(John Cage*)
A mostra está acontecendo, como ocorre periodicamente há quarenta e nove anos, no pavilhão da Bienal situado no Parque do Ibirapuera em São Paulo, cuja arquitetura foi projetada por Oscar Niemayer. Em 2010, ficará aberta entre 25 de setembro e 12 de dezembro e reúne 650 obras de 157 artistas do Brasil e de diversas partes dos continentes americano (sobretudo a latino-américa), africano, europeu e asiático. Essa edição tem a particularidade de representar uma virada histórica para a instituição que, na gestão de Heitor Martins – que preside a fundação desde maio de 2009 –, passa por uma reestruturação financeira, tendo sanado um rombo que chegou a quatro milhões de reais em 2008, e começa um movimento rumo à superação da crise institucional que vinha sofrendo desde o início da década.
A 25ª Bienal de São Paulo, de 2000, chegou a ser adiada para 2002 e, a partir dela, realizaram-se edições de pouco interesse e impacto sobre o público ou a sociedade; a exemplo da 28ª edição, de 2008, que, além de ter poucas obras realmente interessantes, expôs, completamente vazio, o segundo dos três pavimentos de seu pavilhão, sob o argumento de que assim se valorizaria a arquitetura do prédio, tornando-a parte da exposição… terminou conhecida como a “Bienal do vazio”. A 29ª, entretanto, parece tentar retomar a tradição cosmopolita e internacional da instituição, que foi fundada em 1951, inspirada na Biennale di Venezia, e foi, naquela altura, a segunda maior exposição de arte contemporânea do mundo.
O título da edição deste ano, “Há sempre um copo de mar para o homem navegar”, é um verso do poeta alagoano Jorge de Lima, retirado do primeiro canto de seu épico moderno A Invenção de Orfeu (1952). Nele, o poeta retoma Camões ao caracterizar como protagonista e sujeito, sob o qual se dará o fluxo lírico, um “Barão assinalado, sem brasão, sem gume e sem fama” que, nesse trecho da obra, está a navegar à procura de uma ilha: “Mesmo sem naus e sem rumos,/ mesmo sem vagas e areias,/ há sempre um copo de mar/ para um homem navegar”. Ao emprestar tal verso ao título da exposição, a curadoria, chefiada pelo arquiteto Agnaldo Farias e pelo pesquisador Moacir dos Anjos, propõe uma metáfora que dê conta do tema que funcionou como vetor para a montagem desse ano: a investigação das relações entre arte e política. Ou, como se lê no catálogo da exposição: “[o que se busca é] afirmar que a dimensão utópica da arte está contida nela mesma, e não no que está fora ou além dela; afirmar o valor da intuição poética face ao “pensamento domesticado” que não emancipa, embora grasse em partidos políticos e mesmo em instituições dedicadas à educação formal. […] [A mostra] vai pôr seus visitantes em contato com a política da arte”.
Dessa forma, opera-se uma escolha de obras contemporâneas que despertem o olhar e a percepção – de modo mais ou menos direto – para questões ligadas à ação dos sujeitos e da arte sobre o mundo. Considerando-se o fato de que a atividade central da práxis política, segundo a tradição greco-latina, se dá no campo da ação dos indivíduos na pólis, pode-se dizer que, a partir das obras de arte escolhidas para integrar a coleção, pretende-se refletir sobre a capacidade dos discursos individuais – a exemplo do próprio discurso artístico – de interferirem na realidade imediata e interagirem no que vem sendo chamado de campo micropolítico da sociedade.
Diversos suportes e meios de expressão
Essa relação entre arte e política é abordada pelos artistas de diferentes maneiras. A norte-americana Nan Goldin, no vídeo The Ballad of Sexual Dependency, por exemplo, organiza um álbum de memórias pessoais (com fotos tiradas entre seus amigos e conhecidos, registrando imagens de seu cotidiano) numa sequência narrativa. Sua ação está centrada em figuras e cenas que revelam os hábitos e a experiência da juventude das décadas de 1970 e 1980 até o ano de 2004.
São capítulos (diferentes formas de organizar as imagens) com cenas de sexo e uso de drogas e que, em sua montagem, revelam o comportamento cultural e político dessa geração. É interessante notar que o material usado para a composição do vídeo é de ordem pessoal e, portanto, não recebe um tratamento artístico a priori. Isso evidencia a forma – a própria sequência enquanto fator de movimento narrativo – pois gera uma sensação de descontinuidade “estilística” entre as imagens, o que reforça a sensação de decadentismo e prostração transmitidos pelas figuras e pela música (pop 80’s e 90’s) que as acompanha.
