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Situação na SÍRIA

1. O silêncio antes da explosão

Tunísia, Egito, Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos, Líbia… E em meio a todos eles, e através da fumaça radioativa encobrindo e espalhando as notícias sobre o Japão, esquecemos da Síria. Força do hábito: pois a Síria, antiga aliada da ex-URSS, após a queda do Muro, manteve sua própria “cortina de ferro”, mais isolada e aparentemente mais distante do resto do mundo do que pressupõe sua localização no âmago do Oriente Médio.

Tunísia, Egito, Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos, Líbia… E enquanto isso, longe dos olhos e ouvidos da mídia mundial, já há quase um mês um forte movimento popular vem desafiando o governo sírio, e sendo pelo governo sírio fortemente reprimido, com mortos e feridos a mancheias.

Tunísia, Egito, Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos, Líbia… E eis que de repente chega a notícia da queda do gabinete sírio – e da provável renúncia próxima do presidente Bashar al Assad. Mais do que nos demais países árabes, é o fim de uma era. Um fim muito abrupto de uma era tão duradoura quanto dura.

Bashar al Assad herdou o poder de seu pai, o “grande” Hafez al Assad. Hafez al Assad, por sua vez, era um dos principais herdeiros da principal corrente política árabe dos anos 1940-50, o nacionalismo pan-arabista. O nome de seu partido, que até hoje governa o país, é Baath. Onde já ouvimos isto antes? Na queda de Saddam Hussein. Pois o partido que até então governava o Iraque se chamava… Baath. Pois havia um Baath iraquiano e um Baath sírio – ou melhor, ainda há um Baath sírio. Considerados partidos irmãos, sua ideologia comum se baseava no conceito do pan-arabismo, segundo o qual todos os árabes constituem um só povo, divididos primeiro pelo Império Otomano e depois pelos impérios britânico e francês. Daí a aparente contradição de um nacionalismo pan-arabista, pois se é pan-arabista, não tem como objeto um só Estado-nação, mas vários. Ou não, se se considerar, justamente, que a nação (árabe) é na verdade uma só, e os Estados em que atualmente se divide são artificiais, pois de origem colonial (além de negadores da unidade árabe original dos tempos do Califado).

Tendo no “herói” do pan-arabismo, o egípcio Gamal Nasser, sua figura maior, essa outrora poderosa doutrina geopolítica tem como último representante importante o governo sírio. Uma das principais implicações de seu fim histórico, no bojo do fim desse governo, advém do fato de que o pan-arabismo era fortemente nacionalista e radicalmente laico. Eventualmente com algumas tinturas “socialistas”, em função do alinhamento à ex-URSS no contexto do confronto com Israel e da Guerra Fria, o pan-arabismo foi, ao longo da segunda metade do século 20, a grande força alternativa e antagônica ao islã político no mundo árabe. Seu último bastião cai agora.

A se confirmar sua renúncia, é evidente que Assad estará adotando a saída egípcia, de entregar os anéis para não perder os dedos. Neste caso, deixar o poder junto com toda a cúpula do partido Baath para entregá-lo ao exército, a fim de que este tente comandar e controlar a transição política. Os riscos são, literalmente, explosivos. Pois pode ser muito pouco e muito tarde.

O islã é uma força política relevante em todos os países muçulmanos. Há porém variações de intensidade, podendo-se pôr num extremo, por exemplo, Irã, Arábia Saudita e Paquistão, e no outro Tunísia, Marrocos e Jordânia. O caso sírio é hoje uma incógnita quanto a essa intensidade, em função do poder particular do aparato repressivo montado nas últimas décadas pelo Baath sírio. A repressão à oposição islâmica foi ali especialmente intensa, extensa e brutal, justamente pela força potencial dessa oposição. Essa situação se resume na famosa e infame “regra de Hama”.

2. A “regra” (e o fantasma) de Hama

Em fevereiro de 1982, o exército sírio cercou com tanques a pequena cidade de Hama, selando-a, enquanto a aviação síria pulverizava tudo e todos que ali se encontravam, de casas a cães e bebês, passando por homens, mulheres e crianças. Foi o (anti)clímax de uma revolta islâmica liderada pela Irmandade Muçulmana síria, iniciada em 1976. Hama era uma vila que se tornara o centro de ação da Irmandade Muçulama. Os números de mortos variam entre 10 mil e 30 mil, com algumas estimativas chegando a falar em 80 mil. O que não se discute é ter sido o evento de Hama o maior massacre pontual praticado por um governo árabe contra seu próprio povo na história recente.

Do massacre surgiu a infame “regra de Hama”, forma amargo-irônica de dizer que esse era o modo como os autocratas árabes costumavam lidar com o problema do islã político (ou segundo os mais cínicos, como deveriam lidar).

Tanto o caso de Hama quanto a particular rigidez do governo sírio, até aqui interpretada como força, levam a crer que o fim do status quo será ali explosivo. A população síria, ao identificar a brutal repressão das últimas décadas com o agressivo laicismo baatista, e instigada pelo ódio dos islamistas sírios remanescentes, tem tudo para querer se livrar de tudo de uma vez e de uma vez por todas, e agir então não de modo revoltoso ou reformista, como tunisianos e egípcios, mas francamente revolucionário, como os iranianos em 1979.

A isso se deve juntar o fato de a Síria ser um dos países árabes menos influenciados e influenciáveis pelo Ocidente, ou por qualquer outro país, em função de seu histórico isolamento. Seu único aliado importante é hoje o Irã.

Se essa análise estiver correta, o resultado final (ainda que não o inicial) da débâcle do establishment sírio seria uma revolução não-porosa a controles externos, e de provável caráter islâmico.

A Síria faz fronteira com o Líbano, sobre o qual tem enorme influência, e com Israel, com quem tem um contencioso geopolítico-militar nas colinas de Golã. Isolada do mundo árabe por sua política de antagonismo agressivo ante Israel (contra o qual já participou de três guerras) desde a assinatura do acordo de paz de Israel com o Egito em 1979, uma Síria teocrática contaria hoje com a aliança do Irã e com as armas do Hizbolá no Líbano e do Hamas em Gaza, seus aliados inevitáveis.

As variáveis e os perigos envolvidos na atual tempestade de areia que varre os governos árabes são inúmeros, e alguns potencialmente catastróficos. Uma Síria explodindo numa revolução popular contra as forças de segurança, deixadas para trás pelo grupo de Assad para tentar manter o que resta, será uma Síria cujo governo, cujo partido governante e cujo aparato de segurança terão sido sequencialmente destruídos, restando no lugar um enorme e enormemente perigoso vazio de poder, pronto para ser ocupado não necessariamente pelos mais populares, sequer pelos mais difusamente influentes, mas pelos mais assertivos e ousados. O modelo, mais uma vez, é o dos bolcheviques de Lênin a dar um golpe voluntarista dentro da revolução popular russa. Um dos principais candidatos potenciais, com o apoio reverso do Hizbolá líbio e do Irã, são os islâmicos sírios, há décadas aguardando para se vingar dos “infiéis” da família Assad em geral e do massacre de Hama em particular. Eles já têm seus mártires, seus heróis, seus inimigos, seus aliados e seu projeto político alternativo. Outros tomaram o poder com muito menos.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).