Os Estados Unidos são a grande potência mundial, desde o fim da Segunda Guerra, condição reafirmada, em 1991, com a extinção da União Soviética. Falar então de uma “poesia das Américas” é, em certa medida, falar de uma poesia da centralidade. Os ganhos advindos da força de seu capitalismo projetaram seus poetas no mundo todo. Deu-se a inversão prática dos fluxos: a poesia norte-americana passou a influenciar e a alimentar as várias poesias da Europa e – em escala menor – da América Latina. Num mecanismo de retroprojeção, os Estados Unidos exportaram o seu modernismo (Objetivismo, Imagismo, Gertrude Stein) para a Europa e fascinaram as outras Américas.
No entanto, por isso mesmo, a centralidade da poesia das Américas deve ser historicamente entendida como, sobretudo, norte-americana. Não há poetas brasileiros ou poetas hispano-americanos que tenham influenciado a poesia estado-unidense. Aliás, esta é, na prática, até onde posso avaliar, autorreferente. Com a exceção notável de Ezra Pound, poucos de seus poetas fizeram do diálogo, com a tradição ocidental, o núcleo de sua composição. A L=a=n=g=u=a=g=e Poetry é, por exemplo, fenômeno exclusivamente norte-americano, sem qualquer demanda externa, em termos constitutivos.[1] Há, nesse movimento, ao que me parece, influências europeias que já se encontravam presentes na própria tradição de vanguarda americana. Em sentido oposto, dois poetas norte-americanos foram, entretanto, centrais para a Poesia Concreta: Ezra Pound e e. e. cummings, além de Stéphane Mallarmé, James Joyce, a Bauhaus alemã etc.
Mas há casos em que o antiamericanismo, ou ao menos o sentimento de resistência aos Estados Unidos, pretende ser o elo perdido na aproximação de certos blocos sul-americanos. Em geral, esse tipo de ligação por reação resultou mal, como no caso do chamado boom latino-americano, mais folclórico e turístico do que politicamente comprometido e literariamente relevante.
Há outras tentativas de aproximação entre os hispânicos e brasileiros, como o neobarroco, ou neobarroso, que pretendeu ligar a poesia das regiões platinas. Em boa parte, entretanto, era artificioso em relação às próprias tradições latinas, e falacioso, se não ingênuo, em relação aos modelos decididamente europeus do barroco histórico.
2. O poeta brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) pretendeu romper com o colonizador português e propôs, em sentido amplo, a colonização de todo os colonizadores: “Dividamos. Poesia de importação. E a Poesia Pau Brasil” (“Manifesto da Poesia Pau Brasil”, 1924). O mecanismo antropofágico, conceituado em 1928, e expresso no “Manifesto Antropófago”, seria o filtro “nacional” para a leitura do que viesse de fora e o instrumento que permitira gestar uma nova poesia – distinta, nova, “de exportação”. Isto, que foi dito diretamente para o colonizador português, também se supunha aplicável aos Estados Unidos (“Contra todos os importadores de consciência enlatada” – referindo-se igualmente às manufaturas, no mencionado “Manifesto Antropófago”). E não lhe faltam argumentos históricos para a proposição. Observa o historiador inglês Norman Davies que a história da expansão dos Estados Unidos pela América do Norte, depois de sua independência, e o estabelecimento de colonos brancos em terras dos nativos (índios) americanos, mal se distingue da história da expansão das potências europeias pela Ásia, África, Austrália e América do Sul.[2]
3. Tais observações básicas me levam a crer que “poesia das Américas” é uma esperança, uma semente de utopia, mas cuja unidade, paradoxalmente, quando se formula, introduz necessariamente o ovo da serpente ideológica. Formulada nos termos de Charles Bernstein, entendo-a como um ecumenismo benigno, como uma tentativa civilizatória de domar a selvageria globalizada, cujo efeito mais direto, para a poesia, seria pôr seus poetas em contato. Mas, sem querer mostrar um ranço reativo, ou recusar a esperança que se esboça aqui, pensemos um pouco mais nas diferenças supostas nesse plural problemático, Américas, e não América.
O traço colonial e, depois, o da dependência econômica, une todas as culturas das Américas, exceto a dos Estados Unidos. Os modelos literários latino-americanos são europeus. O que não basta sequer para postular uma unidade entre esses países. Isto é evidente de muitos pontos de vista, mas me contento em explicitar um deles, a meu ver decisivo: o surrealismo pautou as literaturas hispano-americanas, o que não ocorreu jamais com a brasileira, de vocação mais construtivista, exceto em um ou outro poeta de primeira plana, como Murilo Mendes.
