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Anjo das ondas

[…]
Eu estava nu na frente de meu pai e procurava adivinhar o corpo que projetara o sêmen para que eu pudesse estar no mundo, mesmo que sem saber o que pensar.

O desafio de me confrontar com meu pai daria frutos poderosos. Não saberia calcular as consequências de um duelo intempestivo. Mas as benesses teriam a ver com o fato de que, diante de sua figura, eu me vislumbrava no futuro, tomando o lugar dele…

Fui para o chuveiro. Contemplei pela janela do banheiro o mar de Copacabana: tudo recendia a férias, amores, transas e, no fundo de cada coisa, o cheiro típico do Rio: uma mistura de gasolina, asfalto e maresia. Eu ia tomar banho, me limpar, para estar pronto pro gozo e dele me lançar.

Estava usando o sabonete do meu pai, a sua toalha meio úmida e até sua escova de dentes. Ainda não havia aberto a mala. Se detestasse a companhia dele, teria a mala pronta para encontrar outro teto por aí. Quem sabe voltasse a Londres e para minha avó, que dali a poucas semanas daria um recital muito esperado, só de compositores brasileiros.

Meu pai parecia mesmo franciscano Não tinha praticamente nada, vivia no abandono. Até a gata de estimação que possuía para se amenizar um pouco morrera, deixando apenas no sofá um cheiro de xixi. Eu teria de ser estoico, fazer de conta que não estava nem aí para aquele desprazer no apartamento escuro.

Saí de calção para a praia. No trajeto vi várias gatas que me fizeram parar, olhar para trás e meditar que no Rio um daqueles corpos, talvez o mais virginal, poderia ser meu num passe de mágica. Num passe de mágica estaríamos a sós num vão escuro da cidade, inteiramente disponíveis, em plena esfregação. Seria a primeira vez que penetraria em uma mulher… Senti que minhas feições pegavam fogo, como se o rubor dos meus embaraços infantis desse lugar à pura exaltação.

Era impossível um enxergar o corpo do outro naquele amasso no breu. Eu não via sequer o rosto da desconhecida que nunca revi. Se me perguntassem onde ficava essa escuridão, responderia que não sei. Em compensação, o nosso tato ardia.

Talvez as trevas a que me refiro viessem, antecipadamente, dos meus miolos escaldantes durante a noite de logo mais, sim, noite que eu ainda estaria por viver, quem sabe amabilíssima, ou, talvez, sanguessuga de meu sêmen, em uma polução sem retórica, apenas o rompante da flor úmida explodindo, frio, entre as pernas.

Fui andando até o Leme. Encontrei na praia uma espécie de cajado. Peguei-o e comecei a escrever na areia úmida. Procurava exercitar o meu traquejo com a palavra para, quem sabe, escrever um livro a quatro mãos com meu pai. Ele aceitaria?

O que saía na areia tinha a pinta de um poema, falava de um olho cego e outro são. Eu parecia Anchieta redivivo, com o corpo à mostra, e ao mesmo tempo um típico garoto da Zona Sul. Então deitei na praia, fiz esforço para ouvir o marulhar em meio a todos os ruídos da cidade. Não consegui.

Um bando de crianças corria ao redor de mim, soltando um alarido que parecia tudo o que eu queria ouvir. Eu me submetia aos caprichos do instante… Ali, achei que teria futuro no Rio. Precisava preparar minha mãe para a mudança de cidade do filho. Não será nada fácil, eu meditava, inebriado pela algazarra da meninada infinita em torno da minha lassidão.

Ao acordar nas areias, em meio à brisa, vi que já era noite. E estava simplesmente nu. Quem roubara o meu calção? E para quê? Tinha me ausentado dos meus próprios sentidos? Levantei me tapando todo e não conseguia entender. Como é que eu andaria de volta para o prédio do meu pai assim, em pelo? Não tinha dinheiro algum para ser roubado, então por quê?

Corri como se do avesso para que não vissem a minha genitália ou bunda, corri e entrei num banheiro público, daqueles na orla da Avenida Atlântica, entrei e me pus a urinar para depois pensar no que fazer. Foi quando olhei para o meu peito e vi a medalha italiana que minha avó me presenteara num dos meus aniversários. Mostrava certa Madona com o filho ao braço. A imagem reluzia, mesmo sob a concha de minha mão.

Diziam ser de ouro, mas minha avó nunca falou a respeito da medalha, nem que sim nem que não. Usando longamente o mictório, mirei de novo a medalha, com mais atenção do que jamais conseguira diante dela, e falei para mim mesmo, essa medalha me salvará.

