Relançamentos de gravações de Drummond e Vinicius mostram que a leitura de poesia merece mais atenção
Não deve passar sem registro o fato de que duas antologias poéticas foram relançadas no final de 1993: a de Vinicius de Moraes e a de Carlos Drummond de Andrade. Não em livro, mas em fita (cassete), com os poetas lendo alguns de seus poemas, [extraídos] de livros e momentos literários distintos.
O fato em si é raro e merecedor de destaque, sobretudo tendo-se no horizonte a exiguidade da discografia da literatura brasileira, que parece ter se esgotado com o monismo, ao menos como uma prática ao alcance do público. Quase todos os principais poetas direta ou indiretamente vinculados ao modernismo, entre eles João Cabral, puderam registrar as leituras de seus próprios textos, emprestando-lhes a dimensão oral, concretizada.
Recentemente, Haroldo de Campos – um poeta não ligado ao modernismo – procurou retomar essa tradição com o lançamento de um CD contendo suas oralizações para os textos de Galáxias (1963-1976).
Esse fato – desinteresse pela voz dos poetas – tenha talvez explicação na existência de uma música popular forte, com letristas [de] marcada influência literária, como Caetano Veloso e Chico Buarque. Porém, esse dado – isolado – não basta para que se possa compreender a verdadeira waste land que se tornou a oralização de poesia no Brasil. Países de música popular forte – como os Estados Unidos – mantiveram a tradição de os poetas terem suas vozes registradas. Outros, com música popular fraca – como a Alemanha –, procuram estimular, por meio das rádios e das leituras em locais públicos, a poesia vocalizada. Na Europa, especialmente na Alemanha, essa prática vem se dando ligada à música eletrônica.
Vinicius de Moraes
A antologia de Vinicius reúne treze de seus poemas. A voz do poeta é anasalada, de quem acabou de acordar ou de quem está resfriado. Um dos versos – integrante de um dos sonetos dos “Quatro sonetos de meditação” –, lido por ele, dá o tom da fita: “Ser íntimo como a melancolia”. Melancolia entrecortada por humor.
A audição permite interpretações outras dos poemas de Vinicius. Vinicius – ao contrário de Drummond – vai-se confundindo com os poemas – em um “crescendo”, sempre. É como se buscasse uma proximidade física com as palavras que escreveu.
A antologia de Vinicius se inicia com “Desespero da piedade” – publicado em 1943, na coletânea Intermédio elegíaco.
O texto é uma adaptação moderna das “Litanies de Satan”, de Charles Baudelaire. No lugar de “Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria”, Vinicius vai de “Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde”. O poema é uma prece, que tenta radiografar todos os tipos que circulavam pela sociedade no início dos anos 1940. No papel, a seco, não desperta o mesmo interesse que desperta quando ouvido. A voz o recontextualiza, atenua seu lirismo muitas vezes – aos olhos de hoje – kitsch. Versos como (referindo-se às prostitutas) “E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno” são ditos com contenção e contundência. Vinicius combina os elementos da tradição luso-brasileira – o tom de balada, o lirismo, a melancolia – com o humor e o despojamento da voz de conversa, da fala direta entre duas pessoas.
O poema seguinte, “A estrela polar”, é uma pequena peça, por assim dizer, à la Lorca. Quase uma vinheta de humor absurdo: “De repente o mar fosforesceu, […]/ E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico”.
Os temas amorosos e sexuais atravessam toda a produção de Vinicius. Não poderiam deixar de estar presentes nesta antologia. Aparecem de forma relativizada no “Desespero da piedade”, mas em “Rosário” tomam o corpo inteiro do poema. “Rosário” pertence ao Encontro do cotidiano e foi escrito no final dos anos 1930 e início dos 1940.
Relata a primeira relação sexual do poeta com uma prostituta, à beira-mar: “Onde se fazia em água/ onde de um peixe que era/ em mil se multiplicava […]”.
Em “Quatro sonetos de meditação”, a leitura de Vinicius procura – de modo despojado e íntimo – ressaltar as aliterações dos textos, para reafirmar os sentidos: “[…] Quando o escuro/ Do crepúsculo mórbido e maduro/ Me leva a face ao gênio dos espelhos […]”. A audição desses poemas deixa claro que Vinicius quer mesmo se confundir, se dissolver com a voz entre as palavras: “Num constante arremesso largo e aflito/ Eu me espedaço em vão contra o infinito”.
As três peças finais do lado A são das melhores da produção do poeta. “Allegro” e “Epitáfio” são textos metrificados em cinco sílabas. Vinicius, na leitura, não respeita o roteiro semântico traçado pela métrica e pelas estrofes. Lê as frases inteiras: “Um vento feroz estorcendo as fibras dos caules enormes”. Essas duas peças são, por assim dizer, neossimbolistas – os sentidos vão se dando por frações de mistérios: “Aqui jaz o Sol/ O andrógino meigo/ E violento, que/ Possui a forma […]”.