4. Como sabem todos, a América Latina sofreu na mão de ditadores sangrentos, apoiados pelo governo americano, como o general Augusto Pinochet (Chile), o que desestruturou a difícil construção da democracia no continente. O pós-guerra para todos os não norte-americanos foi marcado justamente pelo intervencionismo norte-americano, que, por vezes, fora da política, estimulou rumos poéticos muito próprios, com perfis definidos e diversos da poesia americana.
Se um norte-americano falar em “poesia das Américas” a um hispano-americano ou a um brasileiro, mesmo contra a sua vontade, estes se verão pensando ceticamente se a ideia não será algum serviço cultural subsidiário da Doutrina Monroe. Não estranhem. Há razões para o ceticismo. Tão logo se tornaram independentes em 1776, os Estados Unidos adotaram o mecanismo de expansão do colonizador europeu, anexando parte do México e da América Central. Esse fenômeno não ocorreu, a não ser em casos restritos de disputas fronteiriças, em qualquer outro país do continente. É evidente que esses desequilíbrios políticos e culturais dificultam bastante o diálogo, que se forja nas frestas, por poucos poetas, sem se configurar ainda como uma “poesia das Américas”.
Não existe unidade histórica ou cultural entre os blocos – a não ser no plano mítico. O traço colonial e, depois, o da dependência econômica, une todas as culturas das Américas, exceto a dos Estados Unidos.
5. Portanto, insisto, inexiste uma identidade poética das Américas. No Brasil nem sequer usamos a expressão “Américas”. O continente parece dividido, de uma vez por todas, em três blocos: Estados Unidos e Canadá, América hispânica (México, Caribe e América do Sul) e Brasil – o único país que fala o português.
Mas os três blocos são muito mais do que três. São muitas as identidades americanas, evidentemente irredutíveis a uma unidade, e, mesmo, com pouca experiência de diálogo igualitário entre elas. Claro, permaneço mantendo no horizonte o ecumenismo da proposição de Bernstein como uma alternativa civilizada de convivência e incremento da cultura, mas, de alguma forma, considero-a – historicamente – imponderada. Como afirma o italiano Cesare Pavese (1908-1950), uma cultura que não implique esforços, que não seja trabalho vivo, não significa nada. O intento de Bernstein não será – imagino – perdido.
Digo isso tudo sem vitimizar o Brasil ou sua literatura. O Brasil está entre as dez maiores economias do mundo há duas décadas, representa 47,7% do território sul-americano e 20,8% do das Américas. Produziu alguns dos maiores e mais originais escritores do mundo, como Sousândrade (1833-1902), Augusto dos Anjos (1884-1914), Machado de Assis (1939-1908), Lima Barreto (1881-1922), Oswald de Andrade (1890-1954), Guimarães Rosa (1908-1967), Clarice Lispector (1920-1977), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Murilo Mendes (1901-1975), João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Raul Bopp (1898-1984), o movimento da Poesia Concreta nos anos 1950 e 1960 (Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos) etc. O Brasil forjou igualmente uma singularidade cultural rica e diversa, que talvez só seja igualada pela norte-americana ou pela cubana.
Isto me leva a preferir dizer que existem poetas ímpares nas Américas, mas não há uma poesia das Américas. Nessa direção, deixo a todos uma lista de poetas das três Américas que foram e são importantes para mim:
Uruguai: Eduardo Milán, que reside há trinta anos no México; Chile: Vicente Huidobro (1893-1948), Gonzalo Millán (1947-2006), uma descoberta recente, e os mais novos Felipe Cussen e Andrés Ajens; Argentina: Oliverio Girondo (1891-1967) e Jorge Luis Borges (1899-1986), que conheci pessoalmente; Peru: Cesar Vellejo (1892-1938) e os contemporâneos Rodolfo Hinostroza e Antonio Cisneros; Cuba: Nicolas Guillen (1902-1989), Mariano Brull (1891-1956) e os contemporâneos Rolando Sánchez Mejias e Pedro Marqués de Armas; México: Octavio Paz (1914-1998); Estados Unidos: Ezra Pound, e. e. cummings, William Carlos William, George Oppen, John Cage, Robert Creeley (um grande interlocutor, que me abriu horizontes), Allen Ginsberg, Gregory Corso, Paul Blackburn e o prosador Truman Capote, de In Cold Blood; há um músico negro americano que foi decisivo para mim: Jimi Hendrix; entre os contemporâneos, cito Douglas Messerli e Charles Bernstein, com os quais mantenho um longo e permanente diálogo, e a crítica literária Marjorie Perloff; dialoguei também com Michael Palmer; Brasil: Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Oswald de Andrade, Mário Faustino (1930-1960), Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos (1929-2003), Torquato Neto (1944-1972) e Paulo Leminski (1944-1989); mantive contato pessoal com Caetano Veloso, entre o final dos anos 1970 e o começo dos 1980, que me marcou; entre os contemporâneos, citaria Nelson Ascher (divergências ideológicas nos separaram); e, entre os mais novos, tenho apreço por Josely Vianna Baptista, Luis Dolhnikoff, Ronald Augusto, Sérgio Medeiros, Douglas Diegues e outros. Não poderia deixar de mencionar o crítico literário Alcir Pécora.