Virei-me e vi o zelador do banheiro com uma bermuda azul-celeste. Sorrimos, como se ele já soubesse de antemão o que se passaria logo. Preciso me cobrir com alguma coisa, falei. Tirei a medalha e beijei-a mecanicamente, como se o beijo concedesse maior valor ao objeto. Passei-a para a mão do zelador, já espalmada, e ele, em troca, despiu a bermuda e me ofereceu. Depois olhou para a sua nudez… Parecia estar se perguntando, e agora, como vou sair assim?

Olhei rapidamente pela última vez o presente de minha avó. Nunca percebera antes ser um presente tão, tão fino, digno dela. Tremi ao vestir a bermuda. O brim tinha o odor forte do uso. Peguei-a firme na cintura, por medo de que a roupa, tão frouxa como estava, pudesse cair e me envergonhar ainda mais.

O cheiro de água sanitária era mais que penetrante, parecia prestes a se espalhar pelo universo. Peidei, não pude segurar. Vi que o zelador abanava as narinas discretamente. De súbito riu a valer do cheiro nefasto. Também ri, mas não muito… E, nuzinho, ele agradeceu.
Falei boa-noite e me dirigi ao apartamento de meu pai meio cabisbaixo. Entrei mais uma vez na ideia fixa, a de não ter mais para onde ir. Era uma ideia que me assaltava muito naqueles dias. Do mesmo modo que metia medo, também me seduzia. Mesmo jogado nos amedrontadores braços do desconhecido, havia sempre a promessa de eu vislumbrar o outro lado em que alguém sorria a me chamar…

O instinto de sumir se agigantava em uma cidade que não era a minha. Seria mais fácil me escafeder estando entre estranhos, tendo apenas o meu pai para me ancorar, caso eu sofresse uma emergência nessa fuga. É verdade que um grande dissabor não ocorreria comigo. Jamais me desguarneceria das pequenas benesses familiares. Morando no Rio, teria o meu pai de retaguarda. Até onde desse, ele irromperia de sua escrita, impávido, como meu protetor.

Especulei não ser capaz de escolher a vida que meu pai levava. Sua geladeira andava vazia. Faltava xampu no boxe. E a pilha de roupa suja aumentava de fazer dó. Às vezes eu o surpreendia a falar sozinho, com as expressões faciais as mais hilárias.

Quem era ele afinal? Seria eu o seu pai? Às vezes tinha vontade de lhe pedir alguma grana para fazer certas comprinhas. Naquela casa faltava tudo. Mas era difícil sair da passividade filial para me arvorar a gerente e provedor do meu predecessor. Se passássemos a sofrer de fome, para mim não seria nada mal. Minha mãe dizia que eu andava precisando perder alguns quilos.

Meu pai se escondia numa espécie de água-furtada, em pleno Rio de Janeiro. Uma cobertura de pobre. Havia quatro andares a subir. E seu apartamento tinha um bolor continuamente a exprimir necessidades. Uma parte do teto era de madeira, sob 42 graus. Cheguei ao apartamento e isso foi a primeira coisa que ele falou: cadê o calção? E de quem é essa bermuda em frangalhos? Eu me fiz de surdo. Foi a última vez que escutei dele algum interesse pela marcha dos meus acontecimentos.

Ele passou a ser diante do filho um omisso radical. À noite havia três fatias de pão de forma, manteiga e café. Comemos esse déficit alimentício com vagar, talvez para a refeição parecer um longo banquete.

Eu comia aquele pão meio mofado, e pensava sobre o episódio do roubo do calção. Enquanto eu estava, digamos, ausente, enfurnado no sono, sobre as areias do Leme. De fato, só podia estar ausente mesmo, para não sentir alguém a me arrancar o calção. Pensava de forma cerrada, para me blindar contra a tensão silenciosa entre o pai e o filho.

Já me sentia completamente decepcionado com o estado do meu pai. Viver o cotidiano em sua companhia deveria ser intolerável. Por isso não conseguia uma segunda mulher para dividir a habitação. Ele acabou de comer, dirigiu-se à sua mesa de trabalho e enveredou por sua escrita como se nada mais lhe interessasse. Como era possível um homem pensar apenas em sua criação? Como seria dormir junto à sua presença com certeza insone?
Eu precisava aderir a algum adulto. E não deveria ser ele nem minha mãe. Talvez encontrasse alguém no Rio. Lá vivia mais gente do que na minha cidade natal. Haveria mais oportunidades de que essa pessoa aparecesse do que em meu presépio de origem.

Eu era um homem, um homem, sim. Faltava cavar entre os cariocas aquela pessoa, de meia-idade, digamos, segura de si, que pudesse me conferir o caminho da plenitude. Deitei de sunga, tamanho o calor, e fiquei a observar meu pai de costas para mim, trabalhando no seu texto sob um abajur fraco, luz que não invadia a escuridão em que eu estava imerso.

