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Representações da cidade de Salvador no século XVII

Aos negros era permitido adaptar em seus guetos a lambança de água e farinha dos entrudos - Jean Baptiste Debret

Em uma carta de 20 de junho de 1662 para o rei D. Afonso VI de Portugal, mais de cem senhores de engenho e lavradores de cana baianos acusam o individualismo do secretário do Estado do Brasil, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do famoso orador sacro, Pe. Antônio Vieira. Alegando defender o “bem comum da República” ameaçado por Ravasco, afirmam que “[…] quem diz Brasil diz açúcar e o açúcar é a cabeça deste corpo místico que é o Brasil”. O enunciado é uma síntese feliz de metafísica escolástica, teologia-política católica, direito canônico e negócio mercantilista [1]. Nele convergem enunciados contrarreformistas de jesuítas e dominicanos que, nos séculos XVI e XVII, definiram as relações sociais como unidade corporativa de “bem comum” obtida pela concórdia dos interesses particulares integrados pacificamente como “corpo místico” subordinado ao rei no pacto de sujeição.

 

Aos negros era permitido adaptar em seus guetos a lambança de água e farinha dos entrudos - Jean Baptiste Debret

Neste texto, trato de categorias retóricas e teológico-políticas que modelam a “representação” [2] como fundamento e mediação de representações particulares de ordens sociais e indivíduos nesta carta e em atas e cartas do Senado da Câmara de Salvador [3] na segunda metade do século XVII [4]. “Representação” é uma categoria histórica substancialista ou a forma cultural específica da “política católica” portuguesa que estrutura as práticas discursivas e não discursivas da Bahia nesse tempo. Categoria folheada ou tabular, condensa articulações e referências de sistemas simbólicos anteriores e contemporâneos como cerrada unidade de metafísica, teologia, política e retórica doutrinadas escolasticamente. Inventada mimeticamente por procedimentos retóricos, a representação determina as representações particulares como produção da presença de princípios teológico-políticos constitutivos das formas das posições sociais de estamentos e indivíduos “aunados” ou unificados como “corpo místico” da Bahia subordinado ao rei no pacto de sujeição. As representações evidenciam que a tipologia das formas inventadas retoricamente pela representação corresponde à topologia das posições sociais doutrinadas teológico-politicamente como representação. Nas práticas de representação desse tempo, a (des)constituição retórica do tipo prova a (im)propriedade política do topos.

Todas as representações mediadas pela representação são produzidas como imagens fornecidas à imaginação dos autores pela memória dos usos socialmente autorizados dos signos. A representação é metafísica e pressupõe que o atributo do Ser divino se aplica às coisas da natureza e aos eventos da história, tornando-os convenientes e semelhantes, e, simultaneamente, diversos e diferentes. Todos são convenientes ou semelhantes pela sua ordenação em relação ao Um ou Máximo, como então se diz com Tomás de Aquino, pois todos são seres criados como efeitos pela mesma Causa. Logo, todos são análogos e, em cada um deles, como análogo, a Unidade divina é posta como definição hierarquizadora dos outros. Todas as palavras que figuram os conceitos dos seres se correspondem pela semelhança que os liga como conceitos de seres criados pela mesma Coisa, podendo valer umas pelas outras como signos reflexos. Como todos os seres e todas as palavras são apenas semelhantes, ou seja, não idênticos, todos são obviamente diferentes, o que permite, nas artes e nas formas de dicção aguda, produzir relações acumuladas, aparentemente incongruentes, entre coisas e conceitos distanciados. A representação pressupõe e figura teologemas testamentários que definem a eficácia dos conceitos representados como manifestação da luz da Graça. O meio material da linguagem é percebido, na experiência da representação, como evidentia da Presença. Na pintura, na escultura, na arquitetura, na prosa e na poesia, a representação satura as formas não como “barroco”, conceito estético neokantiano inexistente, mas como acúmulo compendiário que exemplifica a presença da Luz na multiplicidade dos conceitos e coisas aproximadas nas formas. A representação é política e suas formas encenam as posições hierárquicas do sujeito de enunciação, dos tipos representados e do destinatário nos estilos. Sempre é posição social integrada na hierarquia, sendo composta e definida como representação testemunhada pelo destinatário e pelos públicos empíricos também constituídos como representação. A forma do “eu” da enunciação, do destinatário textual e das matérias representadas é mediada pelas categorias que constituem a representação: identidade, analogia, semelhança. A forma do “eu” da enunciação e dos destinatários não é psicologicamente expressiva, mas retórica, inventada pela aplicação de paixões e caracteres aristotélicos. As formas efetuadas são substancialistas e efetuam o que a doutrina escolástica contemporânea prescreve: o desenho, “fantasma”, conceito ou imagem mental que os homens fazem das matérias a que aplicam o pensamento, evidencia a participação análoga ou proporcionada da alma na substância metafísica de Deus figurada em conceitos teológico-políticos da doutrina católica do poder. A doutrina prescreve que o Estado do Brasil é um “corpo místico” de vontades subordinadas ao rei no pacto de sujeição. Reitera, contra Maquiavel e Lutero, que as leis positivas existentes são legítimas porque expressam a lei natural da Graça que reflete a lei eterna de Deus.

 

Escravos na moenda de açúcar. Gravura de Jean Baptiste Debret, 1835.

As refrações da representação na Bahia do século XVII põem em cena os direcionamentos particulares e polêmicos do sentido nas práticas locais, sendo ativamente constitutivas da sua realidade. Em geral, os estudos brasileiros que utilizam as atas e as cartas da Câmara e mais resíduos coloniais como documentos de trabalho não se preocupam com a historicidade dos seus regimes discursivos. O pouco e mesmo nenhum intere s se que demonstram pela historicidade do simbólico decorre da concepção instrumental da linguagem como reprodução, representação segunda ou reapresentação de coisas primeiras dadas como pré-formadas ou totalizadas como “realmente” reais, verdadeiras, históricas e sociais. O empirismo pode ser salutar, mas o excesso dele é um idealismo que ignora que discursos são práticas tão reais quanto o tráfico negreiro ou a alimentação.

As representações da Bahia do século XVII são variantes ou produtos de usos transformadores de categorias e preceitos de estruturas doutrinárias heterogêneas. A quantificação, a seriação e o cruzamento dos seus regimes discursivos ficcionais e não ficcionais permitem inventar homologias formais e funcionais que remetem aos modelos, autoridades, preceitos e valores antigos e contemporâneos emulados nas representações. Com as homologias estabelecidas na diversidade dos usos particulares, é possível constituir de modo provável os modelos retórico-poéticos e teológico-políticos da sua invenção e descrever os condicionamentos sociopolíticos da sua destinação prática nas diversas circunstâncias hierárquicas, bem como as suas deformações incontroláveis nas apropriações de públicos empíricos contemporâneos. As homologias evidenciam a recorrência de princípios doutrinários partilhados polemicamente na multiplicidade das representações. Os princípios definem um modo histórico de ser, pensar e agir próprio da “política católica” implantada na colonização do Estado do Brasil que é possível sintetizar pela categoria “representação”. Ela põe em cena a presença de um corpo sacramental, um corpo místico, visível, audível e legível nas espécies que o dissimulam [5].

Neste texto, uso as cartas da Câmara de Salvador não para reconstituir uma suposta “realidade histórica da Bahia do século XVII”, mas para tratar de convenções simbólicas também históricas que compõem a representação do “corpo místico” nas representações desse tempo. Em todos os casos, a conceituação das categorias retórico-teológico-políticas da representação na Bahia do século XVII deste texto prevê três procedimentos, à maneira de Bakhtin/Voloshinov. Pelo primeiro deles, não se separa o conteúdo da representação da realidade material do signo. Pelo segundo, não se isola o signo das formas concretas da sua comunicação social. Pelo terceiro, não se isola a comunicação e suas formas das práticas das quais elas são contemporâneas.

 

 

Negra e Negro da Bahia, Rugendas

As cartas do Senado da Câmara de Salvador escritas entre 1660 e 1700 permitem inferir que, na segunda metade do século XVII, as crescentes barreiras alfandegárias impostas à distribuição e venda dos açúcares brasileiros nos mercados europeus pela Inglaterra, França e Holanda, que então dominam sua produção nas Caraíbas e no Oriente, fazem os estoques do produto abarrotar os armazéns de Lisboa. A partir de 1675, a Coroa determina a redução dos preços para torná-los competitivos. A baixa do preço afeta imediatamente as folhas de pagamento do clero e da burocracia no Reino, com efeitos imprevistos no Brasil: eleva o valor dos escravos e os preços do fornecimento de materiais, cobre, ferro, breu e treu, indispensáveis aos engenhos da Bahia; descapitaliza os senhores de engenho, leva-os ao crédito, à impossibilidade de saldar dívidas, às falências e ao “fogo morto”; afeta a cobrança dos tributos, favorece a especulação dos mercadores; intensifica a miséria da população cronicamente pobre. A crise brasileira da produção de açúcar é acompanhada da desvalorização da moeda metropolitana de prata e ouro. Fixada em um valor facial inferior ao da moeda circulante no Brasil, causa a evasão do metal para Portugal e a elevação dos preços dos gêneros metropolitanos. A crise atinge o auge por volta de 1688. Após a desvalorização espanhola da pataca em 20%, a moeda portuguesa de ouro e prata torna-se mais vulnerável ao contrabando e a outras práticas de desvio, como o corte de seus bordos e a fundição das aparas pelos ourives baianos, que as transformam em metal e objetos usados em Angola como moeda no tráfico negreiro.

 

A evasão da moeda e sua fundição atingem todo o Império, principalmente a partir da metade do século XVII, quando a prata peruana de Potosí contrabandeada de Buenos Aires deixa de chegar à Bahia. Toda a segunda metade do século vive a crise da falta da moeda circulante, acumulando-se as medidas para saná-la. Carl A. Hanson demonstra que as Cortes de Lisboa de 1668 propuseram desvalorizar a moeda de ouro em 20% como meio de reduzir a quantidade do metal precioso necessária para pagar salários de mercenários franceses e ingleses que levavam suas montarias para Portugal. O sustento e o transporte dos animais somavam-se aos salários dos soldados, que orçavam por 100 mil cruzados mensais [6]. Propõe-se então que, aumentando-se o valor facial da moeda de ouro pela cunhagem de moedas com valores superiores ao valor intrínseco, salva-se um quinto do metal que foge para o estrangeiro. Os reajustes monetários fazem parte da legislação protecionista intensificada pelo conde da Ericeira na década de 1680. Em 1663, a moeda de prata é desvalorizada em 25%. Por volta de 1680, a Câmara de Lisboa demonstra serem necessários 160 réis para comprar um artigo que se compra por 100 na Inglaterra. Em 1668, como a evasão do metal continua, a Junta e o Conselho alegam que as reservas de ouro e prata estão mais reduzidas com a desvalorização, uma vez que os comerciantes estrangeiros colocam mais facilmente seus produtos em Lisboa, vendendo-os em maior quantidade e levando mais prata e ouro para seus países [7].

Na década de 1680, apesar das penas governamentais que incluem multas pesadas e degredo de quatro anos dos infratores em Angola, o corte e a fundição se intensificam na Bahia. A desvalorização de 1688, que acompanha a desvalorização espanhola de 1686 da pataca, torna mais precária a situação no Brasil. Por ordem da Coroa, a moeda brasileira deve circular de acordo com seu valor intrínseco, não com o valor facial. A cotação da moeda metropolitana com um valor inferior ao da moeda do Brasil acelera a evasão da prata e ouro coloniais. A falta crônica de moeda corrente obriga os senhores de engenho a fazer empréstimos a crédito, garantindo as transações com a hipoteca das propriedades ou parte delas e, principalmente, com as safras. Torna-se rotineira a prática de garantir o empréstimo com a colheita seguinte, cujo preço é fixado antecipadamente pelos negociantes abaixo do preço do mercado, causando a “murmuração” dos senhores de engenho contra eles [8]. Então, muitos credores executam as dívidas nos escravos.
Em 14 de fevereiro de 1693, os oficiais da Câmara de Salvador determinam que nenhum ourives possa lavrar prata sem que primeiro venha à Câmara registrá-la, declarando o nome do destinatário da obra. A Câmara prescreve medidas severas: trinta dias de cadeia para o ourives que não o fizer e 6 mil-réis de recompensa para o denunciante. A murmuração aumenta entre os oficiais mecânicos, bem como as denúncias contra eles motivadas pela cobiça. As penas da Câmara são mais severas para os ourives que fazem obra de prata não registrada. Executa-se neles a pena da Ordenação, Livro V, título 12, parágrafo 5: dez anos de degredo na África, com perda da metade da fazenda [9]. A lei atinge não só os que fundem moeda, mas também todos os que a mandam fundir. A mesma prata lavrada a mando de senhores compra escravos em Angola para suprir a falta crônica de mão de obra que diminui os lucros senhoriais, principalmente após as epidemias da “bicha”, a febre amarela, que dizima milhares de escravos no Nordeste entre 1686 e 1690. Então, a murmuração da plebe contra o fisco; as operações monopolistas de negociantes detentores do estanco do sal e gêneros metropolitanos; a competição de senhores de engenho com a Companhia de Jesus; os atritos da Câmara e do Tribunal da Relação; a rebelião dos soldados do Terço da Infantaria; as infrações das pragmáticas de vestuário, cortesia e precedências; a destruição de engenhos do Recôncavo por índios inimigos; o medo dos ataques de piratas franceses, ingleses e holandeses; as assuadas, bebedeiras, feitiçaria, calundus, rebeliões e quilombos de negros e mulatos; as arbitrariedades e corrupção de governadores; os casos de “insulto atroz”; a proliferação de vadios e prostitutas; as brigas de senhores de engenho e lavradores de canas por lenha e terras; os escândalos do convento de Santa Clara do Desterro; os casos de blasfêmia, de práticas judaizantes, de sodomia e mais crimes contra naturam desestabilizam a hierarquia, que se recompõe para ser novamente transgredida. Nas atas e cartas da Câmara, os eventos configuram a desordem que desagrega o “corpo místico da Bahia”, traduzida por expressões como “ruína de todo este povo”, “perigo de todo este Estado”, “miserável estado deste povo”, “clamor geral”, “clamor dos pobres”, “sentimento geral”, “dor geral”, “lágrimas das viúvas”, que hiperbolizam pateticamente o narrado. São abundantes então as informações sobre a chegada de navios negreiros vindos de Angola e da Costa da Mina com a peste que causa a morte em massa de africanos; sobre execuções de dívidas dos senhores de engenho; sobre rebeliões de escravos e seu controle através da jeribita, a aguardente de cana. A comemoração festiva com luminárias e a missa solene em agradecimento a Deus pela destruição do quilombo de Palmares efetuam índices de alívio pela restauração da ordem na ata que as registra [10]. A representação fundamenta e medeia as significações dessas representações, pondo em cena categorias teológico-políticas da “política católica”, como “corpo místico”, “corpo político”, “único todo unificado”, “cabeça”, “membro”, “bem comum”, que hierarquizam as práticas discursivas e não discursivas do lugar.