“Marina” explica o lado coloquial do poeta – é uma conversa com Marina, evocando lembranças amorosas. E também, na leitura, uma performance de sons – os sentidos, os movimentos sensuais, deslizam em rimas como “beira-luz/baiacus”.
O lado B da fita se abre com o clássico “Soneto da separação”. Há duas leituras dele. Uma feita por Vinicius e outra – musicada – por Tom Jobim. A leitura de poesia propõe – de modo geral – a voz desinterpretada, sem melodia explícita, em um jogo harmônico de pausas e ênfases. Na leitura, o poeta mostra sua voz como ela é, sem as mistificações do canto.
Em uma comparação: a leitura de poemas se aproxima mais do rap que da música cantada. Ela é falada. A leitura de Vinicius do “Soneto” é mais rica que a de Jobim – que, mesmo tentando ser despojado, enfatiza os aspectos lírico-dramáticos do texto. Jobim faz o texto ficar mais melancólico do que é. Já Vinicius – com voz de amador – emoldura corretamente os sons e sentidos, equilibrando-os.
Mas Vinicius está – como fundador de uma tradição – nos limites da música popular e da poesia falada. Foi ele o primeiro a propor o entrelaçamento das duas áreas, com sua participação na bossa nova. Mas Caetano Veloso – tropicalista – faz uma leitura mais contundente e eficaz de um poema como “O pulsar” (Augusto de Campos, 1975) do que Jobim faz do “Soneto da separação”.
Vinicius tem um lado dolente, romântico, chopiniano. É o que se pode ver e ouvir também na leitura de “Mensagem à poesia”, com o piano de Francis Hime. Entre a contenção da fala direta e as ênfases afetivas, desliza a voz do poeta na leitura de seus textos.
A fita se encerra com quatro peças. “Poema enjoadinho” e “O poeta e a lua” formam um bloco de humor absurdo – à la Edward Lear. Em “O poeta e a lua”, Vinicius vai transformando o satélite em uma mulher, por meio de aproximações e imagens disparatadas. A leitura é rica em promover síncopes: “[…] Depois a lua adormece/ E míngua e se apazigua…/ o poeta desaparece/ Envolto em cantos e plumas […]”. Já o “Soneto da despedida” vai no mesmo [diapasão] de “Soneto da separação”.
O grande momento deste lado da fita é “Balada da Praia do Vidigal”. Vinicius alterna um tom elevado, marcando a distância do fato vivido, com um tom coloquial, despojado. Há trechos dolentes e outros ferozes. O poeta tentando se confundir com as palavras, para ressuscitar o momento: “Com a fria areia molhada/ Vencendo as mãos dos alísios/ Nas ondas de tuas saias […]”.
Carlos Drummond de Andrade
Diferentemente de Vinicius, Drummond tem a voz mais clara, mais recortada. Drummond pronuncia mais as palavras em si, com a voz roufenha. As leituras de Drummond são mais tensas, com mais pausas e síncopes.
As pausas parecem ter a função de destacar as palavras entre si e as palavras elas mesmas. Como se funcionassem, simultaneamente, dentro e fora do poema que as arregimenta. A materialidade sonora da palavra se evidencia mais com Drummond, que consegue ser, ao mesmo tempo, seco e profundo, tenso e emocional.
Há − também com Vinicius, em escala menor − uma ruptura clara com a música e com o canto. A música aqui é mera moldura para as vocalizações. Os dois poetas leem seus textos em andamentos moderados. As leituras de Drummond são mais voltadas para dentro. Ele não exibe – como faz a maioria dos cantores populares – sua voz. Ele apenas “desinterpreta” os poemas, em seu jogo de silêncios.
A antologia de Drummond reúne dezessete peças, retiradas de Alguma poesia (1930) e dos livros subsequentes, até A rosa do povo (1945). É o melhor Drummond, que seguiria poeta de primeira grandeza até Lição de coisas (1962). “Infância”, que abre a antologia, “No meio do caminho” e “Quadrilha” integram sua primeira coletânea. Representam o impacto do modernismo ainda em flor. A leitura preserva o tom conversacional dos textos. “No meio do caminho” é o mais polêmico poema da literatura moderna brasileira. Suscitou, quando publicado na Revista de Antropofagia, no final dos anos 1920, as mais contrárias reações. Murilo Mendes, em 1945, dizia: “E essa história de que ninguém se recorda dos poemas modernistas não é verdadeira. A pedra no meio do caminho, de Drummond, ficou tanto quanto o ‘I-Juca-Pirama’”.
A leitura de Drummond privilegia a palavra “pedra”, sempre dita com maior, embora discreta, intensidade. É como se a voz a erguesse como um totem sonoro, em torno do qual deslizassem os outros sentidos. As outras palavras do poema são pronunciadas de forma largada, mansa, enquanto “pedra”, de modo enfático.
É das melhores da fita a leitura do poema “Confidência do itabirano”, que está em Sentimento do mundo (1935-1941). Ela explicita sentidos contidos na leitura a seco, no papel. Soam como lâmina versos como: “E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação” ou “Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”.