Minutos depois levantei, me tranquei no banheiro, sentei na tampa da privada e desatei a chorar. Era um choro seco, surdo, envergonhado… Não vinha de uma tristeza determinada, mas de uma pororoca que tentava devolver às minhas vias interiores, para não contagiar todos, mesmo aqueles prostrados e ensimesmados e adormecidos como eu…

Não chorava por mim, nem por qualquer outra pessoa das minhas relações. Chorava por um esperto autor do roubo de um calção que eu vestira para entrar no mar. Era um surrado presente do meu pai. De que adiantaria possuir um mísero calção? Que o assaltante conseguisse outros tantos por aí, sempre na marra.

O mistério de sua aparição, sem que eu tomasse consciência dela, dava-lhe, é claro, um poder indisfarçável sobre mim. Eu vivia a tal misteriosa atração que a vítima pode experimentar pelo seu algoz?

Ao me ver, ele provou estar atilado, vigilante por qualquer oportunidade de se dar bem, enquanto eu era um sujeito exaurido, depois de doze horas de voo a atravessar o Atlântico. Eu conseguiria também um dia adivinhar a potencialidade de um instante e então atacá-lo para arrancar o que em mim carecia?

Chorei porque o assaltante levara algo sem nenhum valor, um calção vagabundo, que não lhe serviria de nada. E eu poderia lhe dar muito mais: o relógio de pulso, alguns CDs, os documentos que pudessem lhe servir, qualquer coisa mais. Sacudi a cabeça para tirar de mim tanto engano… Sacudi a cabeça para espantar todos os meus reles sentimentos…

Mesmo assim eu continuava a chorar por não lhe ter dado tudo o que eu almejava perder naqueles dias, e esse tudo abarcava tantos pertences demasiados, para que eu conseguisse partir novamente do zero e correr atrás dos tesouros no acaso das ruas… Sacudi novamente a cabeça e olhei por fim as minhas mãos vazias…

Naquele dia eu dera a medalha para o zelador do banheiro. Poderia representar um avanço… O despojamento do meu corpo ocorreria pouco a pouco, na medida em que vencesse a precipitação da juventude. No entanto, quando eu visse, como por milagre, já exibiria a roupa descolada de um jovem homem, bem acostumado com os compromissos que uma criança jamais conseguiria imaginar.

Aliás, esse rapaz aqui já perdera a memória da infância. Para ele, as lembranças começariam a contar a partir dali. O rosto de minha mãe se diluíra tanto que não passava de certa mancha roxa. O pai escrevia em sua mesa de costas para o filho. Às vezes entoava uma canção bem baixinho, dando a entender que fazia parte da trilha sonora do romance.

Se ele se virasse, o filho não se perguntaria pela saúde do pai, pois estava gratuitamente convencido de que seria outra a face a aparecer, mais revigorada, e não a daquele homem que lhe apanhara horas antes no aeroporto.

Caso precisasse dar vazão ao gozo intempestivo de sua idade, o garoto iria ao banheiro, pois o pai escrevia o seu livro de costas para o filho, a poucos palmos. Acordou no meio da noite e viu o pai escrevendo ainda. Talvez trabalhasse durante a noite toda e dormisse de dia. Talvez não parasse mais de escrever até acabar o livro. O seu imaginário talvez nascesse da exaustão.

Ouvi de minha mãe que ele costumava confessar seu desagrado pelo tempo exterior à escrita ser maior do que aquele reservado à sua ficção. No curso da escrita, a passagem do tempo se rendia, enfim, e a tal ponto, que ele se imaginava um pequeno deus, alheio às promessas de futuro e às nostalgias dos tais anos dourados.

De repente me senti prisioneiro. Para manter-me em uma temporada, ali, no Rio, precisaria me anular, depositar o meu tempo aos pés do meu pai, para adicioná-lo ao dele, e, assim, cada dia do meu predecessor, enquanto literato, duraria para valer por dois, sem sequer uma pausa para adormecer.
Ele escreveria com fôlego duplo, e dessa energia multiplicada fluiria a sua mais caudalosa narrativa. Eu iria até o seu ombro, por trás, e leria algumas frases, feito um gatuno das letras. Eu, ah!, eu ficaria ali à espera da conclusão do livro, alheio à matéria diária.

Aliás, eu daria tudo para ver o que tanto escrevia. Continuaria a tratar de velhos ofegantes, seduzidos por sensuais garotas, que, com eles, tinham vários filhos? Com os partos, os septuagenários sofriam por não terem esperança de ver os filhos crescerem.

Choravam disfarçados sobre o berço a abrigar alguns primeiros movimentos do bebê. E davam cabo à própria vida. Simplesmente deixavam de tomar seus remédios para o coração, a diabetes, a insuficiência renal, o diabo.