Um topos clássico da historiografia brasileira que se ocupa da colônia é a comparação dos processos de colonização adotados na América Portuguesa e na América Espanhola. Geralmente, a comparação é desfavorável para Portugal. Sérgio Buarque de Holanda propôs que a colonização espanhola se caracterizou pelo que faltou à portuguesa, a construção rigorosamente planejada de núcleos urbanos que reproduzem as cidades de Castela como imposição do domínio militar, econômico e político do poder metropolitano. Desde o século XV, as iniciativas portuguesas na África e na Ásia se caracterizaram pela feitorização da riqueza imediata, o que conferiu aos núcleos coloniais caráter de postos de exploração comercial que pode lembrar a colonização fenícia e grega da Antiguidade [11]. A fundação de vilas e cidades no Brasil dos séculos XVI e XVII dá continuidade à prática mercantilista das feitorias africanas e asiáticas [12]. A classificação do Brasil e do Estado do Maranhão e Grão-Pará como “empório” em papéis portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII é indício dessa feitorização que fazia da colônia um lugar de passagem de onde tudo se tirava e praticamente nada se punha. Diferentemente da colonização espanhola, a portuguesa aproveitava as facilidades da comunicação comercial por mar e via fluvial. Seu caráter quase que exclusivamente marítimo já era apontado como defeito por Frei Vicente do Salvador em um texto célebre de 1627, no qual compara os portugueses a caranguejos que arranham o litoral sem penetrar o território [13].

Quando a lavoura açucareira foi implantada e o tráfico de escravos africanos se tornou rendoso para a Coroa, os núcleos urbanos do litoral funcionaram como sedes da exportação dos produtos tropicais para a Europa, não conhecendo as iniciativas culturais adotadas na América Espanhola já no século XVI, como a imprensa e a Universidade [14]. Praticada como feitorização, a colonização era mais predatória que outras colonizações: tirava tudo e não punha praticamente nada, a não ser as instituições que garantiam a produção, como as religiões e a milícia. Já se lembrou que às vezes as vilas e cidades eram erguidas sobre antigas povoações indígenas. O imediatismo mercantilista levaria a aproveitar os traçados originais, que fariam as povoações crescer sem planejamento aparente. Contrariamente a essa opinião, Paulo Santos, historiador da arquitetura colonial, demonstrou que, no caso de Salvador e outros núcleos, como o Rio de Janeiro, houve diversos projetos de edificação enviados do Reino ou feitos na Colônia [15]. Os projetos repetiam padrões medievais e ordenavam o espaço urbano levando em conta principalmente a defesa e as atividades mercantis. Como representação, o espaço urbano era qualificado, quase sempre, como espaço simbólico que mimetizava a noção escolástica de “corpo político”, posicionando-se os órgãos elevados da “cabeça” representativa do poder real – as instituições administrativas, judiciais e religiosas – em posição dramaticamente privilegiada em relação aos órgãos inferiores dos “membros”. É o que se observa, em Salvador, na localização dos principais órgãos do temporal e do espiritual na Cidade Alta, construída sobre o platô de uma falésia, e na disposição das atividades da construção naval, da Alfândega, da alimentação e da escravaria na Cidade Baixa junto ao mar.

Desde a fundação da cidade em 1549, o porto de Salvador foi o centro do eixo das rotas horizontais do Atlântico Sul e das rotas verticais do comércio costeiro. Mantinha contato contínuo com Pernambuco, Paraíba e Sergipe, ao norte, e Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Buenos Aires, ao sul. Recebia navios que voltavam para Portugal vindos da Índia, navios negreiros de Angola, da Costa da Mina e da Guiné, e navios mercantes que saíam de Lisboa com o azeite, o vinho, o bacalhau e mais “drogas”, voltando para o Reino com pau-brasil, peles, animais, índios, tabaco, açúcar e outros produtos tropicais. A maior parte da renda da cidade provinha dos impostos sobre o comércio do açúcar e o tráfico negreiro [16].

Filhas de santo

No final do século XVII, Salvador e o Recôncavo tinham cerca de 35 mil habitantes, dos quais 20 mil eram escravos. As vilas de Maragojipe e Jaguaripe, no sul do Recôncavo, eram centros produtores de mandioca. Santo Amaro era um porto para a zona do açúcar. A mais importante dessas vilas, Cachoeira, plantava tabaco. Situada na foz do rio Paraguaçu, era a principal via de “entrada para o sertão”. Ao sul do Recôncavo, as vilas de São Jorge dos Ilhéus, Boipeba, Camamu e Cairu plantavam mandioca, cuja farinha substituía o trigo na alimentação de Salvador. No interior, ao norte, na margem direita do rio São Francisco, desenvolvia-se a pecuária [17].

Os solos de massapé ou terra preta do Recôncavo são férteis, adequados ao cultivo de plantas tropicais, cana-de-açúcar, fumo, mandioca e algodão. Vários rios deságuam na baía e sua água era fundamental para mover as moendas dos engenhos. Na primeira década do século XVII, havia cerca de 63 deles no Recôncavo e nas ilhas da baía de Todos os Santos. No final do século, eram mais de 100. Seus proprietários, conhecidos como “senhores de engenho”, recebiam terras hereditárias por doações da Coroa chamadas “sesmarias”. Um primeiro grupo de senhores de engenho e lavradores de canas obteve terras entre 1550 e 1560, logo após a fundação da cidade; uma segunda leva deles aportou na Bahia em 1580, quando o açúcar estava em baixa e havia facilidade de aquisição de terras. De 1620 a 1660, constituiu-se um terceiro grupo, principalmente após a invasão holandesa de 1624, quando a destruição de engenhos e lavouras, a falta de capital e crédito, as falências, o desânimo e as mortes facilitaram a aquisição de terras aos militares jovens que tinham vindo de Portugal para combater os invasores, e a famílias que haviam fugido da ocupação batava de Pernambuco, como os Argolo, Ferrão, Brandão Coelho, Pires de Carvalho etc.

Quase sempre brancos ou assim considerados, os senhores de engenho baianos da segunda metade do século XVII disputavam o poder local e desejavam a nobreza, demandando a legitimação de seus foros, muitas vezes falsos, que conferiam representação de fidalgo. O desempenho da função de oficial da Câmara, a manutenção de filhas como freiras de véu preto no Convento de Santa Clara do Desterro, a provedoria na Santa Casa de Misericórdia, a ostentação e gastos suntuários com cavalos de raça, arreios de prata, roupas de seda e joias de ouro dos escravos Mina nas missas de domingo produziam representação, confirmando sua posição na sociedade local como nobreza dos “melhores” [18]. Até a década de 1680, quando a febre amarela trazida nos navios negreiros chegados do Golfo da Guiné e de Angola tornava a cidade perigosa, passavam a maior parte do tempo em Salvador, devido à proximidade dos seus engenhos no Recôncavo e nas ilhas da baía de Todos os Santos. Por mar, ia-se de Santo Amaro a Salvador em cerca de duas horas. Na cidade, viviam em casas assobradadas, com portais de pedra lavrada e cômodos espaçosos, cuja altura disputava a representação de “melhor” com as casas vizinhas. Sua participação nos negócios da Câmara e da Igreja indica que muitas vezes confundiam a administração dos negócios públicos da cidade com seus interesses particulares ligados ao açúcar. Como “aristocracia do açúcar”, os senhores de engenho tinham poderes praticamente absolutos sobre os arrendatários, lavradores de cana, trabalhadores braçais brancos e escravos negros e índios [19].

Stuart B. Schwartz demonstrou minuciosamente que no final do século XVII a Câmara de Salvador era dominada pelos interesses dos senhores da terra, especialmente os do açúcar. Embora em seus quadros houvesse a representação mercantil, esta só aumentou a partir do século XVIII. Entre 1680 e 1729, a distribuição dos oficiais da Câmara tem 50,8% de senhores de engenho, 12,7% de lavradores de canas e 16,6% de outras atividades relacionadas ao açúcar, o que fornece 80,1% de interesse direto do setor açucareiro [20]. Quando se cruza a narração das cartas com testemunhos de outros grupos de interesse do lugar, como a Companhia de Jesus e o Tribunal da Relação, a sempre alegada defesa do “bem comum” também se evidencia como defesa da generalidade dos interesses particulares dos senhores de engenho em conflito com as representações de outros grupos e indivíduos, como é o caso da carta contra Bernardo Vieira Ravasco. Nas cartas, volta e meia explode o conflito entre a Câmara e o Tribunal da Relação. A Câmara defende a mediação dos Juízes Ordinários locais, apesar da limitação dos poderes destes, para substituir o recurso legal moroso, caro e incerto do Tribunal da Relação por vias mais seguras [21]. Nesses conflitos, a Câmara e o Tribunal da Relação são instâncias em que desejos e rivalidades dos “homens-bons” locais recebem representação institucional. A discussão administrativa e judiciária de abusos de atribuições de ambas as instituições e de seus membros também significam lutas por demarcação de terras e pela lenha já escassa para as moendas ou execução de dívidas, penhora de safras, disputas de heranças de família, desavenças e vinganças pessoais.

A Câmara de Salvador foi estabelecida no tempo do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa (1549-1553) [22]. Muitos de seus documentos anteriores a 1624 foram destruídos na invasão holandesa desse ano. No século XVII, a Câmara era composta de dois Juízes Ordinários, conhecidos como juízes da vara vermelha; três Vereadores e um Procurador da Cidade ou Procurador do Conselho. Todos eram chamados de “Oficiais da Câmara” e a pragmática de cortesia lhes atribuía o tratamento de “Vossa Mercê”. Os Juízes Ordinários tinham funções judiciárias que desempenhavam dentro de limites, principalmente depois que o Tribunal da Relação foi instalado em 1609 e seus juízes, que representavam diretamente os interesses da Coroa, passaram a aplicar a justiça, conflitando com os interesses de senhores de engenho. Os Vereadores deliberavam sobre os negócios públicos do interesse local, desempenhando funções propriamente administrativas, como a arrecadação de tributos, a fixação de preços de gêneros e a conservação da cidade. O Procurador da Cidade tinha funções executivas e representava os interesses da Bahia nas cortes de Lisboa. O cargo de “oficial da Câmara” conferia distinção, pois os oficiais eram escolhidos entre os “homens-bons” da Cidade, aqueles que “por sua pessoa, partes e qualidades” eram tidos como aptos para ocupá-lo. Todos eles eram definidos como pessoas “a quem tocava requerer o bem comum e atender à prevenção dele por serem oficiais que representam a república”, como se lê em uma petição que senhores de engenho do Recôncavo dirigiram à Câmara em 1632.

Os trabalhos da Câmara começavam em 1º. de janeiro, quando os vereadores que terminavam o mandato do ano anterior se reuniam e, com a presença do Ouvidor-Geral, tiravam do “pelouro”, urna de couro com uma abertura onde se depositavam os votos, os nomes dos oficiais do mandato seguinte [23]. Além desses oficiais, havia os almotacés, fiscais cuja função era fixar preços de mercadorias e controlar pesos e medidas; o escrivão ou secretário, funcionário vitalício encarregado da escrita de documentos; o porteiro, que apregoava em voz alta, na praça, as decisões da Câmara; e o Ministro da Cadeia, nome pomposo do carcereiro. Em 21 de maio de 1641, a Câmara determinou que cada grupo profissional da cidade teria um mestre ou chefe com a função de controlar a atividade de seus pares, fixando o preço do serviço prestado e avaliando as obras executadas [24]. Determinou-se que seriam doze os mestres. Reunidos, elegeriam um Juiz do Povo e um escrivão para representarem os interesses das classes mecânicas. A ação dos Juízes do Povo frequentemente colidia com interesses de outros “homens-bons”, seus pares vereadores da Câmara, e com os de negociantes: nas decisões sobre a fabricação e consumo da aguardente (1646); nos debates sobre a sonegação de impostos pelo Ouvidor-Geral da Armada (1648); nas petições da população contra os “tratantes”, negociantes que vendiam mercadorias com preços extorsivos (1668); na questão dos ourives que aparavam os bordos de moedas de prata e ouro para fazer baixelas usadas como moeda na compra de negros em Angola ( 1680-1700); na rebelião popular contra a nova taxação do sal (1711). Em 1645, os oficiais da Câmara impediram que o Juiz do Povo assinasse as atas da instituição [25].

A representação do “público”: o “bem comum”

Os dois gêneros de discursos institucionais, as atas e as cartas do Senado da Câmara da cidade escritas entre 1650 e 1700, são úteis para observar o duplo movimento de ruptura e reconstituição da representação nas representações do lugar. Ambos diferem pelo gênero e pela finalidade da escrita. As atas são discursos de gênero histórico escritos como crônica de eventos passados que foram objeto de decisões da Câmara. A memória estereotipada que se deposita nelas compunha um arquivo de casos armazenados como jurisprudência de decisões exemplares que eram consultadas em novas situações. Diferentemente do tempo gasto das atas, a temporalidade das tópicas tratadas nos enunciados das cartas é a do presente da escrita. A maioria das cartas é de gênero negocial e deliberativo, pois tratam de negócios do presente cuja decisão também interessa ao “bem comum” futuro. Têm duplo registro discursivo: são miméticas ou representativas e judicativas ou avaliativas. Narrativamente, aplicam preceitos e categorias retóricas e teológico-políticas para compor representações de instituições, grupos, indivíduos e eventos de Salvador pela perspectiva do lugar institucional dos oficiais, que as assinam unificados como um sujeito coletivo, “Senado da Câmara”. Judicativamente, são performativas: o sujeito coletivo que as enuncia afirma subordinar seu lugar institucional ao lugar do destinatário, o rei, reiterando a vassalagem; e negocia com ele, para persuadi-lo da verdade dos enunciados como adequação ao “bem comum”.

