Georges Aperghis, nascido em Atenas em 1945 e instalado em Paris desde 1963, é um compositor cuja obra se divide entre os universos da música instrumental ou vocal, o teatro musical e a ópera. Sua obra Récitations foi concluída em 1978, dois anos após haver fundado o “Atelier Théatre et Musique”(ATEM), ambiente no qual pôde renovar sua prática de compositor recorrendo a atores e músicos em suas produções. O estabelecimento do ATEM marca uma etapa de amadurecimento do trabalho de Aperghis. Lá, o compositor participa dos ensaios, quer experimentar cada situação e ver já em seguida os resultados cênicos e musicais. Transforma, cria e recria sua obra a cada instante, em um ato coletivo (Zagonel, 1992, pg.52)
Dedicada à atriz Martine Viard, Récitations traz condensadas características desses universos artísticos pelos quais Aperghis transita. Treze partituras se apresentam ora com poemas em língua francesa de autoria do próprio Aperghis, como o presente na Récitation 9, ora apenas fonemas, associados também a sonoridades metafóricas (Durney in Aperghis, 1992, p. 5), como o “kit de percussão” que inspira a Récitation 13. É importante entender a dedicatória da obra de Aperghis a Martine Viard: o fato de ela ser uma atriz que sempre estudou o canto, optando em sua carreira pelos palcos teatrais em oposição àqueles em que “os mesmos papéis tradicionais de uma estrutura operística” (Viard in Aperghis, 1992, pg.3) são reproduzidos, aproximou-se nos anos 70 de compositores que pesquisaram no domínio da voz, como Michel Puig, Claude Prey e o próprio Aperghis. Seus trabalhos marcam uma época em que passa a existir uma escritura vocal mais aberta ao trabalho do intérprete. Na medida em que deixa diversos parâmetros controláveis propositalmente em aberto, o autor ratifica o exercício da atriz no papel de “co-realizadora” da obra, interpretando não só o sentido musical da escritura como também cênico, deixando-a livre na criação de seus próprios personagens imaginários (Viard in Aperghis, 1992 p. 3).
A idéia de que o teatro ocidental, a partir do séc. XX, deixa de estar subordinado à supremacia do texto é importante para a idéia de “Teatro Pós-Dramático” sustentada no livro homônimo de Hans Thies Lehmann. Essa busca do “pós-dramático”, apesar de não ser “anti-dramática” e nem constituir uma corrente estética encerrada, encontra-se na sua não-linearidade, nas possibilidades temporais mais diversas e surpreendentes e também na liberdade em optar pela utilização de aparato tecnológico ou mesmo do retorno ao próprio texto como recursos para a produção de um trabalho.
Nesse sentido, também, as Récitations se reportam ao métier teatral: o uso do texto significante está presente em alguns momentos como recurso composicional, não sendo, no entanto, criador de uma dramaturgia, como no caso dos poemas musicados, nos lieder ou canções populares; em outros momentos, a sensação de apreensão do texto apenas resulta de justaposições fonéticas; são casos nos quais Aperghis brinca com elementos caóticos e permite-se, a partir desse caos, fundar suas próprias linhas de discurso (Guattary, 1991, p. 1)
Polissemia em Récitations
Ao descrever a subversão da idéia de tragicidade em “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, a teatróloga Marcella Mortara afirma:
“o herói trágico é o homem comum, da rua, do ônibus, do trem, que faz os gestos mecânicos de Vladimir e Estragon, que sofre o peso da civilização de que é prisioneiro, que lê todo dia nos jornais a ameaça de destruição pesando sobre a humanidade, mas que, ainda assim, espera, absurdamente, irracionalmente, contra todas as possibilidades, a vinda de Godot”.