Outra forma de abordar o tema se pode ver em Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (1979-1981), do espanhol que vive no Brasil, Miguel Rio Branco, que tem uma política compositiva radical. O vídeo registra cenas da convivência entre prostitutas, homossexuais, famílias, crianças de rua, traficantes, vendedores e habitantes do Pelourinho, em Salvador (BA), nos anos 1980. É composto por montagem com fragmentos de imagem, música e excertos de filme, feita a partir de uma técnica sofisticada de sobreposição e colagem.
As cenas são provocativas – com imagens de figuras distorcidas pela miséria de sua realidade acenando sexualmente para a câmera – e revelam, entre ruínas, cortiços e lixo, a arquitetura barroca do bairro histórico brasileiro. Há trechos que mostram, ao som de música do século XVII e ruídos, as igrejas e sua arquitetura colonial contrapostas à violência da vida urbana da capital soteropolitana.
O vídeo é o suporte mais utilizado entre os artistas da mostra deste ano. Ele permite uma construção narrativa e/ou documental de fácil e ágil produção, possibilitando ao criador, entre outras coisas, uma transmissão imediata e com possibilidades muito variadas, de forma e conteúdo audiovisual. Na série Guerra é guerra, de Ronald Duarte, são vistos os registros de ações do artista pelas ruas do Rio de Janeiro. Em O que rola VCV, um dos exemplares da série, um caminhão-pipa com água vermelha passa, por três dias, lavando o chão do morro. É interessante ver a reação das pessoas, que ora é de ódio, ora de aplauso e mobilização (política).
Outro vídeo é Dissonant (2010), da indiana Manon de Boer: consiste numa performance da bailarina belga Cynthia Loemij, que improvisa sobre a sonata nº 2 para violino do compositor, também belga, Eugène Ysäye (1858-1931). E Le Clash (2010), do albanês Anri Sala, filma os arredores de uma casa de shows de punk rock desativada, em Bordeaux (França), enquanto, de dentro da mesma, é projetada a amplificação de trechos da canção do The Clash, “Should I Stay or Should I Go”, executada por uma caixinha de música, que, pelos efeitos de distorção do processo de amplificação, aparentam um timbre de órgão que toma conta da rua.
De fato a minoria dos trabalhos da Bienal é o que o público brasileiro, em geral, espera ver num espaço de exposição em termos de suporte. São poucas telas e esculturas – embora haja: Circle of Animals, do chinês Ai Weiwei, que retrata o zodíaco-bestiário da China, ou as telas Viaduto, Rua deserta e Rua deserta com cerca (2010), de Rodrigo Andrade, que exploram a dimensão objetual da pintura, ou seja, a formação da imagem a partir do material, o que sugere uma procura por se afastar do abstracionismo e evitar o figurativismo convencional.
Time Divisa
Assim, em geral, os dois vetores que atravessam a 29ª são o tema político, com seus inúmeros afluentes e estratégias de abordagem e o experimentalismo formal que, em muitos casos, é posto a serviço da pesquisa e da invenção ou reinvenção dos suportes e materiais possíveis a serem utilizados numa obra de arte. Há fusões entre vários suportes tradicionais em um único trabalho, há obras digitais, multimídia, instalações convivendo com meios antiquíssimos como o desenho – vale ver as duas séries de desenhos do recifense Gil Vicente, Inimigos (2005) e Suíte Safada (2007-2010), que são impactantes e provocativas, cada uma a sua maneira. A primeira, mais politizada, trata da revolta e do protesto político; a segunda bem humorada e de forte apelo erótico aborda o sexo na vida urbana moderna.
Mais experimental e polêmica, Time Divisa (2006-2010), do mexicano Antonio Vega Macotela, propõe uma fusão entre o happening e a exposição de uma coleção de objetos (o que poderia, com cautela, ser remetido à ideia de ready-made de Marcel Duchamp). Esses objetos são resultado de 365 “trocas temporais” entre o artista e detentos da unidade carcerária de Santa Marta Acotila, na Cidade do México. Essas trocas funcionavam do seguinte modo: Macotela realizaria, fora da prisão, um pedido feito por um preso e este, em contrapartida, faria um trabalho (artístico) determinado.
O artista parte da afirmação de que “só o tempo pode equivaler ao tempo”, referindo-se à noção marxista de equivalência – como característica essencial e imanente à mercadoria –, para orientar sua composição que, assim, poderia questionar a mercantilização do tempo e a coisificação da vida e aspirar a um sistema de trocas que não fosse motivado pela moeda, mas por valores afetivos, por desejos ou por ideais como a liberdade. Cada uma dessas trocas temporais – uma para cada dia do ano – resultou, portanto, em um objeto a ser exposto.