As tópicas deliberativas e epidíticas da invenção das cartas, a disposição das suas partes e a elocução dos seus estilos evidenciam a aplicação de preceitos retóricos de uma prática protocolar de produção de papéis oficiais que o secretário provavelmente aprendeu com outro letrado ou no colégio local da Companhia de Jesus. Os preceitos aplicados à redação não são exteriores, mas constitutivos dos temas, das partes e dos estilos da correspondência. O que as cartas informam está invariavelmente em função do que o gênero usado prescreve e permite significar [26]. Assim, suas partes – salutatio, exordium (captatio benevolentiae), narratio (argumentatio), conclusio, petitio, subscriptio – são as definidas na ars dictaminis medieval, como as Rationes dictandi do chamado Anônimo de Bolonha, e nos modelos de correspondência sistematizados em tratados do século XVI, principalmente Brevissima formula (1520), de Erasmo de Roterdã, e Epistolica institutio (1590), de Justo Lípsio, além de preceitos epistolográficos de Demétrio de Falero, Aftônio, Hermógenes, Cícero, Sêneca, Quintiliano, Torquato Tasso, Juan Luis Vives e Pierre Fabri então usados no ensino local do colégio da Companhia de Jesus.

Dramatizando representações dos três estados da população da cidade, as cartas desenham uma cartografia móvel de posições hierárquicas pautada pela dupla adequação, representativa e pragmática, dos enunciados ao destinatário e às tópicas, tipos e temas representados. Aplicando os decoros hierárquicos, evidenciam os preceitos notariais da ars dictaminis. Nunca são jocosas, pois seu destinatário é de condição absolutamente superior. Para informá-lo convenientemente das coisas da Bahia, aplicam o estilo médio à narração das matérias, fazendo pequenas descrições ornadas de tipos e acontecimentos locais; simultaneamente, inventam o sujeito da enunciação aplicando caracteres graves que tornam os juízos sobre os eventos da cidade verossímeis ou evidenciadores da sua prudência de homens “de representação” dedicadíssimos aos negócios da coisa pública. Assim, as cartas aplicam os decoros próprios das posições sociais do remetente, dos tipos representados e do destinatário, demonstrando o conhecimento sistêmico das adequações do texto escrito aos níveis hierárquicos de conveniência discursiva e extradiscursiva. A circularidade de código das adequações é virtude política, pois faz a própria troca de correspondência ser elemento reprodutivo da subordinação hierárquica.

Observa-se nas cartas o que foi apontado por Petrucci: são testemunhos gráficos produzidos pelo poder público, por isso incluem signos da solenidade que os oficiais da Câmara atribuem à sua função, que os põe em contato direto com a Coroa [27], distinguindo-os da população de Salvador como “melhores”, “homens-bons” ou “gente de representação”. Todas as cartas alegam subordinar o relato ao interesse maior da “razão de Estado”, defendendo e aperfeiçoando a unidade do “bem comum” do “corpo místico da Bahia”. Subordinando a escrita ao “bem comum”, fazem narrações reportadas em que citam narrativas, declarações, protestos e pedidos da população, interpretando-as como eventos em que uma reivindicação justa se fez ouvir ou em que se cometeu uma nova infração.

Referindo-se à cidade, tentam obter assentimento para o que expõem, construindo argumentos com provas e exemplos que demonstram sua justiça também quando recusam cumprir a determinação real. Quase sempre, descrevem de maneira vívida, patética, as condições de vida da população para saturar os argumentos com exemplos que visualizam a referência para torná-la retoricamente persuasiva:

“[…] além das Razões que a Sua Majestade se têm Representado, e das que por parte dos Braços Eclesiásticos e Nobreza, nesta ocasião também se alegam, que todos propomos, e aprovamos, atendendo mais em particular no último, e mais miserável estado nosso, do qual todavia se compõe o grande Corpo desta República, não deixaremos de expor aos Clementíssimos olhos de Sua Majestade como Pai, e Príncipe nosso, o que desta grande falta de dinheiro padece este seu Povo. Primeiro: uma grande, e quase extrema necessidade do necessário para sustento da vida, porque os Nobres, e Eclesiásticos, vivem, ou das Suas Fazendas, ou das suas Côngruas, e suposto tenham grande dano e detrimento na falta da Moeda é segundo mais ou menos a viver com mais limitação, porém o Povo, que somente se alimenta do trabalho de suas mãos, e do suor de seu Rosto nas obras mecânicas, e faltando o com que se mandem fazer, ou já feitas, com que se pague o que nelas se obrou, ficam e andam os Oficiais famintos e ociosos, e neste estado pela maior parte se acha o Povo da Bahia, depois que nela falta a moeda. Segundo, que por esta causa as Tendas de muitos Oficiais trabalham muito menos do que costumavam, e muitas de todo se fecham, porque com a falta da moeda cada um se restringe, e remedeia com menos obra do que pede a Sua necessidade, de que Resulta pagarem-se as obras por menos preço porque sobejam em grande número os Oficiais e Obreiros, e pela maior parte andam vagabundos, porque os que haviam de ocupá-los, como as obras são menos se medeiam com menos obreiros por não poderem pagar mais; outros depois de trabalharem, ficam sem paga do Seu trabalho, com que se vão, e ficam impossibilitados a exercitar seus Ofícios, e conseguintemente a viverem vadios, o que mais claramente se vê no Serviço dos Engenhos, e mais Fazendas, porque, impossibilitados os Senhores deles a pagar os jornais que são muitos a dinheiro, pelo não terem, nem havê-lo despedem seus serventes, e ficam impossibilitados para as Fábricas do Açúcar. Terceiro: porque esses tais vendo que trabalham sem fruto, morrem de fome, e se metem pelo interior do Sertão desta Cidade, que é imenso, e hoje muito povoado de Currais maiores por onde discorrem fazendo mil insolências a que os obriga, por uma parte a fome, e necessidade, por outra o pecarem sem medo da Justiça a Divina, por que a não veem, e a Humana não receiam porque lhe fica muito longe” [28].

A voz da Câmara é representação institucionalmente autorizada a fazer ouvir vozes de outras representações dos três estados do corpo político da Bahia. Aqui, a narração particulariza minuciosamente os males que a falta da moeda circulante causa aos oficiais das “mecânicas”, as corporações de ofícios – falta de pagamentos de obras executadas, falta de novas encomendas, desemprego, ociosidade, vadiagem, fome e desespero –, reafirmando um pressuposto doutrinário do “corpo místico” da Bahia: o mal que ataca um membro corrompe todos. É o caso dos membros das ordens mecânicas cuja miséria atinge outros membros superiores, os senhores de engenho incapacitados de pagar as diárias dos trabalhadores, e inferiores, os empregados dos mestres nas corporações de ofícios, ociosos e famintos. A miséria desagrega o corpo político da Bahia, multiplica-se nas misérias morais e espirituais de membros que se desgarram dele. Nesse tempo, o termo “sertão” qualificava o território imediatamente exterior aos termos geográficos e limites jurisdicionais da cidade. Como espaço exterior ao corpo político, era vazio e indeterminado, sem leis cristãs, dominado por feras, bárbaros antropófagos e o demônio. Assim, os homens que em Salvador eram vagabundos sem trabalho, afirma a Câmara, tornam-se criminosos nos currais do sertão. Não sendo atingidos pela justiça humana da cidade, pecam mortalmente, “sem medo da Justiça a Divina”.

A falta de moeda fere mortalmente a parte principal dele, a “cabeça” do açúcar, de que depende a integridade das almas ameaçadas ou já perdidas. Segundo os oficiais, os negociantes colaboram na sua desagregação, pois lucram com a falta de moeda, fazendo o dinheiro render apenas na venda das mercadorias que trazem do Reino: os cinco cruzados com que compraram o bacalhau em Lisboa tornam-se vinte cruzados na Bahia [29]. A Câmara novamente evidencia o preceito corporativo: não é contrária ao lucro, mas contra a usura, que classifica como pecado de partes autônomas e corruptoras do “único todo unificado”. O preceito da Ética a Nicômaco interpretado catolicamente orienta o sentido do enunciado: vitupera-se e reprime-se o abuso que corrompe o uso consagrado por manter as partes e o todo do corpo político “com saúde”, como se diz então.

Uma carta de 1689 pede ao rei que ordene a cunhagem de moedas de vintém, dois vinténs, meio tostão, três vinténs, quatro vinténs e tostões: “[…] que tenha toda de valor intrínseco 25% ou 30% menos, para assim se não poder levar”. A Câmara afirma representar “[…] a geral queixa da Pobreza, e Povo”, referindo “[…] os descômodos que padecem por falta de troco” para compras miúdas, além do grande prejuízo da caridade: não há moedas para dar esmolas aos mendigos [30]. Pedidos semelhantes, sempre repetidos, são índices da “murmuração” da “Pobreza” virtualmente amotinável. A ordem hierárquica prevê as esmolas que a mantêm no lugar. Em 1º. de julho de 1693, após repisar o lugar-comum da “ruína de toda a República” e novamente tratar do crédito, das execuções de dívidas e falências de senhores de engenho, a Câmara informa que também não há missas, pois os capelães se veem obrigados a dizê-las sem receber por elas. Os mendicantes não têm esmolas, perece o culto divino nas celebrações dos santos, na pompa das procissões, no ornato dos altares. Tudo o mais fenece quando, juntamente com os negócios do açúcar, são atingidos os negócios da alma: “[…] o que podia ser exemplo da grandeza dos ânimos vai passando a ser mágoa da piedade cristã” [31].

 

Escravo açoitado no pelourinho. Gravura de Debret, 1835.

As categorias que interpretam as representações desses enunciados são, como disse, teológico-políticas. Católicas, reiteram o antimaquiavelismo e o antiluteranismo. Afirmam que o exercício do poder da Câmara é representação que não se dissocia da ética. Reiteram que o poder real não é doação direta de Deus, mas produto do pacto de sujeição em que o todo unificado do corpo político da Bahia se aliena da liberdade declarando-se vassalo. É sempre o rei que dá ou doa o direito, formalizando os privilégios e deveres das ordens e indivíduos da Bahia como representações pela representação da soberania da sua pessoa imortal; as instituições locais repetem ou glosam o ditado. A glosa reitera o ditado e determina, para cada posição, privilégios e deveres dados em representação em uma forma decorosa. Catolicamente definida como representação, a hierarquia regula todas as formas, descendo da cabeça real até os pés escravos: suas leis, visíveis nas instituições, tatuam os corpos. Têm autoridade de leis legítimas, segundo o Direito Canônico que as doutrina como reflexo justo e proporcionado da lei natural. Doutrinariamente, compõem a unidade sagrada do corpo político da Bahia, garantem a pluralidade dos privilégios de seus membros, especificam a diversidade de suas atribuições, interesses e deveres, mantendo-os em equilíbrio pacífico como “única vontade unificada” no pacto de sujeição. Afirmando o absoluto da soberania que a população quase aliena de si mesma na persona mystica do rei, reiteram que este deve impor, conservar e ampliar o monopólio da violência legal da razão de Estado pelos meios repressivos existentes – aparelho judiciário, milícia, fisco, Inquisição, castigos exemplares, açoites, degola, garrote vil, forca, degredo – e pela interiorização da disciplina, como catequese de índios e negros e a educação da Companhia de Jesus, que divulga as formas cortesãs, agudas e discretas das “letras e armas” que tipificam o comportamento dos “melhores”. A manutenção da ordem pela representação opõe-se ao pecado e à heresia, pois assegura a concórdia das partes individuais consigo mesmas como autocontrole das paixões, e a paz do todo, como “corpo místico” de vontades unificadas na subordinação. Na representação das cartas da Câmara, o poder real se divide em poder ordinário, cujos limites são o direito privado, a lei comum e o interesse particular dos súditos determinados em um contrato, e poder absoluto, que visa o “bem comum”, determinando meios e fins da razão de Estado soberana [32]. A distinção é pressuposta na enunciação das cartas, sendo explicitada quando fazem referência ao “escândalo” dos “[…] novos e pesados impostos sobre o Tabaco fruto deste Estado” ou aos “[…] Privilégios que por muitos grandes puderam ser invioláveis”. Formalmente, a distinção determina que o imposto real só pode ser lançado com o consentimento dos súditos. Mas a Coroa continuamente infringe o preceito, determinando alterações do valor da moeda, aumentos de taxas e novos impostos. A população reage com “murmuração” e “tumultos” [33].

Tendo por pressuposto o poder absoluto da razão de Estado soberana como limite de suas intervenções nas questões da cidade, os enunciados das cartas da Câmara permanecem na circunscrição do poder ordinário. Desta maneira, os oficiais legislam em causa própria, contestam iniciativas particulares de grupos e súditos individuais que, conforme alegam, contrariam a unidade do corpo político local e contestam ordens e imposições reais, principalmente por meio de argumentos que alegam o excesso de impostos como causa do sofrimento do “miserável Povo” etc. Mas não contestam, nunca, a razão de Estado que determina o excesso, nem seu fundamento, a soberania real: “[…] Porém por ocultos princípios, que não devem os Vassalos perguntar às Majestades, foi servido brevemente Mandar Sua Majestade, que corresse toda a moeda de Selos pelo que tivessem a Respeito de tostão a oitava”, confirma uma “Protesta da Nobreza da Cidade da Bahia ao Senado da Câmara para a fazer presente a Sua Majestade”, em 28 de julho de 1693 [34]. As cartas deliberam sobre causas reguladas pelo poder ordinário principalmente porque obedecem ao pressuposto do uso estabelecido como costume, sempre alegado como bom uso predeterminado na vontade do rei, que é intocável [35].

Todas as cartas da Câmara pressupõem a distinção dos dois poderes, ordinário e absoluto, compondo o destinatário real como o tipo doador do sentido último da representação a que alegam subordinar as representações, o “bem comum”. O rei deve ser persuadido da verdade ou verossimilhança dos enunciados que tratam de questões do poder ordinário. Como só é possível persuadir e ser persuadido a respeito daquilo que já se conhece, as representações da Câmara dramatizam normas de regulação social e esquemas de comunicação verbal do chamado “todo social objetivo”. Ao fazê-lo, põem em cena os modelos institucionais que regulam corporativamente o campo semântico da experiência coletiva, evidenciando que é experiência partilhada assimetricamente pelo sujeito de enunciação, pelos tipos representados nos enunciados, pelo destinatário real e pelos públicos empíricos. Em todos os casos, as representações reproduzem a jurisprudência dos usos adequados dos signos coletivamente partilhada como “costume” ou memória social de “bons usos” de autoridades.