Drummond incorpora – com naturalidade – em suas leituras o som do virar das páginas, as respirações inadequadas, o som do entreabrir dos lábios. Suas vocalizações giram em torno do seco e do pungente, mas sempre contido – o que desenha o tom íntimo e não melancólico das leituras, como se ele estivesse presente, falando em voz baixa, dentro de sua casa. “Mãos dadas” e “Mundo grande” revelam ao ouvinte o Drummond engajado – acompanhando a consolidação do fascismo e nazismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
“Procura da poesia” é dos mais importantes poemas da literatura moderna brasileira. Foi publicado em A rosa do povo (1945). É uma extensa e concentrada reflexão sobre os planos materiais e espirituais da elaboração de um poema. Drummond lê os versos como se fossem antissentenças soltas no espaço que se vão articulando em um conjunto. A leitura é levemente nuançada, seca, para quebrar o tom de “fórmula” que poderia emanar do texto. O poema é dialético. Vai fazendo poesia com as coisas e temas que nega ser poesia. Vai negando a poesia feita durante o poema: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. A leitura, natural, quase desleitura de tão despojada e leve, faz com que os sentidos flutuem aos ouvidos: “O canto não é a natureza/ nem os homens em sociedade”. O tom solene, pseudossolene do início, se interrompe abruptamente no final: “Ainda úmidas [as palavras] e impregnadas de sono,/ rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”.
O lado B da fita começa com “O mito”. Drummond lê o poema com voz levemente rouca. Pronuncia de modo levemente deturpado certas palavras: “E fulana diz mistérios,/ diz marxismo, rimmel, gás./ Fulana me bom-barrr-deia/ No entanto sequer me vê”. O verso curto e tenso é contornado nas pausas e dicção direta. Há pausas explosivas: “Acaso a vistes, doutores?/ Mas eles respondem: Não […]”. Este “não” é enfaticamente dito. A combinação de palavras solenes com dicção coloquial vai traçando o perfil de fulana – a mulher moderna. Certos trechos, escondidos na extensão do texto, ganham com a oralização: “já sem cabeça e sem perna/ à porta do apartamento,/ para feder: de propósito/ somente para fulana”.
Drummond, mais que Vinicius, lida sempre com extensos conjuntos de palavras. São raros os poemas curtos… Mas, mesmo nos longos, o poeta encontra o fluxo adequado, traduzindo-os para o espaço sonoro. É certo que essas oralizações não são tão intencionais, propondo-se bem mais como resultado do que como programa. Talvez resida aí sua graça e seu caráter modernista. Tais leituras não se propõem a dilacerar as palavras, reinterpretá-las, reexperimentá-las no espaço do som. Elas apenas são. “O mito” traz verdadeiras irrupções poéticas na voz de Drummond: “Sou eu, o poeta precário/ que fez de fulana um mito/ nutrindo-me de Petrarca,/ Ronsard, Camões e Capim; […]”.
“O lutador”, “Memória”, “Morte do leiteiro”, “Confissão”, “Consolo na praia” e “Oficina irritada” são os outros textos que compõem o lado B da fita. Em certo sentido, pode-se afirmar que a leitura de poesia pelos próprios poetas equivale à música erudita. Não é experiência que diga ao corpo, imediatamente. Exige concentração intelectual. Não precisa se pretender profunda.
A gravação de “O lutador” – um dos clássicos da literatura brasileira – é curiosa. Nela Drummond altera – e não pouco – a versão do poema apresentada no livro José. Por exemplo, “guardarei segredo de nosso comércio” transforma-se em “guardarei sigilo de nosso comércio”. Ou: “Na voz, nenhum travo/ de ira ou desgosto”, transforma-se em “nenhum travo de zanga ou desgosto”.
É esse comércio entre palavras e vozes dos poetas que faz a grandeza e a importância viva desses relançamentos, que se constituem em verdadeiro alento para a cultura poética brasileira.
É hora de cobrar os relançamentos de raridades como Poemas de Manuel Bandeira (Continental, 78 rpm), as gravações reunindo Bandeira e Drummond, e João Cabral e Murilo Mendes (Festa, 33 polegadas) etc. E também de abrir espaços para outras vozes.
As obras
Antologia poética de Vinicius de Moraes, Série AudioLivro. Treze poemas recitados pelo autor – entre eles “Desespero da piedade”, “Quatro sonetos de meditação” e “Soneto da separação”.
Antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, Série AudioLivro. Dezessete poemas recitados pelo autor, entre eles “Morte do leiteiro”, “No meio do caminho” e “O lutador”.
Ambos os lançamentos são da Philips/PolyGram. À venda nas principais lojas de discos.
Ouça Drummond lendo seus poemas
http://musicapoesiabrasileira.blogspot.com/2007/05/oua-drummond-recitando-seus-poemas-i.html
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Nota:
[1] Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 27 de fevereiro de 1994.