PS.
Odile Cisneros lembra, relativizando tanto minha tese central, neste texto, quanto a de Charles Bernstein (no sentido de que não há muita novidade no tema), que houve diálogo entre poetas das Américas e observa que o nicaraguense Rubén Darío (1867-1916) e o cubano José Martí (1853-1895) leram e admiraram Walt Whitman. O poeta brasileiro Mário de Andrade (1893-1945) anotou no manifesto “Prefácio interessantíssimo”, do livro Pauliceia desvairada (1922), que lançou a poesia moderna no Brasil, o seguinte: “Você já leu Walt Whitman? ou Mallarmé?”. Cisneros fala na existência de um espírito pan-americano. A presença de Whitman na poesia hispano-americana, diz ela, seria um bom tema para um livro. O poeta brasileiro Ronald de Carvalho, acrescenta Cisneros, escreveu Toda a América, publicado em 1926, que foi traduzido para o espanhol por Francisco Villaespesa e publicado em 1935, com irradiação em toda a América de fala hispânica. Octavio Paz influenciou poetas como Robert Duncan e Denise Levertov, conclui a Professora de Edmonton. É bastante pertinente a lembrança feita por ela do livro Toda a América, de Ronald de Carvalho (1893-1935). Carvalho, além de ter participado da Semana de Arte Moderna de 1922, foi o único poeta brasileiro que travou contato com Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), chegando a publicar na revista Orpheu (1915), dirigida por estes dois poetas portugueses, verdadeiros gigantes de toda a poesia de língua portuguesa. Carvalho estabeleceu-se em 1914 em Lisboa como diplomata e retornou ao Brasil em 1919. Transcrevo trecho de um ensaio de Antonio Donizeti da Cruz intitulado “Identidade e alteridade em Toda a América, de Ronald de Carvalho: a vinculação do local e do global”: “A América – nas palavras de Octavio Paz – é a “súbita encarnação de uma utopia europeia. O sonho se torna realidade, presente; um agora que está tingido de amanhã. A presença e o presente da América são um futuro […]. Seu ser, sua realidade ou substância consiste sempre em ser um futuro, história que não se justifica no passado, mas no porvir. […] A América não foi; e ela só é se é utopia”. Deixo aqui a estrofe final do poema “Broadway”, de Carvalho: “Chão épico, chão lírico, chão idealista,/ chão indiferente de Broadway,/ largo, chato, prático e simples no ar, este/ roof liso, suspenso no ar, este roof, onde um/ saxofone derrama um morno torpor/ de senzala do sol”. Para Octavio Paz, o diálogo aponta para a pluralidade e o monólogo, para a identidade, e conclui: “A poesia sempre foi uma tentativa de resolver essa discórdia através da conversão dos termos: o eu do diálogo no tu do monólogo. A poesia não diz: eu sou tu; diz meu eu és tu. A imagem poética é outridade”. Eis o link do ensaio de Antonio Donizete da Cruz: http://www.ucm.es/info/especulo/numero38/rcarvalh.html.
Como mais um subsídio sobre Toda a América, deixo também este link: http://www6.ufrgs.br/seermigrando/ojs/index.php/NauLiteraria/article/viewFile/5825/3429.
Notas:
1. Charles Bernstein observes regarding my argument on the U.S. centeredness: “This is true in a general way, but it misses lots of details. Rothenberg/Ethnopoetics (including for example Clayton Eshleman) were committed to influence from outside U.S., both from ‘fourth world’/indigenous in Rothenberg’s case to South American poets/poetry; the culmination being Rothenberg’s Poems of the Millennium; so he’d be a crucial addition to your list, it seems to me and important corrective to Pound’s approach to internationalism. Our small circle at L= in New York were deeply affected by the Russian Futurists, for example (whose work was just emerging in the 70s) and we also were thinking of the connection of various European avant-gardes, specifically to move outside of the insular U.S. centered traditions (Duchamp, Dada, Surrealism, Concrete and Visual Poetry, French poetry). And there has been throughout the history of radical poetics of the U.S. a deep exchange with French poetry and between poets. Of course you are leaving out the relation of U.S. poetry to British poetry. It’s fair to say at least in the 70s and 80s the North-South connection was far less significant (though of course that has radically shifted in the last decade or two) for those around L=. But also any number of specific poets in the 20th century there would be connections/influences outside the U.S., though the centripital force of U.S.-centeredness is very powerful as has been the ideology of putting out foreign influences”.
2. Norman Davies, Europa na Guerra (1939-1944), Editora Record, Rio de Janeiro, 2009.