A autoria, os textos e os públicos dos discursos formais das instituições e da murmuração informal da população de Salvador são exteriores, evidentemente, às categorias iluministas e pós-iluministas que definem a subjetividade como psicologia, a experiência do tempo histórico como contínuo progressista, a arte como autonomia estética, contemplação desinteressada, negatividade, ruptura, originalidade etc. As cartas da Câmara evidenciam que sua conceituação de “autoria”, “texto manuscrito”, “texto impresso” e “público” também é substancialista, mimética. Pressupõe a metafísica escolástica na definição de “pessoa humana” e de suas faculdades, vontade, memória e inteligência, quando inventam o remetente e o destinatário. Sem autonomia crítica, ambos se definem como tipos integrados nos decoros hierárquicos. O remetente, “Senado da Câmara”, é um sujeito subordinado. Quanto ao destinatário, o rei, é “absoluto” porque está livre do poder coercitivo das leis positivas, segundo o pacto de sujeição, mas não reina nem pode reinar arbitrariamente como tirano, pois suas ações devem pautar-se pela ética cristã, ou seja, como representação que põe em cena a lei natural de Deus. Deste modo, o juízo do destinatário das representações das cartas coloniais e do público empírico que se apropria delas não corresponde à “opinião pública” dotada de autonomia política, representatividade democrática e livre-iniciativa crítica de uma classe ou fração de classe com o direito, formalmente assegurado nas constituições democráticas das sociedades pós-iluministas, de fazer valer com igualdade de condições os direitos e os interesses de sua particularidade ideológica. As cartas e mais representações baianas do século XVII definem e regulam o conceito de “público” por meio do conceito de “bem comum”: “público” significa a totalidade das ordens sociais do corpo político do Império subordinado ao rei. Nos discursos não ficcionais e ficcionais desse tempo, com exceção do rei, o destinatário é tipo que testemunha a representação que outros membros subordinados fazem dele e para ele por meio da representação de sua posição e de outras como posições sempre subordinadas. O destinatário não tem a autonomia política da livre-iniciativa liberal, pois sua representação é a de uma posição subordinada, cuja definição jurídica pressupõe, diferencialmente, todas as outras representações das demais posições sociais subordinadas [36] ao rei no pacto de sujeição. Além disso, o juízo com que o destinatário e públicos empíricos avaliam as representações e produzem sua autorrepresentação só é justo quando ordena as três faculdades constitutivas de sua pessoa – vontade, memória, inteligência – como subordinação. As cartas sempre afirmam que as instituições sociais são justas quando tornam o espaço público da Bahia visível como totalidade pública do “bem comum” do mesmo corpo político subordinado hierarquicamente ao rei. As representações devem, portanto, necessariamente obedecer aos decoros hierárquicos que regulam suas posições. A não obediência é infração cujo castigo reproduz, com simetria, a mesma representação hierárquica: na Bahia do século XVII, açoites tatuam as costas de plebeus e escravos com os signos da soberania real; a degola dissocia corporativamente a cabeça de fidalgos da cabeça do rei; o degredo põe os corpos insubmissos para fora da comunidade pública do “bem comum”.

Neste sentido se entende a solicitude frequentíssima com que as cartas tratam de questões de fisco. Quando o fazem, formalizam a relação do direito privado dos senhores de engenho e do direito do Estado, fazendo ver que, por pertencer à potência pública, o Tesouro é res quasi sacra, coisa quase sagrada, que constitui e mantém a Bahia como “corpo místico” harmonicamente integrado à sua “cabeça”, o açúcar. Alma e substância da Bahia, o Tesouro circula nela como o sangue, que é sagrado e corre nos papéis da Câmara e outras autoridades como metáfora do dinheiro. Na Representação do governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho ao Rei, datada de 4 de julho de 1692, lê-se a formulação organicista, montada por metáforas de proporção: sangue:corpo::dinheiro: corpo político:

“[…] Toda a opressão, Senhor, e ruína que se teme, nasce da falta do dinheiro, que é aquele nervo vital do corpo político, ou o sangue dele, que derivando e correndo pelas veias deste corpo, o anima e lhe dá forças; e do contrário, como sucede no corpo natural, desmaia e enfraquece não só quanto às partes principais, e que animam as outras, senão quanto aos membros, que são aqueles de cujas operações tomam seu valor, e eficácia as superiores; sendo certo que são muito mais generosas e muito melhor reputadas, e ainda temidas as resoluções daquele Príncipe, República, ou Estado onde sobra o Erário, que as daquele onde totalmente falta o dinheiro” [37].

Em uma carta da Câmara de 1º. de julho de 1693, encontra-se formulação análoga, que define o Estado como corpo de hierarquias e o Tesouro, res quasi sacra, como o fluido vital das trocas:

“[…] tirando-nos o sangue na paz, o não teremos para derramar se por pecados houver guerra como muitas vezes fizemos; o Sangue, Senhor, que sustenta e anima toda a Monarquia, é a abundância da moeda assim o confessam todos e o confirmam muitos Ministros de Vossa Majestade por cuja razão pretendem tirar o sangue dos braços para com ele se acudir a cabeça: pede-o assim a razão, e o julgamos conveniente mas deve-se primeiro considerar que se faltar o maior rio com a contribuição de suas águas ao Mar que não se há de enxergar esta falta” [38].

No “Treslado do Requerimento que fez o Juiz do Povo e Mesteres sobre a m oeda e prata feito aos 11 de fevereiro”, requerimento dirigido aos vereadores e ao procurador do Senado da Câmara pelo juiz do Povo Francisco Ribeiro Velho e os mestres Domingos Pais e José Carvalho, o pressuposto doutrinário é explicitado quando declaram falar em nome do “[…] miserável estado a que se tem reduzido a antiga opulência desta Cidade e a presente ruína dos negócios”. Apresentam duas causas da “ruína”: a falta da moeda, que é enviada para Portugal pelos comerciantes, e a sua fundição pelos ourives locais. No requerimento, os três agentes, representantes de interesses das corporações de ofícios e de outros grupos populares, alinham-se contra os interesses de mercadores de açúcar reiterando o pressuposto. Argumentam que o abatimento do preço, as despesas dos fretes, o comboio para a Europa, a demora da sua venda e “[…] os mais in¬convenientes que lhe suspende[sic] o lucro e diminuem o cabedal e a facilidade de o poderem engrossar na prontidão de novos empregos, sempre mais seguros à vista do dinheiro” são causas do “miserável estado”. O principal negócio dos mercadores, segundo o Juiz do Povo e os mestres, consiste em mandar o dinheiro para o Reino, “como é notório”, sem reparo algum da “utilidade do Estado” [39].

Mas é contra os ourives que o requerimento concentra fogo. Segundo os requerentes, devem se coibir os ourives, que batem e lavram a prata das moedas à vista de todos: “[…] com dor e escândalo e admiração de toda esta Cidade”. Segundo eles, a ação dos ourives é pior que a dos mercadores monopolistas: “[…] é mais atroz esta ruína que a de se levar o dinheiro pois aquele que foi pode voltar”. A moeda convertida em baixelas e usos extraordinários não retorna, o que é delito sem perdão: embora se enriqueçam as casas particulares, o todo do corpo político da República se enfraquece, pois só se conserva com “[…] a substância comum do dinheiro, como a alma que mais vivamente anima as Cidades, os Reinos e as Monarquias”. Reiteram que por isso “[…] se deve preferir sempre o bem universal ao apetite ou luzimento particular” [40].

É porque o Tesouro é coisa quase sagrada que a carta dos senhores de engenho e lavradores de canas contra Bernardo Vieira Ravasco afirma que “quem diz Brasil diz açúcar e o açúcar é a cabeça deste corpo místico que é o Brasil”. Denúncias análogas são feitas pelos oficiais da Câmara, por padres seculares, pelo arcebispo, pelo governador, pela persona de poemas satíricos contemporâneos, pelos mestres de corporações de ofícios e pelo “povo“ em geral, também contra a corrupção da Junta do Comércio, que em suas transações monopolistas eleva ou diminui os preços dos gêneros conforme os venda ou compre. Nenhuma denúncia é iluminista, ao contrário do que no Brasil já se propôs algumas vezes, nenhuma delas propõe a superação da ordem nem alega “direitos” que pressupõem a igualdade. A “murmuração”, as denúncias, os tumultos e rebeliões desejam repor a unidade da ordem antiga desagregada por abusos. Alegando a representação do costume, afirmam a necessidade de reprimir e castigar as iniciativas contra naturam, que ferem a “cabeça” da máquina colonial, o açúcar.

Logo, a representação do “corpo místico” que regula as trocas econômicas da Bahia também regula as trocas sexuais, o que se evidencia nos usos dos termos “ladrão” e “corno”, definidos como “insulto atroz” só reparável com o sangue do ofensor. Quando são aplicados a indivíduos, ferem radicalmente a representação de indivíduos e grupos. “Ladrão” significa o indivíduo que pec a mortalmente porque, roubando, desviando ou favorecendo o desvio do dinheiro público, tira o sangue do corpo político, rompendo voluntariamente os laços de amizade que devem unir suas partes [41]. A desqualificação dos laços de sangue é homóloga, no caso de “corno”, ainda que o tipo classificado pelo termo sempre seja o último a saber do erro das outras partes e, quase sempre, não participe voluntariamente dele. No caso, o “insulto atroz” atribui imoralidade hiperbólica ao comportamento sexual de mães e esposas, degradando pais como “cornos” e filhos como “bastardos”, ou maridos e descendentes de “putas”. Significando a desonestidade dos laços de solidariedade familiar, é desonra irreparável nesse mundo fundamentado na representação da herança do sangue e do nome de família.

Assim como ocorre com os insultos, a escrita das cartas relaciona-se sistemicamente com os regimes discursivos formais e informais contemporâneos, refratando suas convenções éticas, jurídicas, sexuais, religiosas, teológicas, econômicas, políticas etc. Veja-se por exemplo a representação de um tipo local, o “mulato”. Muitas atas da Câmara registram determinações de que os açougueiros exponham a carne pendurada para que o sangue escorra e não altere o peso e o preço. Como os açougueiros mulatos insistem em expô -la amontoada, as atas registram intervenções dos juízes do Povo contra eles, afirmando “porque são inimigos do Povo” como justificativa das medidas. Em fins do século XVII, a Câmara chega a baixar ordens proibindo a permanência dos mulatos dentro do termo da cidade. Então, usa-se o termo “mulato” para preencher semanticamente lugares-comuns de pessoa do gênero epidítico que compõem e classificam tipos de gênero baixo. A significação do termo refrata valores semânticos dos registros discursivos do campo simbólico geral: preceituário ético, que define “mulato” aristotelicamente como tipo “mau”, por ser “misturado” ou “híbrido” sem unidade; regulamentação jurídica, que o classifica como “gente baixa”, quando livre, e fora do corpo político, quando escravo; troca sexual, em que é “animal” incontinente ou “puta” à disposição de homens brancos; fundamentação teológica, que o faz naturalmente escravo como filho de Cam; pragmáticas de precedência, traje, formas de tratamento, que o proíbem de entrar em igrejas de brancos, usar sedas, veludos, fitas, ouro, cabeleiras empoadas, sapatos, determinando que deve dirigir-se aos brancos por “vós”, sendo tratado por “tu”; e que, prevendo a desobediência, classificam-no de “atrevido”, “vão”, “desvanecido”, “desavergonhado”; referência letrada, pela qual é tipo “ladino”, falando português, ou “boçal”, ignorando a língua; transação econômica, na qual é “peça”, “besta”, “alimária” e “mercadoria”, quando escravo; ortodoxia católica, pela qual é “gentio”, “herege”, “feiticeiro”, “idólatra”, dado ao calundu, ao sexo nefando com Satanás etc. Como o termo condensa e refrata valores de registros diversos, ao ser aplicado a um indivíduo qualquer da cidade significa as várias modalidades simbólicas de classificação de um tipo social inferior, de um caráter moral inferior, de uma posição política inferior e da forma da representação de um dever ser naturalmente subordinado como inferior. Logo, o termo também sig nifica eventos associados à inferioridade naturalizada que perturbam a ordem: associam-se aos valores semânticos de “mulato” as noções de transgressão, erro, crime, pecado e os castigos correspondentes, açoites e forca: “Alerta, pardos do trato/ A quem a soberba emborca,/ Que pode ser hoje forca/ O que ontem foi mulato”, como se lê em uma sátira [42]. Da mesma maneira, termos então pejorativos, “negro”, “pardo”, “índio”, “caboclo”, “mameluco”, “judeu”, “cristão-novo”, “sodomita”, “ladrão”, “corno”, “puta” são usados para compor representações que desqualificam representações rivais. Antes de designarem os indivíduos empíricos a que são aplicados, os termos significam o conjunto das convenções simbólicas que conferem ou subtraem distinção, pondo em cena sua categoria nuclear, a representação. Nos enunciados das cartas, colidem vozes recortadas de todos os pontos da sociedade baiana que pressupõem a representação como fundamento do seu desejo por mais representação evidenciado nas representações.

A sociedade baiana do século XVII é antes de tudo um mundo organizado como mundo de relações pessoais. Todas as suas representações articulam a oposição de mundo das relações pessoais de amizade como relações virtuosas que mantêm a ordem ou a unidade pacífica do todo, e mundo das relações impessoais ou relações viciosas, que desagregam o corpo político, pois tiram de si mesmas sua representação. Na sátira que circula em Salvador nos anos finais do século XVII, as iniciativas autônomas que ferem a unidade pressuposta no “único corpo unificado” da Bahia são figuradas pela metáfora da “morte”, caracterizada como discórdia de partes desgarradas do todo como pedaços individualistas ou autônomos de ódio que, sendo inimigo do “bem comum”, é traduzido como “amor falso”, “mortal ódio”, “fezes tão venenosas”. É a metáfora corporal da ruptura dessas relações pessoais de amizade do bem comum (como concórdia e paz) opostas ao ódio de sua ausência (como discórdia e guerra) que as cartas da Câmara figuram como evento, a ocorrência transgressora que ameaça e destrói os laços de solidariedade. O comportamento que desordena a harmonia preestabelecida na articulação dos deveres recíprocos que ligam o súdito e o Estado é sempre um erro lógico, um vício moral e um pecado religioso. Por caridade cristã e amizade pelo todo, os maus são amputados do corpo da República para que sua corrupção não contamine a representação honesta. A instituição produz a perversão, como dizia Klossowski. A caridade constitui o erro para propor o amor que efetua o consolo das instituições: “Desejo, que todos amem,/ seja pobre, ou seja rico,/ e se contentem com a sorte,/ que têm, e estão possuindo” [43].

