, Sérgio Buarque conclui que:
“(…)a livre inspiração e a espontaneidade que reclama um Silva Alvarenga, por exemplo, colocando-as acima do estudo e do esforço, não têm para ele, como não têm para os demais árcades o sentido e a missão que, com as mesmas palavras, irão ter depois entre os românticos. O que aspiram, antes de tudo, é à manifestação de valores universais e não à revelação de verdades particulares, únicas, inefáveis, que levassem a distinguir cada artista, não apenas de seus confrades, mas também do comum dos mortais. O poeta árcade não se interessa, de fato, na afirmação da ‘personalidade’; suas obras ele não as concebe como ‘originais'(…)”
E embora devesse tudo isso estar já bem debatido, não são muitos os estudiosos que se dão conta do anacronismo patente de se insistir ainda hoje em buscar nesses versos índices precoces de brasilidade e sentimento nacional revolucionário. Aliás, no que toca à busca de sinais nativistas na produção árcade, o mesmo Sérgio Buarque já duvidava expressamente de seu interesse crítico e pertinência histórica, preferindo considerá-las antes como manifestações de paroquialismos, localismos, nas quais seria aleatório encontrar traços de sentimento ou consciência nacional:
“E não será deformar o passado chamar de impulso autonômico a certas manifestações de incipiente nativismo que encontramos em toda a nossa história colonial? Manifestações que, em geral, não exprimem mais que uma fidelidade instintiva ao próprio lar, à parentela, à vizinhança, à terra natal, e que têm seu correlativo necessário na aversão ao adventício, ao que fala língua diversa ou pronuncia diversamente a mesma língua, ao que tem costumes, preconceitos e — quem sabe? — credos exóticos.”
Para o historiador, seria um “erro de perspectiva” pretender equiparar tal “fidelidade ao pequeno rincão”, tal “patriotismo de espécie paroquial” ao que se chama de “consciência nacional”. Além disso, considera em definitivo que a literatura brasileira dos tempos coloniais, enquanto “prolongamento da literatura portuguesa”, “não pode ser caprichosamente separada do conjunto a que pertence”. Neste sentido, não deixa de ser sintomático que, no Brasil, essas mesmas observações precisas apenas venham a ser reapresentadas de maneira clara por Jorge Ruedas de la Serna, estudioso mexicano do arcadismo:
“De maneira geral, a crítica impôs aos árcades brasileiros, como critério de valorização, a ‘cor local’ ou o prenúncio do sentimento romântico, impedindo, com isso, uma mais ampla compreensão do significado de sua obra em relação ao complexo momento cultural do qual fazem parte.”
Ou ainda:
“(…)a perspectiva adotada pelos estudiosos da Arcádia, salvo raras exceções, tem-se mantido imersa na visão axiológica do romantismo, da qual não escapou a vanguarda(…)”
Isto reposto, deixemos as falsas pistas do realismo subjetivo ou da formação nacional e falemos do que há de mais sério na literatura dita árcade: o absolutamente convencional. E, em seu âmbito, nada mais convencional que a composição do locus, cuja forma principal postula, como sede amorosa, um bosque ou inculto arvoredo onde predomina um caráter ameno. A sua hora mais prazerosa define-se como a de uma manhã de primavera, onde ecoa um amoroso chamado do pastor. Aí comparecem igualmente o zéfiro suave de asas lisonjeiras, a rosa orvalhada pelas lágrimas da aurora, o pequeno beija-flor, as volantes borboletas de mesclada e vária cor, o rio sossegado enamorando-se das próprias margens, a multidão das flores, mais as sombras, as penhas, os troncos, as fontes, etc. Quando avança a manhã, na rígida economia deste tempoespaço, tudo logo sente um vivo ardor. Ao meio-dia, a silva de Alvarenga repõe a tópica clássica dos silenciosos nympha loci:
Voai, Zéfiros mimosos,
Vagarosos com cautela;
Glaura bela está dormindo;
Quanto é lindo o meu amor!
O silêncio que nem ousa
Bocejar e só me escuta,
Mal se move nesta gruta,
E repousa sem rumor.
Leve sono, por piedade,
Ah derrama em tuas flores
O pesar, a mágoa, as dores,
E a saudade do Pastor!
(…)
Com a cigarra, zune de calor toda a selva; o touro fatigado busca a sombra; as ninfas correm graciosas para a gruta quieta e fresca, ameníssimo abrigo, para a qual sempre convidam a amada do pastor — aquela que, entretanto, geralmente se esquiva ou tarda. A mesma movimentação desses mesmos figurantes revém ao longo da mais de centena de poemas, de tal modo que fica evidente que é a sua composição o núcleo do interesse poético de Glaura, filiado decerto à tradição da poesia bucólica que define ou produz a brandura civil e a pacificação dos afetos pelo emprego da gramática rígida do locus amoenus. Mas ainda está por fazer-se a descrição precisa de sua amenidade regular, de modo a descobrir-se a medida com que tempera desejo amoroso e ócio sábio; evocação melancólica da aura clássica ou nostalgia pitoresca e natureza racional, necessariamente limitada. Apenas para dar uma pincelada na questão, cabe notar que o locus composto por Silva Alvarenga evidencia sistematicamente uma ausência, pois a pastora raramente comparece em pessoa ao sítio que em tudo bosqueja o ar de sua graça:
Glaura! Glaura! não respondes?
E te escondes nestas brenhas?
Dou às penhas meu lamento;
Ó tormento sem igual!
