Concito os leitores a refletir por alguns momentos sobre os dois parágrafos a seguir, escritos com um intervalo de pouco mais de dez anos, para ver se é crível terem sido escritos pela mesma pessoa.
“Entraram então na floresta de pinheiros, onde ainda havia resto de neve entre duas rochas, sujos de terra e folhas caídas; os pinheiros já transudavam resina ao sol resplandecente de abril e sobre suas raízes floresciam anêmonas azuis, enquanto sobre os arbustos de avelãs e através das folhas mortas se espalhavam as anêmonas brancas. O musgo exalava um vapor morno; por entre os troncos das árvores se via o brilho da relva campestre estremecendo sobre os prados e ao longe a enseada azulava através da leve brisa; esquilos corriam entre os galhos e ouviam-se as marteladas e os pios do pica-pau.”
“Sem esperar mais, salto da cama, abro a janela e atiro-me no pátio. Caio em cima das roseiras e minha camisa de dormir não me protege contra os espinhos. Estraçalhado, ensanguentado, atravesso o pátio, cortando os pés nas pedras, pisando cardos e urtigas, escorregando sobre objetos desconhecidos; chego à porta da cozinha que dá para o apartamento do médico. Bato, nada de resposta! Só então descubro que está chovendo. Oh! Miséria das misérias! Que fiz eu para merecer essas torturas? Não há dúvida que é o inferno!”
Na transcrição inicial nos deparamos com um ambiente de calma e tranquilidade, que nos imerge na beleza plácida de uma zona rural ainda não adulterada pela presença humana, ao passo que na segunda o panorama e as percepções sensoriais sofrem mudança brusca. Como se informou, 11 anos transcorreram entre uma descrição e outra, mas ambas foram produzidas pela pena de August Strindberg (1849-1912), genial romancista, dramaturgo, pintor e fotógrafo sueco.
Elas se encontram nos romances Gente de Hemsö, que a editora paulista Hedra acaba de lançar em tradução direta da versão original sueca (1887), em brilhante trabalho de Carlos e Leon Rabelo e, Inferno, editado por Max Limonad em 1982, com tradução de Ismael Cardim. Esse romance apareceu em 1898, em Paris, lançado pela Societé du Mercure de France.
Já o título dado por Strindberg ao romance escrito em Paris, e em francês, explica a natureza patológica do drama pessoal vivido pelo artista incompreendido, que no final dos anos 1800, depois de alguns períodos na Suíça e na Áustria, de novo se refugiara na capital francesa em uma espécie de autoexílio agravado por constantes estados de depressão aguda, manias de perseguição e desejos de suicídio, que os médicos facilmente diagnosticariam como doença mental. August havia fugido de Estocolmo deixando para trás a mulher e uma filha recém-nascida. Pelo que se percebe de seus escritos da época, sobrevivia do auxílio financeiro de amigos, embora tenha se vangloriado inúmeras vezes de que tudo o que escrevia era imediatamente publicado, devendo então dispor, se não se tratasse de mais um de seus delírios, de boa fonte de recursos.
Nos últimos anos passados em Paris August residiu no Hotel Orfila, aquele mesmo que Henry Miller perpetuaria em seu Trópico de câncer, até retornar a Estocolmo para perambular pelas casas de parentes de sua primeira mulher e, provavelmente, em clínicas de tratamento para esquizofrênicos. No tempo em que viveu em Paris, a capital do século 19, como a definiria o filósofo alemão Walter Benjamin, Strindberg ainda não completara 50 anos de vida, mas estava definitivamente enclausurado em uma espiral de medo e remorso, crises mentais cada vez mais corrosivas, que, segundo Ismael Cardim, obrigaram-no a “renunciar à glória das letras em troca de uma viagem pelos subterrâneos do conhecimento”. Dentre os amigos próximos de Strindberg, o mais insigne foi o pintor norueguês Edvard Munch, com quem vagava pela vasta cidade, especialmente por Montparnasse, Jardim de Luxemburgo e Quartier Latin, em encontros quase sempre regados a doses industriais de absinto.
Em Paris, quem se apresentava era a sombra debilitada de um artista que dez anos antes fora capaz de plasmar com extraordinária precisão, ou memória fotográfica, as tintas fortes da rusticidade da vida rural, como assinala a introdução de Leon Rabelo em Gente de Hemsö. O romance foi concebido em uma primeira estada de seis anos de Strindberg na França e na Suíça e publicado em 1887 pela editora Bonniers, de Estocolmo, com estrondoso sucesso.