Doutrinariamente, a hierarquia deve manter a comunidade coesa como ordinata multitudo, organizando-a racionalmente pelo direito natural que define o estatuto jurídico das posições sociais dos súditos, estabelecendo os limites de seus privilégios, impondo seus deveres e determinando a forma da sua representação. A mesma representação corporativista que regula as práticas locais torna os limites hierárquicos maleáveis. As formas infinitas de sua violência benevolente – a autoridade, o dom, o favor, a amizade, o clientelismo, o apadrinhamento, a subserviência, a adulação, a dissimulação, a falsificação, a simulação, a violência física – asseguram a margem de manobra necessária para transgredir os limites do direito e realizar os fins não declarados de interesses individuais.

Um gênero de conflito extremamente comum em Salvador durante todo o século XVII é o que opõe membros dos “melhores” que disputam representação. As disputas evidenciam que a honra, a fama e a reverência são concebidas corporativamente como representação. Em uma carta de julho de 1643, a Câmara pede providências ao rei, relatando “[…] o excesso e a insolência do Bispo Dom Pedro da Silva”. Segundo a Câmara, no dia de Corpus Christi de 1643, Dom Pedro saiu para o adro da Sé à frente da procissão sem esperar que a Câmara chegasse para acompanhá-la “como é costume” [44]. Segundo a Câmara, o bispo não esperou haver músicos na Sé, nem “gente de qualidade como convinha” para levar o pálio, apesar de o deão e outras pessoas eclesiásticas o terem advertido. A Câmara afirma que o bispo fez “tudo de propósito”: “[…] tomando o Senhor nas mãos saiu tão antecipadamente e escandalosamente que fez força com a pouca gente para sair a Procissão”. O governador chegou atrasado e, quando buscava a cabeça da procissão para ocupar seu lugar, o bispo não o esperou, entrando pela rua Direita. Aí, depois de largar a imagem do Senhor, saiu do pálio, largando a Custódia do chantre, “com admiração de todo o povo”. Aproximando-se de um “homem de representação” que tinha sido vereador no ano anterior, o bispo o empurrou, ordenando-lhe que fosse adiante com o guião, o estandarte da Câmara. O vereador não lhe obedeceu imediatamente e o bispo o ameaçou em altas vozes com a excomunhão. Conforme a Câmara, o bispo o “[…] fez ir assim intimidado para onde iam as bandeiras e insígnias das mecânicas afrontosa e escandalosamente” [45]. Segundo a carta, toda a população de Salvador testemunhou o evento; por isso mesmo, o governador e a Câmara se portaram “[…] com toda a prudência e dissimulação para não se alterar o povo, e romper em outro sucesso que julgava merecia o seu” [46].

No relato, o conflito das representações se refrata em articulações simultâneas que espelham as posições do bispo, do governador, da Câmara, das classes mecânicas e do “povo”, em geral. O bispo tem autoridade para expulsar o vereador para fora do corpo místico da Igreja, entregando-o ao demônio. Mas usa do privilégio na frente de todos, ameaçando um “homem-bom”. A Câmara interpreta-lhe a ação como “teima” pessoal, indignando-se com a injustiça: o vereador é “homem de representação” e sua honra é ultrajada quando se vê obrigado a andar junto das corporações de ofícios da cidade, sendo visto por todos. O bispo infringe as pragmáticas que regulam a posição dos membros do “corpo místico” na procissão ferindo decoros: além de não esperar pelo governador e abandonar os objetos sagrados de modo inusitado, dá uma ordem sem razão, constituindo a população como testemunho desigual de seu arbítrio. E degrada a Câmara ao degradar o vereador e o guião em posição indecorosa, também ultrajando o governador-geral. É justamente o olhar do testemunho da população presente [47] que impõe limite à reação imediata contra a afronta. O governador e os oficiais da Câmara dissimulam, fingem não ter sido insultados, para “não se alterar o povo”. Sua dissimulação prevê justamente o olhar do povo: “com admiração de todo o povo”. Por isso, aplicam a si mesmos a forma de uma representação prudentemente adequada à circunstância.

Diferentemente da simulação de maquiavélicos, que fingem o que não é produzindo o falso, a dissimulação do governador e da Câmara é “dissimulação honesta”, técnica católica de ocultar verdades em função de um bem maior. Catolicamente, a dissimulação honesta é determinada pela prudência, entendida como “arquitetônica do futuro”: o incidente que desestabiliza a ordem é absorvido na mesma ordem pela autorrepresentação que o governador e a Câmara compõem e aplicam a si mesmos como representação adequada ao “bem comum da República”. Sabem que as paixões são naturais, mas que sua representação não é informal: como no título do livro que o oratoriano Jean-François Senault dedica ao Cardeal de Richelieu em 1641, De l’usage des passions [48], as paixões têm formas aplicáveis conform e a ocasião. São “discretos”, distinguem-se do “vulgar”, que é levado pelas aparências.

A Câmara reconhece que é impotente contra o poder espiritual de Dom Pedro da Silva, por isso remete a afronta para a instância superior que comanda o padroado, a Coroa. Solicitando providências, constitui-se como representante e impetrante da ordem, pedindo que o rei ordene a justa medida dos privilégios e da aplicação dos seus decoros. Para fazê-lo, os oficiais situam-se na posição do destinatário real, exigindo-lhe a providência que deve dar [49]. Prevendo a versão do bispo, antecipam-se, avisam o rei de que Dom Pedro também escreve pedindo providências. O bispo alega uma provisão de Felipe II de Castela que regula a posição do guião da Câmara nas procissões, determinando que vá “diante […] por evitar inconvenientes”. Segundo a Câmara, o bispo a acusa de “[…] não estar por esta verdade”. A Câmara alega desconhecer a provisão e cita os registros das atas: “[…] nem está registrado”. E comunica ao rei que, nas procissões de Santa Isabel e do Anjo, os oficiais e o governador Antônio Teles da Silva compareceram “[…] sem Guião por não tornar a haver com o mesmo Bispo segunda ocasião de sucesso ou perigo de se perder com ele este povo” [50].

Não se conhecem as motivações de Dom Pedro da Silva, conhecido pela intolerância inquisitorial contra os judeus e os cristãos-novos. Mas a carta do Senado da Câmara faz falar representações, privilégios, precedências, infrações, deveres, cuidados com o “bem comum”: a representação está em questão. A ruptura da disposição protocolar dos membros da procissão evidencia o “[…] perigo de se perder […] este povo”. Que é esse perigo tão temido que faz o governador e a Câmara dissimular a afronta em nome da estabilidade de um bem superior? A “murmuração” do povo, que deve ser evitada, mantendo-se a todo custo a representação da honra e da reputação das posições e cargos como condição para continuarem a receber a reverência obediente que lhes é devida.

 

“O único todo unificado”

Na Bahia do século XVII, honra, reputação e reverência são praticamente sinônimas [51], sendo doutrinadas e aplicadas politicamente como efeitos produtores de afetos. Ou seja: como aparências referendadas pelo olhar de outros que, testemunhando a representação dada em espetáculo, reconhecem a adequação dos signos a modelos coletivamente partilhados de representação para lhe atribuir representação ou a forma “honra”. A carta da Câmara e mais representações baianas desse tempo evidenciam que a honra é relacional, constituída pelo testemunho de outro, devendo-se manter sua forma adequada, para haver o reconhecimento que reproduz os “estilos”, o costume, que mantêm a unidade do corpo político. Moral da aparência e aparência da moral, a reputação do vereador obrigado pelo bispo a andar junto das mecânicas seria mais ultrajada ainda se o governador e a Câmara interviessem fornecendo à plebe ocasião para testemunhar um conflito em que “homens-bons” representantes do poder real se exporiam publicamente como homens divididos por discórdias [52] ou homens falíveis dominados irracionalmente pelos apetites inferiores, tornando-se objeto da “murmuração”. Conserva-se a honra produzindo-se a aparência de dignidade acima das contingências da ocasião para impedir que a reputação seja abalada: não são o vereador, a Câmara e o governador que têm honra por si mesmos, mas aqueles que não a têm, os grupos e indivíduos do “povo”, e que podem deixar de atribuí-la aos que devem tê-la [53]. Se o “povo” deixasse de atribuí-la, também deixaria de reconhecer a autoridade que determina a obediência imposta nos signos de reverência. Tem honra quem pode tirá-la de outro. A honra se constitui no ato do testemunho alheio, que é temido porque a qualidade honrosa das ações depende de encômio ou censura. Logo, age-se bem quando se age produzindo a representação adequada à posição [54]. Escolasticamente, o governador e a Câmara demonstram a recta ratio agibilium, a reta razão das coisas agíveis, e a recta ratio factibilium, a reta razão das coisas factíveis. Distinguem-se dos vulgares, agem como discretos que conhecem os decoros e sabem aplicá-los tecnicamente. Funcional, a honra é produto do ver e do dizer como testemunho representado em um juízo que deve adequar-se aristotelicamente à aparência efetuada, sem excessos para mais e sem excessos para menos. Pois o testemunho facilmente se transforma em perigo, rebelião, crime de lesa-majestade e traição, se ultrapassa as medidas. Novamente, a representação põe em cena o imaginário do corpo. Assim como é monstruoso um pé falante ou um braço reflexivo, pois tais atribuições pertencem à cabeça, também é monstruoso que membros subordinados do corpo político adquiram autonomia quando testemunham os signos da soberania [55].

Como o monstro de Gracián, a “murmuração” da plebe baiana pode tornar-se excessiva ou perigosa para a conservação do poder. Mas a “murmuração” que mantém a justa medida como representação está prevista como dispositivo que constitui e mantém a fama de honradez e justiça dos que recitam o seu ditado no lugar. Assim, nos espelhamentos múltiplos do ver e do ser visto,

sempre é outro o que tem honra, sempre é outro o que pode tirá-la de outro. As cartas da Câmara sempre referem a “murmuração” como temível, pois é índice do evento, a ocorrência que, devendo não ocorrer, ocorre, transgredindo normas e ameaçando a integridade do todo.

É para evitar a “murmuração” e a desagregação da ordem, mantendo sua representação “como convém”, que o governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho manda tapar com pedra e cal os locutórios do convento de Santa Clara do Desterro, tentando impedir “as amizades ilícitas escandalosas” dos freiráticos com as freiras. Em 18 de março de 1690, o rei D. Pedro II mandou uma ordem régia para Câmara Coutinho, então vice-rei do Estado do Brasil:

 

“Governador do estado do Brasil Amigo.
Eu El Rei vos envio muitos saudares. Ao Arcebispo dessa cidade mando recomendar se reformem as grades dos conventos das freiras pondo-se em distância de seis palmos de grossura e tapando-se em redor dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares e ordinários têm mandado executar nos conventos das Freiras da sua obediência neste Reino, recomendando-lhe também o grande cuidado que deve pôr para que se evitem todas as amizades ilícitas escandalosas com as Religiosas desse Convento e vos recomendo muito que eviteis semelhantes amizades pelos meios que vos for possível, não só por aqueles que mandam as leis mas todos os que a prudência vos ditar, para que as Religiosas vivam sem inquietação alguma espiritual causada por pessoas seculares ou eclesiásticas e quando oArcebispo (o que eu não espero do seu grande zelo e virtude) falte em proceder contra as pessoas da sua jurisdição que nesse convento tiverem amizade ou trato ilícito me o fareis presente e quando não lhe dê remédio conveniente me dareis conta, mandando primeiro tomar alguma informação quando não conste das devassas que se tirarem judicialmente […] e para o Arcebispo fazer a reforma que lhe recomendo lhe dareis toda a ajuda e favor até que com efeito se consiga. Escrita em Lisboa, 18 de março de 1690. Rei” [56].

Coutinho respondeu em 19 de junho de 1691. Prestando contas dos “remédios convenientes” que aplicara ao Convento de Santa Clara do Desterro, afirma ter mandado executar as medidas que vinham sendo propostas pelo arcebispo, prelados regulares e outras autoridades de Salvador [57]. Em 1677, quando foi fundado o Convento de Santa Clara do Desterro, abriram-se cinquenta vagas para freiras de véu preto e 25 para as de véu branco. As cinquenta de véu preto destinavam-se a “mulheres de representação”, filhas dos “homens-bons” do local, e foram totalmente preenchidas no mesmo dia. Nenhuma das 25 de véu branco foi solicitada, pois eram destinadas para jo

vens que não poderiam fazer os votos, devendo ocupar-se de trabalhos manuais definidos como próprios de pessoas de condição inferior, como a limpeza e a cozinha. Em 12 de agosto de 1688, o Senado da Câmara encaminhou carta ao rei, solicitando-lhe que transformasse as 25 vagas de véu branco, desocupadas até então, em vagas de véu preto. A carta alega que “muitas mulheres nobres e autorizadas” de Salvador tornavam-se religiosas por falta de dotes para se casarem [58]. Em 25 de julho de 1695, os oficiais da Câmara tornaram a solicitar “mais trinta lugares”, afirmando que os pediam por causa da “[…] desconsolação que têm as filhas dos homens nobres de irem a ser Religiosas nesse Reino, e Ilhas, sendo dobrada a despesa, e incômodos; e mais que tudo o Risco do mar, do Mouro, e Vidas” [59]. Na mesma carta, reiteram que falam em nome das “[…] amiudadas lágrimas de muitas mulheres filhas da principal Nobreza”. A principal causa alegada para o pedido de mais vagas são “seus poucos cabedais”. Desejam exclusividade: “[…] que não seja mais que para as filhas dos que servem, e têm servido a Vossa Majestade, na ocupação de Vereador, ou Juiz”.