Se não vens, por que te chamo;
Aqui deixo junto ao Rio
Estas pérolas num fio,
Este ramo de coral.
Entre a murta que se enlaça
Com as flores mais mimosas,
Acharás purpúreas rosas
Numa taça de cristal.
(…)
Tal ausência, insistentemente anunciada e amplificada por ecos e lisonjas partilhados por todo o mobiliário agreste do locus amoenus, cria as condições suficientes para que, nele, a manhã calórica e radiante passe veloz e, logo, caia a tarde, seqüência certa desta rigorosa sintaxe espácio-temporal. A claridade, então, descreve-se a desmaiar numa faixa da paleta que justapõe ondas de cor primária à sua secundária complementar ou fulgura metalizada por um instante breve:
Já serena desce a tarde,
Já não arde o Sol formoso:
Vem saudoso o brando vento
Doce alento respirar.
Pelos fins daquele monte
Vejo, ó Ninfa, luzes belas
Entre púrpuras amarelas
No horizonte flutuar.
Que gigante os Céus adorna
Com chuveiros de oiro e prata!
Sobe e cresce e se desata
E se torna todo em ar!
(…)
A brandura da tarde, contudo, resfriando-se com os humores merencórios próprios da química afetiva da saudade, é prenúncio por sua vez do mais rigoroso inverno. O que nas matinas primaveris era apelo a mil amenidades escondidas é, num instante, queixa de rigores, cruezas e esquivanças, reduzindo-se o prazer ao gosto da prisão e do tormento, único laço seguro entre o pastor e sua amada:
Beija-Flor fui amoroso,
E ditoso já me viste;
Hoje é triste e desgraçado
O sonhado Beija-Flor.
Ir contigo só desejo;
És cruel… cruel me agradas;
Choro as penas arrancadas,
E em mim vejo o teu Pastor.
Ah! que eu morro de saudade,
E te dizem meus gemidos,
Que os prazeres são fingidos,
E é verdade a minha dor.
(…)
Em seguida, o colorido melancólico e enternecido do poente, que espalha por todo o quadro os suspiros do pastor, cede de vez aos tons lúgubres do anoitecer. O vale, agora, está tomado por sombras espessas, o ar é triste, feio; mochos famintos, agoureiros, vampiros de sangue tinto ocupam os céus que antes foram dos passarinhos buliçosos; insônia e dor substituem a brandura do sono da ninfa da gruta:
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
Que suspira lacrimosa,
Amorosa em noite escura,
Sem ventura, nem prazer.
Melancólico agoureiro
Solta a voz Mocho faminto,
E o Vampir de sangue tinto,
Que é ligeiro em se esconder.
Volta a densa escuridade,
O silêncio, o horror, o espanto:
E as correntes do meu pranto
A saudade faz verter.
(…)
Neste ponto, a geografia cênica de Alvarenga avizinha-se da de Bocage, sem chegar porém à eloqüência do belo terrível que há neste. Em vez de querer fartar o coração de horrores e vinganças, o noturno de Silva Alvarenga prepara a única ocorrência prevista por esse cenário estruturalmente composto à roda de uma ausência: a morte da pastora-ninfa. Esta dorme como antes, mas agora em áspera urna, terra fria, funesto monte, que os sátiros circundam em silêncio; névoa grossa e manto escuro turbam os céus, confundem-se rouco vento, cuidados, espectros esfaimados e devoradores; lúgubres gemidos escapam ao retorcido cajueiro. O bosque afortunado é já apenas triste memória na paisagem que repõe a tópica seiscentista da morte iníqua e cega, sem o contraponto da pastoral consolatória em que o desastre da morte física reinterpreta-se como ordem na bem-aventurança no Céu:
Mortal saudade, é esta a sepultura;
Já Glaura não existe;
Ah! como vejo em triste sombra escura
O campo, que alegravam os seus olhos!
Duros espinhos, ásperos abrolhos
Vejo em lugar de flores:
Chorai, ternos Amores,
Chorai comigo a infausta desventura:
É esta a sepultura:
Meu coração à mágoa não resiste:
Glaura bela (ai de mim) já não existe!
Desde que o cenário é sempre o assunto principal dessa poesia, predomina nela a idéia de uma natureza imanente, sintaticamente determinada por seu próprio ciclo de cores e afetos. E, neste sentido, devo corrigir o que escrevi há pouco e dizer que sequer chega a haver aí acidentes e iniqüidades, pois os males alegados são apenas enunciados de queixas estruturais, eternamente postos ou previstos nos temperamentos ditados pelo locus. Daí que o tempo de seu decoro seja sobretudo o presente histórico, que cria o efeito de simultaneidade dos afetos imaginados. A rigor, não há ocorrências ou fatos nesses versos: o que se dá agora como falta produzida pela morte, dera-se antes como ausência por esquivança ou crueza. O que há, em termos verossímeis, são as possibilidades variáveis, mas certamente previsíveis, do cenário esquemático que esboça contornos para objetos ausentes, descritos no locus principalmente como fantasia afetiva. Assim, a poesia que há, aqui, é a simples apresentação ou evidência retórica do grupo gracioso da manhã, rutilante ao meio-dia, saudoso à tardinha e fúnebre à noite — eis tudo o que me parece imprescindível dizer. Os demais conteúdos de Glaura não acrescentam muito a esses jogos flutuantes de signos afetivos na superfície do locus: alvo pé na ruiva areia –, para dar um último exemplo, previsto desde o início.