Rabelo nos diz que “talvez pela saudade, talvez por vingança, ele se propôs nessa obra a recriar o ambiente natural e humano dos arquipélagos da Suécia, lugar de nascimento de sua cultura há milênios”. Aliás, um universo bastante familiar a Strindberg, que passara “vários verões na ilha de Kymmendö, no arquipélago ao sul de Estocolmo”, visitado pela primeira vez em 1871. Foi nesse cenário que o romancista se inspirou para criar Gente de Hemsö, mantendo “uma quase intocada relação originária das pessoas com seu entorno natural, com as condições climáticas e com as tradições milenares”. Rabelo enfatiza que tais elementos constituiriam a espinha dorsal daquele que o próprio autor garantia tratar-se do primeiro romance genuíno que escreveu.
Em uma situação diferente, mas com muita semelhança, Cremilda de Araújo Medina (Viagem à literatura portuguesa contemporânea), relata que José Saramago viveu uma experiência análoga ao escrever o romance Levantado do chão, no qual logrou o sucesso de “macromizar uma superfície microscópica”, no caso o Alentejo. Coube ao romancista traçar o perfil da região por meio das experiências vividas pelas figuras humanas ali plantadas. Observador atento das peculiaridades da gente e do entorno, como Saramago descreveria determinado ambiente rural luso, Strindberg, provavelmente calcado na figura do professor de violino que passava as férias de verão na fictícia Hemsö, deu vida a personagens inesquecíveis como a sra. Flod, matriarca da propriedade, o capataz Carlsson, o filho Gusten e o impagável pastor luterano Nordström, cujos impropérios, talagadas de aguardente e faro apurado para moçoilas fornidas de carnes, não poucas vezes o faziam relegar a segundo plano o catecismo.
Todavia é a presença da natureza, “ora terrível, ora imensamente sedutora”, conforme a definição de Leon Rabelo, que se impõe aos personagens, a ponto de se perceber “a grande alegria com que Strindberg lhe dá voz própria e escuta seus rumores, como ele nos mostra o mar e a terra, o sol e a neve, descrevendo seu imemorial pêndulo de adversidade e bonança”. Além disso, o romancista demonstrou sua perfeita familiaridade com os elementos naturais do arquipélago, ao discorrer com propriedade sobre aspectos da flora e da fauna (peixes, pássaros, árvores e flores), bem como em minuciosas digressões sobre técnicas de navegação, componentes de embarcações, agricultura, caça e pesca. A paisagem agreste e a rudeza dos tipos humanos que se movem sobre ela tocaram inevitavelmente (e não poderia haver elogio maior para ambos) a sensibilidade artística de outro gênio sueco, o cineasta Ingmar Bergman, que em vários de seus filmes, especialmente Persona, soube retratar, para o fascínio da vasta pletora de apreciadores de sua obra, quão tênues são os laços que unem o lirismo e a angústia dos homens e mulheres que povoam a escrita do autor de O povo sueco.
Gente de Hemsö é um caleidoscópio das impressões recolhidas por August Strindberg do convívio com os habitantes de sua terra natal, especialmente daqueles seres forjados pelo trabalho duro do campo e das incertas lides marítimas em busca dos arenques, percas e solhas. Nas ocasiões da colheita os homens prestantes se uniam para ajudar a vizinhança e, depois do trabalho, se fartavam com a boa mesa e a cerveja espumante. Os casamentos comunitários – como a da sra. Flod com o capataz Carlsson – eram uma festa de arromba da qual todos participavam, assim como nascimentos, batismos e cerimônias fúnebres. Na verdade, é com um enterro que o romance chega ao clímax, em um choque emblemático entre a fúria da natureza e a linguagem desapiedada de Strindberg. Gusten e Carlsson enfrentam a nevasca para levar o corpo da sra. Flod à igreja onde Nordström oficiaria as exéquias. Carlsson acabou se desgarrando do grupo e o caixão com o corpo da mulher afundou no mar.
Gusten, o novo senhor de Hemsö, conseguiu encontrar a direção da vila e tarde da noite bateu na casa do pastor. A busca continuaria na manhã de domingo se todos concordassem com a suspensão da missa. Ao meio-dia os homens desanimaram. O pastor se aproximou e abriu o livro dos salmos para dirigir uma pequena cerimônia e todos descobriram as cabeças. Ao final Gusten agradeceu e pediu ao servo de Deus que dissesse algo também para Carlsson:
“Tudo foi dito para os dois”, respondeu Nordström.