No caso, a reclusão social – mas não reclusão sexual ou religiosa das mulheres – visava a garantir “[…] estas casar […] com homens de maior esfera do que muitas são”. A carta revela o temor dos pais de que venham a casar-se com maus partidos. Por exemplo, com soldados do Terço da Infantaria acantonado em Salvador no Forte de São Pedro desde as guerras holandesas de 1640. Mais de 2.500 homens pagos pela população estavam alistados no Terço para defender a cidade. Seus soldos eram pagos com muito atraso, as farinhas de mandioca que substituíam o trigo na sua alimentação eram desviadas por autoridades e negociantes, vestiam uniformes velhos e rasgados, embebedavam-se de jeribita, invadiam casas para roubar, faziam arruaças pelas ruas da cidade. Em sua maioria, eram negros alforriados, mulatos e brancos pobres, plebeus ou “gente baixa”. Se as moças de representação conseguem vagas no convento, afirmam os oficiais da Câmara, “[…] se evit

arão as Ruínas que podem suceder a muitas mulheres nobres por não terem seus Pais com que as possam mandar como outros fizeram, e menos para as Casarem com Pessoas de igual qualidade”.

O imaginário da nobreza, a alegação de falta de dinheiro, a destinação da herança para o filho primogênito, o medo das viagens por mar, o perigo dos piratas, o alto preço dos resgates de mulheres cativas em Argel e mais lugares do norte da África são os principais argumentos mobilizados na concorrência com pretendentes locais a ter filhas no convento. Pode-se supor a avareza, além da pura ênfase persuasiva, própria de cartas deliberativas: “[…] sua Real Provisão […] ordena que as filhas dos Oficiais da Câmara que servem, e tiverem servido neste Senado, prefiram às outras na entrada do Convento de Santa Clara desta Cidade” [60]. O trabalho na Câmara e a ausência de pagamento para os vereadores tornam-se signos nobilitantes deles como “homens de representação”, fundamentando seus argumentos para legislar em causa própria e pedir privilégios para filhas, parentas e apadrinhadas:

“[…] Porém depois foi V. Majestade servido escrever ao Arcebispo deste Estado, que a preferência se entendia não havendo prejuízo de terceiro, e da pública conservação do Convento as quais palavras ambíguas dão motivo a que a mercê Real de Vossa Majestade não venha sortir efeito algum conforme a interpretação, que lhe quiserem dar e como Vossa Majestade nos fez disto favor em remuneração do trabalho contínuo, que temos de Servir neste Senado sem Salário algum e ser o dito Convento criado pelos oficiais da Câmara que são os legítimos fundadores dele nos pareceu justo que Vossa Majestade mande observar a Sua Real Provisão sem justo digo sem Limitação alguma para que não hajas nas preferências dúvidas ou contendas […] por andar a Nobreza pobre, e desgraçada, assim se experimenta com grande lástima, e mágoa choram todos os homens Nobres, e temem se arruínem suas honras, vendo preferir às suas filhas as dos homens de menor Condição, sem utilidade, ou Crédito do Convento” [61].

Nesse tempo, a admissão das moças nos conventos do Reino era pautada por critérios de “limpeza de sangue”, um conjunto de provas de que os “quatro costados”, os avós paternos e maternos da jovem, nada tinham das “raças infectas de mouros, árabes, judeus, negros e mulatos”. A simples admissão era representação, como atestado da brancura ortodoxa pretendida pela família da religiosa, que se ostentava como signo de posição superior, pois testemunhava a “limpeza de sangue” da origem familiar. Em uma terra de índios, negros, mulatos e brancos pobres como a Bahia, muitos “homens-bons” com ascendência cristã-nova, cabocla ou africana viam-se obrigados a mandar as filhas para Portugal, onde a admissão nos conventos era pautada por critérios menos rígidos. Em Portugal, como escrevia o inglês Costigan na segunda metade do século XVIII:

“[…] a nobreza é muito pobre, e como é demasiado orgulhosa para tratar de ganhar a vida, ou para dar suas filhas em casamento a pessoas inferiores a elas, não tem outro recurso, segundo julga, senão mandá-las definhar para um convento, sem consultar suas tendências, de preferência a casá-las, e sem pensar a que acidentes expõe as suas constituições físicas” [62].

Em 1739, o conde das Galveas, governador-geral do Brasil, escreveu ao rei contando que nosquatro anos do seu governo tinha havido apenas dois casamentos de “gente de representação” na Bahia, pois todas as moças nobres ou ricas iam para o convento [63]. O conde dos Arcos, em carta ao conde das Galveas, dizia que a Bahia era “terra de hotentotes”. Com a expressão, referia-se ao costume de isolamento social das mulheres fidalgas ou pretendentes à posição de fidalgas. Dizia então que os pais metiam as filhas em reclusão “[…] com o pretexto de falta de casas de educação, mas com o fim delas não casarem com oficiais da guarnição” [64]. Russel-Wood propõe, com bom humor:

“Em uma terra de mulatos e cristãos-novos, há poucos homens-bons solteiros e os oficiais do Terço da Infantaria disponíveis são péssimo partido, equivalente à perda da virgindade das moças. Pior que ela, aliás, porque afinal sempre se pode encontrar um nobre arruinado, disposto a não pôr reparo no pequeno detalhe anatômico em troca de um belo dote” [65].

 

Nsra da Barroquinha, Salvador

As jovens que conseguiam ingresso com véu preto no convento de Santa Clara do Desterro nas décadas finais do século XVII não se desterravam do mundo nem morriam para ele. Há evidências de que viviam. E muito. Cada freira do véu preto podia ter escravas; muitas vezes, duas ou mais empregadas, geralmente moças órfãs pobres; algumas vezes, as religiosas de véu preto se dedicavam aos negócios, emprestando dinheiro a juros, vendendo e alugando terras ou investindo em ações de navios negreiros. Provavelmente, nenhuma das freiras das Claras Pobres de Salvador teve tantos livros como os que, na mesma época, Sor Juana Inez de la Cruz possuía em sua cela no México, nem o prodigioso conhecimento de línguas, pintura, astronomia, filosofia, teologia, retórica e poesia da religiosa mexicana [66]. Mas eram riquíssimas, famosas pela beleza e pela sempre alegada pureza racial e, principalmente, pelos divertimentos que organizavam no convento durante o Carnaval. Le Gentil de la Barbinais escreveu em seu Nouveau Voyage sobre as poses pouco convenientes dos atores de uma peça a que assistiu no Convento do Desterro em 1717 [67].

A representação fidalga insistentemente reclamada pelos vereadores como exclusividade deles também é cômica, às vezes, quando os mesmos critérios hierárquicos de representação são positivados: na Bahia, a nobreza também foi responsável pela coleta do lixo, como se lê em uma carta de 30 de julho de 1694. Nela, os oficiais escrevem que, tendo conseguido do rei concessão para nomear dois almotacés da limpeza, logo o fizeram para “[…] se evitarem por este meio as doenças grandes que costuma haver nestes Povos, por falta de semelhantes prevenções”. Afirmam que as doenças da cidade são causadas pela malignidade dos ares corrompidos pelas imundícies que se lançam dia e noite na maior parte das ruas, as quais têm três ou quatro lugares “[…] no meio delas em que o Povo acostuma fazer barbaramente despejos”. Os almotacés são “pessoas de ínfima condição” e não conseguem nenhum resultado junto à população. A representação modela o imaginário de todas as ordens sociais da cidade: “[…] assim pelo pouco-caso que deles faz o Povo, como por não se atreverem a executar as penas e Condenações impostos nos Escravos que nelas caem”. O males da terra pioram quando chegam os do mar: navios de São Tomé e da Costa da Mina trazem enfermidades contagiosas e os oficiais pedem ao rei que os autorize a nomear um “[…] Provedor da Saúde […] por cuja conta corra a Limpeza desta Bahia, e que o Senado possa fazer da primeira nobreza da Cidade o sujeito que lhe parecer mais capaz […] porque não sendo desta qualidade, nem Vossa Majestade ficará bem servido nem o Povo com remédio” [68].

Fórmulas como “corpo místico do açúcar”, “corpo místico do Estado do Brasil”, “corpo político da Bahia” das representações baianas do século XVII significam a comunidade dos homens coloniais que transferem o poder ao rei em um ato de sujeição como vontade de “um único todo unificado”, como diz Suárez. A transferência é definida pelo modelo jurídico da escravidão: “quase alienação” (quasi alienatio) [69]. Duas articulações se fundem nas fórmulas. Uma delas é teológica, o “corpo de Cristo”, a hóstia consagrada pela Eucaristia, e, por extensão, a respublica christiana, o corpo da Igreja. A outra é jurídica, oriunda da doutrina da corporatio, a corporação romana, e da noção medieval de universitas. As fórmulas se relacionam, principalmente, com a definição do terceiro modo da unidade dos corpos feita por Tomás de Aquino no comentário do Livro V da Metafísica de Aristóteles: unidade de integração que não exclui a multiplicidade atual e potencial. É o modo correspondente ao corpo humano: […] quia eius perfectio integratur ex diversis membris, sicut ex diversis animae instrumentis; unde et anima dicitur esse actus corporis organici, idest ex diversis organis constitutis [70].

Unidade do corpo, pluralidade dos membros, diversidade das funções das diferentes partes são os três modos de definição do corpo humano de Tomás de Aquino, que propõe que a integração de suas partes em um todo harmônico é ordem, como instrumento para a alma, seu princípio superior. Com o termo caput, relacionam-se as metáforas “cabeça” e “corpo” ou “cabeça” e “membros”, como parte superior ou mandante e partes inferiores ou subordinadas. Por analogia, as metáforas são aplicadas para significar outros objetos como corpos. Analogicamente, significam a Igreja como corpus Eclesiae mysticum e corpus Christi, a sociedade como ordinata multitudo e o homem como corpus naturale [71]. Transferido para a esfera política, o termo “corpo” mantém o significado da analogia teológica, determinando que a cabeça, sede da razão de Estado, é proporcionalmente, para o súdito individual, o que Deus é para o mundo. Escolasticamente, a semelhança dos homens com Deus não se acha apenas no homem individual, mas, porque o homem é naturalmente social, a semelhança se acha na sociedade regida pela razão de um só homem, o rei, cabeça do corpo político do Estado. Doutrinariamente, o rei está no reino assim como Deus está no mundo e a alma está no corpo. Princípio regente da sociedade, o rei é sua razão suprema, dirigindo-a para integrar de todas as suas partes e funções como harmonia ou ordem.

Nos séculos XVI e XVII, os juristas contrarreformistas juntaram a noção de corpus mysticum, o “único todo unificado” da vontade coletiva, à de respublica, doutrinando com ambas a noção de corpo político para combater as teses do poder político de Maquiavel e Lutero. Em Portugal, a noção de “corpo político” foi fundamental na centralização do poder monárquico e na conceituação de “bem comum” [72]. O ensino da Companhia de Jesus na Universidade de Coimbra e nos colégios do Estado do Brasil e do Estado do Maranhão e Grão-Pará divulgou os tratados de Francisco Suárez, como De legibus e Defensio fidei, e de Giovaani Botero, Della raggion di Stato, recorrendo à noção de corpus mysticum para significar a vontade popular unificada como corpo político que se aliena do poder no pacto de sujeição. Doutrinado por Suárez segundo o modelo jurídico da escravidão ou quasi alienatio da comunidade que transfere o poder para o rei, o pacto prescreve as maneiras como as três faculdades escolásticas que então constituem a pessoa humana – memória, vontade, intelecto – devem ser e agir como faculdades subordinadas. Na doutrina, o corpo individual do súdito só é visível e dizível quando tem representação. Ou seja, quando sua memória, sua vontade e sua inteligência se integram nos corpos das ordens sociais ou hierarquia corporativa do “bem comum” do Estado. Como disse, nenhuma noção de subjetividade psicológica, de progresso ou autonomia crítica nas representações dessa subordinação. A posição do eu nas práticas é imediatamente a de uma subordinação visível da vontade, da memória e do intelecto às formas do todo social objetivo como livre-arbítrio que parece paradoxal para a experiência iluminista, pois é liberdade definida como subordinação. Subordinação dos apetites individuais à unidade estoica da tranquilidade da alma dada a ver, ouvir e ler nos signos espetaculares da Luz do Deus católico; subordinação da tranquilidade da alma à concórdia pessoal em relação ao todo dada a ver, ouvir e ler pelo aparato do poder que inclui as artes como aperfeiçoamento da alma; por decorrência, subordinação da vontade, da memória e do intelecto à paz individual e coletiva, decorrente da subordinação das partes e do todo do corpo político ao ditado divino da Igreja garantido pela Coroa. A representação faz as representações evidenciar a presença de ambas as instituições, pois a presença as legitima. Em um tempo, um lugar e em práticas como os da Bahia do século XVII, não há “opinião pública”, mas população subordinada, e sempre plebe, que “murmura” contra os excessos colonialistas com representações que repõem a representação. Nos discursos baianos do século XVII, a fórmula “corpo místico” significa principalmente, como diz Suárez, que todos os membros e estados sociais do Império português são capazes de ser considerados, do ponto de vista moral, como único todo unificado.

Pertencer ao corpo político do Estado determina a imediata responsabilidade pessoal para com todos os demais homens partes dele, o que se obtém moralmente pela concórdia ou coincidência da vontade coletiva quanto ao fim do corpo político. Como pode ser imposta, a concórdia não basta se também não houver concórdia de cada um consigo mesmo. É preciso reduzir à unidade comum da “tranquilidade da alma” estoica a diversidade dos apetites individuais que concorrem na situação social de concórdia [73]. As paixões devem ser evitadas; como são inevitáveis, devem ser controladas. Logo, o modo de união mais perfeito do corpo político do Estado é a paz. Como conformitas e proportio dos apetites, a paz é “a tranquilidade da ordem” [74]. Como diz Saavedra Fajardo:

Es el imperio unión de voluntades en la potestad de uno; si éstas si mantienen concordes, vive y crece; si se dividen, cae y muere, porque no es otra cosa la muerte sino una discordia de las partes [75].

No século XVII ibérico, a virtus unitiva do amor subordinado do “bem comum” é traduzida na metáfora estoico-aristotélica da “amizade”, como se lê no mesmo Saavedra Fajardo:

En las repúblicas es más importante la amistad que la justicia; porque, si todos fuesen amigos, no serian menester las leyes ni los jueces; y aunque todos fuesen buenos, no podrian vivir si no fuesen amigos [76].