Aperghis é grande admirador da obra de Beckett (Pruvot, 1992) e, se no autor Franco-Irlandês encontramos uma tendência à iconoclastia, expressa em personagens desprovidos das virtudes dos semideuses, no compositor das Récitations vimos essa idéia transparecer através da manipulação de elementos banais, da vida cotidiana francófona, organizados de maneira a sequer contarem uma história. Vemos que os fragmentos se acumulam e não compõem sentenças ordenadas, no entanto imagens triviais estão emaranhadas e coloridas de diferentes maneiras (glissandi, articulações rítmicas, insinuações melódicas), provocando diferentes reações e entendimentos a cada reiteração. Frases comuns, do dia-a-dia, embaralhadas e re-significadas e personagens providos de características demasiado humanas, são aspectos que se cruzam na busca por algo diferente do que seja a catarse dramática. No caso de Aperghis, ainda, pode-se dizer que vem questionar o que ele considera uma “era de obras primas” (Ledoux, 2009), e possibilitar uma experiência menos comprometida com um evento artístico.
“A criação do mundo não é um edifício pensado por um deus. Nada é coerente, tudo é absurdo” (Aperghis). Aperghis não entrega significados ao seu público. Seu material em Récitations, assim como em muitas outras obras suas, são os fonemas. A manipulação dessas partículas fundamentais, destes pequenos átomos, gera compostos tão distintos quanto o kit de percussão a que alude a Récitation 13 com suas consoantes oclusivas, ou a Récitation 10, em que não são mencionados aspectos de significância resultante dos jogos fonético-silábicos. Daí o fato de Martine Viard haver gravado, no registro mais conhecido dessa obra, diversas versões para a Récitation 10 (a própria intérprete vivenciando significações plurais da partitura), e apenas uma para a Recitation 13 (a polissemia se desdobrando quando da apreensão de cada espectador). O espectador das Récitations não está diante de um jogo de adivinhações do qual não terá desfrutado caso não mate a charada, aquilo que guiou a caneta do compositor. Este, por não enxergar coerência necessária nem sequer na construção do mundo, não espera uma apreensão linear e homogênea da platéia:
“Elaborando esta musica, eu retiro uma parte do sentido ou o sentido por completo, para que o espectador não seja prisioneiro de uma imagem. É inútil pôr no papel o que todos compreendem. É preciso dar um sentido, contradizê-lo em seguida, fazer com que o espectador acredite que está no caminho certo… Engano, era uma pista falsa! Eu brinco com sua memória.”(Aperghis)
Teatro Musical e a Não Especialização
Quando a função do intérprete da partitura passa a ser o de parceiro na obra, a despeito do fato de a partitura já existir anteriormente ao seu trabalho, o limite entre a composição musical e a teatral se estreita, pois a produção da música é tratada de forma similar àquela dos grupos de teatro, especialmente os do universo “pós-dramático” que, mesmo que não independentes do texto, ao menos questionam a submissão incondicional às forças dramáticas (Lehmann, 2007) e, em última instância, ao papel do criador do roteiro e analogamente do compositor:
“ Para seu público, o palco não se apresenta sob a forma de “tábuas que significam o mundo” (ou seja, como um espaço mágico), e sim como uma sala de exposição, disposta num ângulo favorável. Para seu palco, o publico não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembléia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. Para sua representação, o texto não é mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles tem que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora um papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo ”,
…diz Benjamin a respeito do teatro épico de Bertolt Brecht. Associado ao panorama trazido por Lehmann, pode-se perceber com essa passagem a importância que o pensamento deste teatrólogo teve para o gênero: um sem fim de exemplos encontrados em “Teatro Pós-Dramático” nos mostra como, no teatro do século XX, o ator realmente se transforma em “material humano” [1], ou seja, alguém que pode servir tanto como personagem para uma encenação quanto para narrar um caso, cantar uma canção, erguer um item do cenário, conceber este mesmo cenário ou iluminá-lo. Essa diferença é fundamental para uma recontextualização política do teatro e, quando a música cruza seu caminho, para uma reformulação dos papéis de todos os envolvidos no fazer musical.