Alguns dos resultados dessas trocas são: um quadro com uma colagem feita a partir da organização de unhas – as dos companheiros de cela – numa folha de papel; outra folha: bitucas de cigarro; um mapa acústico com a representação gráfica dos sons do entorno da cela; um mapa da prisão, medida em passos de um ambiente a outro [veja imagens e registros do projeto da obra]. A escolha do ambiente prisional não é casual. Nele, os tempos são todos medidos e determinados segundo as leis e os valores de uma sociedade e de seu sistema produtivo.
É interessante notar que, em Time Divisa, o objeto de arte não é considerado como tal simplesmente por meio da ordenação de seu material. Mas o é, muito mais por conta da experiência e dos valores que mobiliza: no local de exposição restam os resíduos da ação de troca, entretanto estes não são apenas documentos – como os registros de happenings, normalmente documentados por fotos, relatos, ou artigos de jornal –, trazem em sua forma a realização, organizada como objeto de arte, da experiência (ou experimento) que os levou a serem construídos.
Esculturas, monumentos, instalações
A obra que gerou um efeito político mais imediato foi Bandeira Branca, de Nuno Ramos. Foi uma das únicas na mostra a causar polêmicas junto à sociedade civil, entre outras como Inimigos, de Gil Vicente, e a série Experiências, do modernista Flávio de Carvalho, que se constitui de uma série de happenings feitos entre os anos trinta e os anos sessenta e que, na época, gerou protesto e agressões físicas contra o artista. Ramos preencheu o espaço do vão do pavilhão com três esculturas (em forma de tronco ou coluna) feitas de taipa de pilão e areia e, ao som de sambas melancólicos, empoleirou nelas três urubus vivos (engaiolados num amplo espaço por uma rede). Foi justamente o uso dos animais como objeto de exposição que indignou determinados setores da sociedade, que, assim, protestaram e exigiram perante os tribunais a remoção dos animais da mostra. O Ibama, então, ordenou a remoção das aves, que, antes, haviam sido autorizadas a participar da exposição pela mesma instituição e eram acompanhadas por equipes veterinárias.
A escultura-gaiola de Ramos foi imediatamente identificada pelo público como um problema de ordem ética e não por meio de seu sentido estético, o que chegou a irritar o autor, embora seja, também, uma forma engenhosa de abordar o tema proposto. Do ponto de vista simbólico-imagético, a obra é altamente irônica. A aparência de uma rija estrutura construída de areia, somada à melancolia fantasmagórica, que a música e as imagens sugeridas pelos urubus e pela taipa escura transparecem, tudo isso pode ser visto como uma provocação. Aponta simbolicamente para os problemas de sustentação e aparência de firmeza das atuais condições sociopolíticas no Brasil. Realiza uma crítica e expõe seu protesto estético contra a realidade ética – o que seria por um lado inverter o problema clássico entre a razão ética e a intuição estética proposto pelo livro X da República de Platão.
Outras obras podem chamar a atenção: A italiana Tatiana Trouvé, em 350 points towards infinity (2009), preenche um espaço com prumos e pêndulos pendurados ao teto, que traçam diagonais e retas em direção a um imã escondido debaixo do chão. A sensação é de grande rigidez da trama de linhas que estão, entretanto, separadas do chão por um espaço de cerca de três centímetros, ou seja, “flutuam” em relação a ele. O chileno Alfredo Jaar, em The Eyes of Gutete Emerita (1996-2000), relaciona um texto que relata partes do genocídio, de 1994, em Ruanda a uma mesa de slides com centenas deles reproduzindo uma única imagem: os olhos de Emerita, a protagonista documentada no texto.
A Bienal, enfim, traz ao main-stream brasileiro uma boa reunião de exemplos do que vem sendo produzido recentemente pela arte experimental no Brasil e ao redor do mundo. Nesse sentido tem um papel importante no contexto cultural do país, pois mobiliza setores importantes da economia e da mídia e volta suas atenções para uma arte desprogramada, inventiva e atrativa. Depois de assistir à mostra, ocorreu-me a ideia de que dizer que a arte contemporânea seja difícil de compreender é, certamente, um contrassenso. Difícil é o acesso a ela – neste país, por diversos motivos – porque, na verdade, ela é a que mais diretamente fala sobre o que está à nossa volta, embora seja esse o mesmo motivo que a faz ser evitada pelo senso comum e pelas instituições, em geral.
* Em: John Cage, De segunda a um ano (1995), Ed. Hucitec – (Trad. Rogério Duprat).
São Paulo Bienal 2010