As representações baianas do século XVII pressupõem e encenam tais asserções escolásticas. Segundo elas, a legitimidade real é acompanhada da sacralidade dos costumes que o próprio rei não pode alterar. No pacto, os súditos sempre têm o que dizer, desde que seus pleitos não saiam do quadro da lei positiva que reflete a lei natural na regulação da amizade das partes subordinadas. Nas cartas da Câmara, a paz social do corpo da Bahia, perfeita integração de seus membros e funções, combina a concórdia de todos no “bem comum” e a adesão de cada um ao todo por meio do controle da vontade. As cartas põem em cena a doutrina de Suárez: apesar de terem capacidade inata racional e volitiva para entender os ditames da lei natural inscrita em sua alma por Deus, os homens continuam criaturas manchadas pelo pecado original. Logo “[…] paz e justiça não podem ser mantidas sem leis convenientes” porque “[…] os homens individuais ordinários acham difícil entender o que é necessário para o bem comum e dificilmente fazem qualquer tentativa para atingi-lo por si próprios” [77]. Deve haver conexão da lei natural, que Deus põe nas suas almas como a sindérese que aconselha o Bem, auxiliando-os a entender os desígnios da Providência e agir segundo o livre-arbítrio, e a lei positiva, que os homens ordenam para si mesmos para governo da comunidade política. As leis positivas devem ter a autoridade de leis genuínas, devendo ser compatíveis com a justiça natural fornecida pela lei natural [78]. O princípio racional da autoridade que evita a confusão, o rei, ordena que as leis e a legitimidade delas sejam visíveis também na ordenação do espaço da cidade como lugar simbólico, qualificado como representação, da representação da sacralidade da sua soberania. A cidade da Bahia no século XVII é theatrum sacrum da soberania real. Como no teatro, a cidade é o espaço da representação e seus reflexos polêmicos refratados nas representações.

* João Adolfo Hansen é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Notas:

[1] Em 1662, Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado do Brasil, pretende que seja proibido o estabelecimento de novos engenhos, alegando a suficiência dos já existentes. A carta de 20 de junho de 1662, assinada por mais de cem “cidadãos”, afirma que Bernardo pretende a limitação dos engenhos porque necessita das lenhas para mover o seu. Cf. Maria lzabel de Albuquerque, “Liberdade e limitação dos engenhos de açúcar”. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Instituto Geográfico e Histórico, Salvador, 1955, p. 494.

[2] A discussão dessa categoria dramatizada na sátira seiscentista atribuída ao poeta baiano Gregório de Matos e Guerra (1636-1696) é feita em Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 511 p.; 2 ed. Ateliê/Editora Unicamp, São Paulo/Campinas, 2004, 517 p. Sobre a representação, é fundamental o livro de Louis Marin, Des pouvoirs de l’image. Gloses. Paris: Seuil, 1993.

[3] Entre 1949 e 1959, a Prefeitura de Salvador editou as cópias dos manuscritos da Câmara. A publicação manteve a ordem cronológica da produção, impondo à ortografia flutuante do século XVII uma uniformidade gráfica que as abriu para as apropriações. Cf. Atas da Câmara. Prefeitura do Município de Salvador. Documentos históricos do Arquivo Municipal. Atas da Câmara – 1641-1649, 1949, vol. 2.; 1649-1659, 1949, vol. 3.; 1659-1669, 1949, vol. 4.; 1669-1684, 1950, vol. 5.; 1684-1700, 1951, vol. 6. Cartas do Senado. Prefeitura do Município de Salvador. Documentos históricos do Arquivo Municipal. Cartas do Senado – 1638-1673, 1951, vol. 1.; 1673-1684, 1952, vol. 2.; 1684-1692, 1953, vol. 3.; 1692-1698, 1959, vol. 4.

[4] São Salvador de Todos os Santos foi fundada na Bahia em 29 de março de 1549, obedecendo ao regimento de 17 de dezembro de 1548 em que o rei D. João III manda erguer uma cidade fortificada como sede do governo-geral do Estado do Brasil. A fundação ocorreu em um momento de crise do chamado capitalismo monárquico da dinastia de Avis, quando também fracassava o regime das capitanias hereditárias estabelecido em 1534. Com exceção da capitania de Pernambuco e Itamaracá, no Nordeste, e de São Vicente, no Sul, as restantes vinham sendo derrotadas pelas distâncias, pela falta de capitais dos donatários, pelos ataques constantes de índios e piratas. Francisco Pereira Coutinho, donatário da Bahia, foi morto e comido pelos tupinambás de Itaparica. O descentramento era a principal causa do insucesso, agravado pela ameaça de ocupação do território pela França e outras nações europeias. As diretrizes da fundação da cidade pressupunham esses condicionamentos e determinavam que seria a “cabeça” ou órgão centralizador, militar, administrativo, fazendário e judiciário, dos outros “membros” ou capitanias da colônia.

[5] Cf. Chartier, Roger. Escribir las prácticas. Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996, p. 81.

[6] Carl A. Hanson. Economia e sociedade no Portugal barroco 1668-1703. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, p. 167.

[7] Idem, ibidem, p. 168.

[8] Cf. Stuart B. Schwartz. Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia 1550-1835. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 205.

[9] Cf. “Termo de acórdão que tomaram os oficiais da Câmara sobre o requerimento que fez o juiz do Povo da moeda e prata lavrada”, Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 209.

[10] Ata de 25 de fevereiro de 1694, Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 239-240: “Aos vinte e cinco dias do mês de fevereiro de 1694 nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos nas Casas da Câmara dele em Mesa de vereação foi vista uma Carta do Senhor governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho que está no Cartório desta Casa da Câmara e em dita Carta ordena dito Senhor governador se fizessem luminárias e se dessem graças a Deus pelo feliz sucesso das nossas armas vencedoras contra os negros dos Palmares o qual se havia destruído com morte, e prisioneiros do que resultava particular serviço a Sua Majestade e maior utilidade aos moradores de Pernambuco etc.”.

[11] Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. In: Santiago, Silviano (Org.), Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, 3 vols, vol. 3, p. 1002.

[12] Idem, ibidem, p. 1004: “Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole”.

[13] Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627). São Paulo: Nacional, s.d., p. 16.

[14] Em 10 de abril de 1674 e 7 de julho de 1681, a Câmara de Salvador pede ao rei a fundação de uma universidade como a Universidade de Évora. Afirmam ser mais que justificável sua fundação, tanto pela distância da Bahia quanto pelas despesas e riscos de mar a que se expõem os moços que vão estudar em Coimbra. Pedem também que seja concedido o grau de licenciado ou mestre em Artes àqueles que seguem os cursos ministrados no colégio local da Companhia de Jesus, caso a universidade não seja possível. Nunca foram atendidos. Cf. Cartas do Senado 1673-1684. Salvador, Prefeitura do Município do Salvador, Bahia, 1952, vol. 2, pp. 10-11 e 105-106.

[15] No início da cidade, o colégio dos jesuítas, a igreja da Sé e a Misericórdia ficavam fora dos muros. Dentro deles, foram situados o palácio do governador, o palácio do bispo, a casa da Câmara, o hospital, a igreja da Ajuda, a ermida da Conceição e os armazéns. Nos quarteirões situados nos lados do Terreiro de Jesus, predominava o traçado regular, em xadrez. Em 1624, quando invadiram a Bahia e tomaram Salvador, os holandeses fizeram uma planta da cidade na qual aparecem a porta sul, São Bento, e a porta norte, o Carmo, e as duas praças, o Terreiro de Jesus e o largo do Palácio, então usados para mercado. Nenhuma das praças é regular e predomina no conjunto o traçado em xadrez que, segundo Paulo Santos, tem sentido funcional, pois as irregularidades simplificam as comunicações. Cf. Paulo Santos. Formação de cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, pp. 90-92.

[16] Schwartz, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 79.

[17] Schwartz, Stuart e Pécora, Alcir (Orgs.). As Excelências do Governador. O panegírico fúnebre a Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia,1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 19.

[18] Cf. Stuart B. Schwartz. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial, op. cit., pp. 265-267 e 281-282. Na poesia satírica produzida em Salvador entre 1680 e 1700 que hoje é atribuída ao poeta Gregório de Matos e Guerra, é corrente a tópica cômica do “arrivista”, figurado com expressões como “sotatendeiro”, “pobrete de Cristo”, “cu breado”, “mãos dissimuladas em guantes”, “homem grande”. As sátiras atacam o tipo do plebeu que ascendia socialmente na Bahia, tornando-se “gente de representação”, “homem-bom” ou “melhor” por meio de negociatas, roubo de dinheiros públicos, casamentos com filhas dos melhores do local e o cargo de vereador da Câmara.

[19] Cf. Schwartz, op. cit., pp. 90-92.

[20] Cf. Schwartz, op. cit., pp. 277-278.

[21] Idem, ibidem, pp. 281-282.

[22] Em 1º. de fevereiro de 1549, três naus, duas caravelas e um bergantim saíram de Lisboa com destino ao Brasil. Levavam mais de mil pessoas, entre elas Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, o mestre Luís Dias, arquiteto, e seis padres da Companhia de Jesus chefiados pelo Pe. Manuel da Nóbrega. A frota chegou à Bahia em 29 de março de 1549. No mesmo dia se iniciou a construção de uma cidadela cercada por paliçadas de pau a pique na parte superior de uma falésia acima da baía de Todos os Santos. Conhecido como Cidade Alta, o núcleo inicial tinha forma irregular, adaptando-se aos acidentes do terreno. Sua forma era um trapézio, com fortificações nos quatro cantos e nas metades dos lados maiores, em uma disposição tipicamente medieval. Nos lados de duas praças irregulares, o Terreiro de Jesus e o largo do Palácio do Governo, foram escolhidos os lugares para os edifícios das instituições do espiritual e do temporal: a igreja e o colégio dos jesuítas, o Palácio do Governador, a casa da Câmara, a cadeia. A parte inferior da escarpa, chamada de Bairro da Praia, foi destinada à construção naval e às atividades comerciais. Com o tempo, novas edificações foram erguidas na Cidade Alta, que foi ligada à Cidade Baixa por meio de guindastes pertencentes aos jesuítas, beneditinos e carmelitas. Inicialmente, Salvador foi fortaleza, como se lê em papéis dos séculos XVI e XVII que a classificam como “praça-forte”. Uma das razões alegadas para a escolha do local foi a abundância de água na parte alta. As várias plantas da cidade feitas até o século XVIII permitem inferir que foi situada no alto de uma escarpa porque repetia as soluções defensivas tipicamente medievais adotadas em Lisboa e no Porto.

[23] Cf., por exemplo, a sátira: “Entra logo nos pilouros,/e sai do primeiro lance/ Vereador da Bahia,/ que é notável dignidade”. Cf. Obra Completa de Gregório de Mattos e Guerra. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Ed. James Amado e Maria da Conceição Paranhos. Salvador: Janaína, 1968, 7 vols., v. II, p. 431. Veja-se, por exemplo, a ata de 19 de janeiro de 1685: “Termo de eleição que se fez de juiz durante o impedimento do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo e de um Vereador em lugar de Manuel Botelho Carneiro que é falecido e do Procurador em lugar de João de Matos de Aguiar que se julgou escuso os quais saíram no pelouro que se abriu o primeiro de janeiro deste presente Ano”. Cf. Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 11-12.

[24] Cf. Affonso Ruy. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Bahia, Câmara Municipal de Salvador, 1953, p. 173.

[25] Em 25 de fevereiro de 1713, uma carta régia extinguiu os cargos de Juízes do Povo e mestres no Brasil. Pouco antes, em 1696, tinham sido extintos os cargos de Juiz Ordinário Cf. Theodoro Sampaio. História da Fundação da Cidade do Salvador (Obra póstuma). Bahia: Tipografia Beneditina Ltda., 1949; Affonso Ruy, op. cit.

[26] Cf. Alcir Pécora, “Velhos textos, crítica viva”. In: Emerson Tin. A arte de escrever cartas. Anônimo de Bolonha, Erasmo de Roterdã, Justo Lípsio. Campinas: Editora Unicamp, 2006, pp. 12-13.

[27] Cf. Armando Petrucci, “Poder, espacios urbanos, escrituras expuestas: propuestas y ejemplos”. In: Alfabetismo, escritura, sociedad. Trad. Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999, p. 58.

[28] Cartas do Senado 1692-1698, vol. 4, p. 11.

[29] Cartas do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 101.

[30] Carta de 16 de julho de 1689, Cartas do Senado 1684-1692, vol. 2, p. 85.

[31] Carta de 1º. de julho de 1693, vol. 3, p. 116.

[32] Cf. José Antonio Maravall, “A função do direito privado e da propriedade como limite do poder do Estado”. In: Antônio Manuel Hespanha (Org.), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 240 ss.

[33] António Manuel Hespanha e Maria Catarina Santos demonstram que em Portugal perdurou a noção tradicional de uma jurisprudência paralela à vontade da Coroa, constituindo-se mesmo, como se fosse evidente, a noção da legitimidade do controle jurídico do poder central do rei pelos tribunais. Em decorrência, também a ideia muito difundida de que o rei não poderia governar sem o conselho dos juristas, considerado mais básico que o das Cortes. Se o rei o fazia, agia contra a ratio iuris. Quando se tratava da aplicação, da integração e da interpretação do direito, a presença dos juristas era sempre muito ativa. Deve-se somar à importância da jurisprudência e dos juízes a lentidão da máquina judiciária portuguesa, sempre emperrada pelas várias instâncias de apelação e decisão por onde passavam os pleitos, agravos e desagravos juntamente com a larga margem de arbitrium nas decisões facultada pela estrutura doutrinária e burocrática do saber jurídico. Evidencia-se imediatamente a centralidade do lugar social dos juristas na sociedade luso-brasileira e, em decorrência, também a centralidade das formas do pensamento jurídico difundidas por todo o corpo político do Estado pela educação jesuítica como modelo de distinção social emulado desde os escravos até os príncipes da Casa Real, como as formas da dicção aguda, que reproduzem a técnica dos distinguos da filosofia escolástica aprendida pelos letrados nas instituições de ensino. Eloquência, legalismos, casuísmos, exames de casos, tradicionalismo das fontes, muito latim e providencialismo corporativista são constitutivos do modo histórico de ser e agir das representações da Bahia do século XVII. Não se trata, como ainda se diz com anacronismo no Brasil, de fórmulas verbalistas e fúteis dissociadas da realidade. Ao contrário, são práticas ativamente constitutivas da realidade do seu tempo. Cf. Hespanha, António Manuel e Santos, Maria Catarina. “Os poderes num império oceânico”. In: Mattoso, José (Dir.) e Hespanha, António Manuel (Coord.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1982, vol. 4., pp. 395-413.