Mauricio Kagel, compositor importante na historia do teatro musical, manifesta abertamente, em entrevista (Kagel, 1972), esse caráter politizante do teatro musical, ao inserir a música num contexto “anti-especialistas”, oposto, neste aspecto, ao da grande orquestra, em que funções específicas são exercidas por profissionais específicos (profissionais que tocam notas agudas, profissionais das notas graves, das notas inarmônicas, notas que duram pouco).
Em todo o Teatro Musical de Kagel, assim como naquele produzido por Aperghis no ATEM (este ainda mais radical na medida em que o material humano do Atelier é também composto por amadores da periferia parisiense), não há músicos que não sejam atores, vide Récitations, foco do projeto de pesquisa que originou este artigo, em que a solista é cantora/atriz, ou o espetáculo Machinations, do mesmo autor, em que o elenco é formado por uma flautista, uma dançarina, uma violista e uma atriz que desempenham papéis similares entre si, sem utilizar-se diretamente dos recursos de suas profissões (exceto pela atriz, talvez). Um teatro que questiona a tradição dramática se associa à música para, valendo-se de idéias que conduziram Brecht ao desenvolvimento do teatro épico, produzir uma música em que as etapas de criação e amadurecimento de uma obra se superpõem em processos de caráter coletivo.
A partitura de Récitations é um roteiro de trabalho, endereçado a uma profissional não especialista: importante que Martine Viard fosse uma atriz também estudiosa da música. Igualmente importante foi que ela conhecesse o universo da música pop, para encontrar num baterista de Rock a imagem afetiva que a guiasse em sua interpretação da Récitation 13. Essa provocação às estruturas da música de concerto pode ser vista como uma das fundamentais contribuições de Aperghis: para além da fragmentação do discurso musical, fragmenta-se o processo, em consonância com a fragmentação de interesses e da própria atenção de artista e público no contexto atual. Fragmentam-se também as funções, e o compositor pode ser diretor de cena ou cenógrafo (como ocorreu quando da primeira montagem em palco de Récitations), assim como o ator transcende a mera execução e agrega valores outros ao roteiro, é ele também um criador, um questionador.
Vídeos
Récitation 8
Récitations pour voix seule
Machinations 1/3
Notas
[1] Em consonância com o enfoque plural do objeto de estudo, cite-se aqui também o exemplo de Medeia, de Pier Paolo Pazollini, em que, entre tantos não-atores que compõem o elenco do filme, a cantora Maria Callas vive seu único personagem no cinema.
Bibliografia
- APERGHIS, Georges. Récitations (encarte de CD) Disques montaigne “Musique Française D´haujourd´hui “ – CD 782007, 1992
- ARMSTRONG, Richard. “Who the H… is Georges Aperghis? – 1996 Opera Production” in http://www.banffcentre.ca/theatre/history/opera/production_1996A/biography.asp
- BENJAMIN, Walter. “Que é o teatro épico?”. in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
- GUATTARI, Félix. “L´hétérogenese dans la creation musicale”. in : Chaosmose. Editions Galilé, 1992
- KAGEL, Mauricio. “Entretien” in Musique en Jeu: nº 9, novembre 1972. Editions Du Sueil
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo, Cosac Naify, 2007. - MORTARA, Marcella. Teatro Francês do Século XX. Serviço Nacional de Teatro, 1970.
- PRUVOT, Christele. “Musiques en Scene 1992”. in : Leonardo Music Journal. The MIT Press, 1992.
- SANSON & GINDT, David & Antoine. “T&M a vocation à amener des idées”. Paris, 2009.
- ZAGONEL Bernadete. O que é gesto musical. São Paulo, Brasiliense, 1992.
Outras Fontes Consultadas
- www.aperghis.com
- www.banffcentre.ca
- brahms.ircam.fr
- www.info-grece.com
- LEDOUX, Claude. Palestra do Prof. De Análise do Conservatório de Paris. “Análise da Récitation 11”. Universidade Estadual de Campinas, 2009