No meio desse desacordo entre os velhos e sua insuficiente extensão da vida, as personagens infantis se proliferavam, e essas existências no solar da vida serviriam para vingar a mortalidade paterna. Quanto mais os filhos prolongassem sua duração, mais justiçada a finitude paterna.
Eu permaneceria no vácuo, despido de alma e tudo, à espera de que meu pai terminasse de escrever o livro. Antes que isso acontecesse de fato, eu precisava ir para a rua, me relacionar com os passantes, até que encontrasse a pessoa que me livraria do cárcere e me ensinaria a ser enfim um homem digno desse nome.

Enquanto isso não ocorresse, eu estaria aqui, no limbo, sem ocupação nem nada. Meu pai vestia uma bermuda, estava sem camisa. Catava as teclas com a cabeça bem inclinada, feito sofresse de uma séria disfunção ocular. Às vezes se inclinava tanto que parecia ter a visão com dias contados. Sofria de diabetes e não se tratava.

Os adultos mais próximos, tanto o pai quanto a mãe, pareciam ter se refugiado em um arremedo de bem-estar que só dizia respeito a eles próprios. Havia aí um certo conforto, prazer até, mas esse estado se circunscrevia a uma redoma interior.

A salvo dos outros, essa interioridade dispunha de uma liberdade inútil. Desci as escadas da mansarda de meu pai quando o dia clareava. Deixei-o roncando sobre o teclado do computador. Um copo de cerveja entornado sobre as teclas. Precisava reativar um certo otimismo que eu deveria possuir na infância. Mas como?

Naquele momento, é claro, eu tinha de me divorciar dos pais, não deveria seguir suas trilhas, e isso ameaçava qualquer otimismo, por representar um rompimento de choque, sim, talvez com sérias consequências. Não poderia me dar ao luxo de um corte gradativo, manso. Isso poderia significar movimentos suaves em pleno pântano. E mesmo que eu considerasse essa drástica separação a melhor saída, a sensação de renúncia ao conforto do lar doía o suficiente.

Eu parecia às vezes estar tomando posse do futuro. De fato, por direito de idade, o devir já me pertencia. Entretanto, a incógnita da vida ainda por viver me pesava, enquanto descia as escadas do meu pai, sem saber aonde ir.

Tomei a direção da praia. Ao chegar à Avenida Atlântica, o sol nascia. Havia uns tons esquisitos no horizonte. Não era bem cor de maravilha, nem lilás. Mas uma mistura cromática que abrasava a mente e que, por isso, estonteava um pouco. Segurei-me num poste, e, aos meus pés, um cão mijava.
Nunca tinha sentido uma sensação assim diante da aurora. Eu parecia estar com a minha ex-namorada no cinema, dando o primeiro beijo na menina, tonteando mais um pouco, levemente trêmulo. Perguntei-me para onde me levaria tal excitação, tão disforme para essas horas tenras, quando a maioria ainda dorme…

Olhei para as janelas da Atlântica e não deu outra: todas sombrias, ou com cortinas cerradas. Por que ali eu era essa criatura em descompasso com o sono dos outros? Por que vivia aquele ardor, enquanto o adormecimento imperava em volta?

Eu deveria entrar nas águas para me esfriar. Vi um surfista se dirigir ao mar. Era um cara loiro, com a prancha incrementada na mão. Notei a tatuagem em sua canela, mas não pude decifrar assim de longe qual seria a imagem.

Aproximei-me um pouco mais, precisava de passos largos, visto a pressa que ele parecia ter. Na canela havia um tigre, embaixo da figura tinha uma palavra, Gustavo. Gustavo eu me chamava também.

Olhei-o numa pausa longa… Olhei-o como se olhasse a mim próprio, orgulhoso do meu porte de esportista, o meu desembaraço em andar pela areia, alheio às dores da espécie.

Ele chegou à parte mais úmida da praia, firmou a prancha de cabeça na areia e sentou. Eu estava perto dele, meio bobo, sem saber o que pensar ou fazer, certo, era mais ou menos o meu sentimento perene… De súbito, sem que eu mesmo pudesse controlar, chamei seu nome, Gustavo!

O surfista olhou em todas as direções, olhou de cima, até aterrissar os olhos em mim. Estremeci, como se estivesse recebendo uma aparição.

Ele era um antigo colega de escola. Fazendo graça, deu passos de uma dança ornamental e veio me abraçar, tipo um mestre-sala. Sim, nos abraçamos… Agora, depois da aurora exuberante, uma garoa começava a cair. Ele viera viver no Rio, morava com uma tia, na Raul Pompeia.
[…]

 

 

Trecho de uma
narrativa longa, em princípio, para o público juvenil. De juvenil tem apenas o fato de o protagonista ter seus 15 anos. A linguagem é no mesmo tom de meus outros livros. A narrativa sai no começo de 2010 pela Editora Scipione. Noll