[34] Cartas do Senado 1693-1698, vol. 4, p. 4. (Grifos meus).

[35] Em 1678, os oficiais da Câmara fizeram sugestões à Coroa que foram interpretadas como interferência direta na razão de Estado. A resposta de Lisboa foi severa, recolocando os oficiais em suas atribuições de poder ordinário.

[36] Cf. Merlin, Hélène. Public et Littérature en France au XVIIe Siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1994, p. 30.

[37] Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Representação do Governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho ao Rei sobre o Estado do Brasil” (1693). Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, MEC, 1939, vol. LVII, p. 147.

[38] Carta de 1º. de julho de 1693, vol. 3, pp. 114-115.

[39] “Requerimento que fez o Juiz do Povo e Mesteres sobre a Moeda e prata feito aos 11 de fevereiro, Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 205.

[40] Idem, ibidem.

[41] Suárez aconselha segundo o direito natural quando responde à questão “[…] si es liçito a alguna persona recibir o pedir dadiva, ó cosa de preçio y valor, por alcançar del que tiene mano en el Gobierno, algun offiçio, plaça, o dignidad”. Segundo Suárez, o ministro peca contra as leis da República em coisa lícita e grave, da qual pende o “bom ser” do corpo do Estado. Logo, peca mortalmente em grave detrimento dele, porque peca todo aquele que faz algo contra a lei justa em coisas graves. Cf. Francisco Suárez (Doctor Eximius) Conselhos e Pareceres, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1948, 3 tomos, tomo I, p. 225. “Ministro” e “oficial” são nomes para presidentes, ouvidores e alcaides de Audiência; alcaides de Corte, juízes, relatores, escrivães de Câmara, procuradores, fiscais; contadores; secretários; alcaides; carcereiros; almotacés etc.

[42] Cf. Gregório de Mattos e Guerra. Obra Completa. Crônica do viver baiano seiscentista, op. cit., vol. II, p. 423.

[43] Gregório de Matos e Guerra. Obra Completa. Crônica do viver baiano seiscentista, op. cit., vol. I, p. 28.

[44] “As Ordenações Filipinas determinavam o comparecimento obrigatório dos habitantes da Cidade e dos moradores dos termos distantes uma légua do local onde se verificava o cerimonial, sob pena de serem multados em mil réis, divididos entre o denunciante e o Conselho”. Cf. Affonso Ruy, op. cit., pp. 167-168.

[45] Em 4 de junho de 1699 (Atas da Câmara, vol. 6, pp. 374-375), os juízes Ordinários e mais pessoas nomeadas determinam as insígnias que devem ter os oficiais mecânicos e mais obrigações para assistirem nas procissões da Cidade em louvor de Deus e de seus santos. Propõem que se devam conservar e aumentar as “antigualhas que se costumavam”, encarregando-se os alfaiates da confecção das novas insígnias e bandeiras. Os ofícios de carpinteiro, torneiro, marceneiro e entalhador são obrigados a dar uma bandeira e quem a leve; os ofícios de alfaiate, palmilhador, botoeiro são obrigados a dar, com a sua bandeira, a madeira e “pano pintado para a Serpe e negros que a carreguem”; os sapateiros, cortadores e hachuradores são obrigados a dar “a sua bandeira e o drago aparelhado de tudo e negros para carregarem”; os pedreiros dão uma bandeira e quem a leve; padeiros e confeiteiros são obrigados a dar “dois gigantes, uma giganta e um anão e quem carregue”; os tanoeiros e sirgueiros, “uma bandeira e quatro cavalinhos frescos e quem carregue”; os ferreiros, serralheiros, barbeiros, armeiros e caldeireiros “todos ditos oficiais darão o guião e São Jorge a cavalo com todo o necessário e o pajem decentemente vestido e o Alferes da mesma sorte vestido, trombetas, tambores e seus alabardeiros de guarda do San­to, tudo vestido decentemente”; os vendeiros e vendeiros de porta são obrigados a dar “quatro lanças”; e os prateiros e os marchantes são obrigados a dar “três tourinhos”. Observa-se, pela atribuição dos encargos das várias corporações, a riqueza de algumas em relação a outras – por exemplo, ferreiros, serralheiros, armeiros etc. Pelas atribuições, pode-se imaginar a sua disposição hierárquica na procissão. Na carta que relata o conflito com o bispo Dom Pedro da Silva, infere-se que todas essas classes mecânicas estão presentes, testemunhando-o.

[46] Cartas do Senado 1638-1673, vol. 1, pp. 18-19. Cf., a respeito de Dom Pedro da Silva, Anita Novinsky (Introdução). Uma devassa do bispo dom Pedro da Silva 1635, 1637. Separata do tomo XXII dos Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1968; I. Accioli & B. Amaral, Memórias históricas e políticas da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1937, vol. V, p. 265.

[47] “As Ordenações Filipinas determinavam o comparecimento obrigatório dos habitantes da Cidade e dos moradores dos termos distantes uma légua do local onde se verificava o cerimonial, sob pena de serem multados em mil réis, divididos entre o denunciante e o Conselho”. Cf. Affonso Ruy, op. cit., pp. 167-168.

[48] Cf. Jean-François Senault, De l’usage des passions. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1987.

[49] Nesse tempo, soberania e lei são identificadas.

[50] Carta de julho de 1643, vol. 1, p. 20. Cf. “Quién no sabe disimular esas cosas ligeras, no sabrá las mayores”, escreve Saavedra Fajardo a propósito da opinião e murmuração da plebe, recitando Tácito: “Magnarum rerum curam non dissimulaturos, qui animum etiam levissimum adverterent” (Tácito,, Annales, Livro 3). Cf. D. Diego Saavedra Fajardo. Empresas Políticas. Idea de un Príncipe Político-Cristiano. Edição preparada por Quintin Aldea Vaquero. Madri: Editora Nacional, 1976, 2 vols.., Empresa XIV, vol. 1, pp. 178-179.

[51] Honrado es el que está bien reputado, y merece que por su virtud y buenas partes se le haga honra y reverencia” (Covarrubias, Tesoro de la Lengua Castellana, 1612).

[52] Algo semelhante ocorre quando a corte de Luís XIV prepara a recepção ao embaixador da Sublime Porta que, se descobre na véspera, é um mercador de tapetes. Nada se diz e a corte recebe o embaixador turco. Cf. Phillipe Beaussant. Versailles Opéra. Paris: Gallimard, 1981.

[53] A funcionalidade da honra é evidente no teatro de Lope de Vega. Por exemplo, na peça Los comendadores de Córdoba: “Veintecuatro. – ¿Sabes que es la honra? Rodrigo – Sé que es una cosa que no la tiene el hombre. Veintecuatro – Bien has dicho. Honra es aquello que consiste en otro. Ningún hombre es honrado por si mismo, que del otro recibe la honra un hombre. Ser virtuoso un hombre y tener méritos no es ser honrado; pero dar las causas para que los que tratan les den honra. El que quita la gorra cuando pasa el amigo o mayor, le da la honra; el que le da su lado, el que le asienta en el lugar mayor; de donde es cierto que la honra está en otro y no en él mismo. Rodrigo – Bien dices que consiste la honra en otro. Porque si tu mujer no la tuviera no pudera quitártela. De suerte que no la tienes tú: quien te la quita”.

[54] Cf. Saavedra Fajardo. op. cit., Empresa XIV, p. 178. Ferrol cita Menéndez y Pelayo (El sentimiento del honor en el teatro de Calderón. Est. y disc. de crítica histórica literaria, tomo III, pp. 379-380), que considera absurdo tal conceito de honra, atribuindo-o a “uma poética da honra e a uma jurisprudência também absurda e detestável, conforme a qual não se enfrentam os vícios próprios, mas a insolência alheia, não se enfrenta a própria lascívia, mas a da esposa”. Cf. Francisco Murillo Ferrol, Saavedra Fajardo y la política del Barroco. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1957, p. 310.

[55] […] En medio de tanto vulgo, apareció un raro monstruo, que no tenia cabeza, aunque lengua si, ni brazos ni ombros y manos tampoco, aunque si dedos para señalar; era furioso en acometer, pero fácil de acobardar […] ese monstruo es el Vulgacho, primogénito de la Ignorancia, padre de la Mentira, hermano de la Necedad, marido de la Malicia”. Cf. Baltasar Gracián, “Crisi V: Plaza del populacho y corral del vulgo”. El Criticón. In: Obras Completas. Madri: Aguilar, 1967.

[56]Accioli, Ignacio e Amaral, Brás do. Memórias históricas e políticas da Bahia. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1925, v. II, p. 258.

[57] “Por carta de Vossa Majestade de 18 de março do ano passado me manda Vossa Majestade saber se as grades dos locutórios das Freiras estão em distância de seis palmos craveiros, tapando-se as rodas dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares ordenaram; e se tem mandado executar nos Conventos das Freiras das Freguesias e juntamente não consinta haver amizades ilícitas no Convento das Freiras desta Cidade, e que além das leis que nesta matéria estão postas, o evitem pelo caminho que mais medita a prudência, ajudando ao Arcebispo nesta matéria em tudo o que estiver no meu poder. As grades estão como Vossa Majestade manda. As rodas do locutório fechadas. As Freiras vivem, como convém, de que tenho particular cuidado; assim pelo que toca ao serviço de DEUS, como ao mandato de Vossa Majestade. E enquanto eu governar segure-se Vossa Majestade que nesta parte pode estar sem cuidado; porque todo o meu desvelo, é não faltar um ponto ao que Vossa Majestade me manda”. Cf. Coutinho, Antônio Luís Gonçalves da Câmara. “Carta para sua Majestade sobre as religiosas do Convento de Santa Clara – 19/06/1691”. In: Livro de Cartas que o senhor Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho escreveu a Sua Majestade, sendo governador, e capitão geral do Estado do Brasil, desde o princípio de seu governo até o fim dele ( Que foram as primeiras na frota que partia em 17 de julho do ano de 1691), Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ).

[58] “Vossa Majestade […] prometeu esta concessão com número de Cinquenta Religiosas de Véu Preto, e vinte e cinco de Véu Branco, que também são Religiosas, mas como não têm voto, até hoje não houve mulher alguma que intentasse algum desses lugares. E porque o número das Cinquenta de Véu Preto está completo, e ficaram que as pessoas nobres, filhas de Cidadãos que têm servido, e servem a Vossa Majestade sem recurso para entrarem, Motivo que nos obriga a pedir a Vossa Majestade como em remuneração dos Serviços […] nos permita Vossa Majestade conceder faculdade para que os Vinte e Cinco lugares que se deram para as mulheres de Véu Branco se comutem em que sejam todas de Véu Preto porque desta Sorte não se acrescenta o Número da Concessão, nem se falta ao remédio de muitas mulheres nobres e autorizadas, que por não terem dotes competentes para casarem, se acomodam ao de Religiosas”. Cf. “Carta do Senado da Câmara de Salvador (12/8/1688)”. In: Cartas do Senado: 1684-1692. Salvador, Prefeitura do Município do Salvador, Bahia, 1953, v. 3, p. 58 (Documentos Históricos do Arquivo Municipal).

[59] “Carta do Senado da Câmara de Salvador (23/7/1695)”. In: Cartas do Senado: 1692-1698. Salvador, Prefeitura do Município do Salvador, Bahia, 1959, v. 4, p. 54 (Documentos Históricos do Arquivo Municipal).

[60] “Carta do Senado da Câmara de Salvador (12/8/1688)”. In: Cartas do Senado: 1684-1692. Salvador, Prefeitura do Município do Salvador, Bahia, 1953, v. 3, p. 58 (Documentos Históricos do Arquivo Municipal).

[61] Idem, ibidem.

[62] Azevedo, Thales de. Povoamento da Cidade do Salvador. 3.ed. Bahia: Itapuã, 1969, p. 179.

[63] Accioli, I. e Amaral, Brás. Memórias históricas e políticas da Bahia. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1926, vol. II, p. 126.

[64] Azevedo, Thales. op. cit., p. 179.

[65] Russel-Wood, A. J. R. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia 1550 – 1775. Brasília: UNB, 1981, p. 254.

[66] Cf. Boxer, C. R. A mulher na expansão ultramarina ibérica 1415-1815. Lisboa: Livros Horizonte, 1977, p. 49.

[67] Citado por Russel-Wood, A. J. R., op. cit., p.245.

[68] Carta de 30 de julho de 1694, vol. 4, p. 32.

[69] Cf. Francisco Suárez, De legibus, Livro V, cap. 4, n. 11: “Talis translatio potestatis a republica in principern non est delegatio sed quasi alienatio, seu perfecta largitio potestatis quae erat in communitate”.

[70] Santo Tomás de Aquino, “Lectio 3 ad Corinthians XII ”.

[71] Santo Tomás de Aquino, Summa theologica, III, 9, VIII, a.I.

[72] Desde setembro de 1564, quando o rei D. Sebastião ordenou que todos os decretos do Concílio de Trento seriam leis do Reino de Portugal, a doutrina foi ensinada nos colégios brasileiros da Companhia de Jesus e nos cursos de Direito Canônico e Civil da Universidade de Coimbra.

[73] Cf. Ferrol, Francisco Murillo, Saavedra Fajardo y la Política del Barroco. Madrid: Instituto de Estúdios Políticos, 1957, pp. 215 ss.

[74] Santo Tomás de Aquino, Summa theologica II-II,q. XXIX,a.1.

[75] D. Diego Saavedra Fajardo.Corona Gótica, citado por Ferrol, op.cit., p.223.

[76] D. Diego Saavedra Fajardo. Empresas Políticas. Idea de un Príncipe Político-Cristiano, op. cit., Empresa XCI.

[77] Citado por Quentin Skinner. The Foundations of Modern Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1978, 2 vols., vol. II (The Age of Reformation), p.160.

[78] Idem, ibidem, p. 149.