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Velida Crash – Livro, Passagem e Vida de Régis Bonvicino

Antes que se faça a leitura de Até agora (poemas reunidos), em torno de Régis Bonvicino gravita uma concentração de referências que convergem e se complexificam. Entre o envolvimento inicial com o Concretismo e a atuação no jornalismo cultural (Veja, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo), entre a tradução/transcriação desalinhada do paideuma (Laforgue, Girondo, Creeley) e a produção de textos sobre política mundial em blogs de grande visibilidade aos infonautas da hora, o poeta paulistano vem desenhando, no decurso das últimas décadas (entre um e outro século), um percurso muito próprio. Na contraface de um oscilante, muitas vezes inconsistente, panorama de livros e atos de criação, seu modo de produzir, de conceber publicações e eventos não se desliga de um sentido de intervenção. Rastreável é um raio de ação a partir de uma convivência com os últimos manifestos (especialmente, aqueles do século XX reengrenados, em sua segunda metade, pelo plano-piloto do front concretista), tornando-se inevitável aliar seu projeto poético a um movimento (certamente, em dissenso com a chamada por Danto “era dos manifestos”), um corte conceptivo indisposto com um único plano de inserção da escrita no tempo.

Até agora, o itinerário de Régis Bonvicino pela poesia se dá de modo nada pacífico, não repousado sobre o já feito. Quando o nome e a letra de Bonvicino são referidos, rearticulados, ganha relevo a dimensão de um homem em sua solitude inventiva, sempre em irrompimento. Algo que toma mais proeminência no presente, após as rupturas vanguardistas em seu credo evolutivo de sequências orientadas para o mais novo. O timbre reconhecível de um século de mudanças progressivamente acionadas promove um cortejo incandescente de figuras e estratégias formais tanto situadas quanto insidiosas, provocadoras que são de uma revisita crítica e criadora, deslocada de sua contingência epocal. Até agora testemunha tal passagem, tal problematização.

Mesmo em seu diálogo com o Concretismo, Bonvicino já podia expor uma inserção interveniente no andamento de um processo construtivo-composicional, que acaba sendo a narrativa acerca do legado criativo de uma época precisa (a segunda metade de um século e seu excedente, exponencialmente outro milênio). O trajeto do autor de Até agora nesses 35 anos de escrita torna, inclusive, mais nítida essa configuração inevitável, pluralizada, do traço de história(s), à maneira de J-L Godard, a contar das transformações das linguagens, das culturas e dos modos de produção da poesia (para fora de uma quadratura formal-evolutiva).

Mais potente e vibrante se revela essa narrativa-passagem do poeta e crítico, do tradutor e ativista da escrita, quando se tem em mira um período em que o desaparecimento e as reaparições da literatura se efetuam em face da sistematização high-tech do império informacional, audiovisual, numa escala que refaz a imagem e, também, o mapa do mundo. Tudo ocorre em simultaneidade, dissociando-se de um esquadro consecutivo-causal, entre a homogeneização de um consenso globalizante e as convulsões de um cotidiano planetário espetacularizado, mediatizado, características de uma civilização complexa, transnacionalizada. Movida pelo imperativo econômico do tecnoglobal capitalismo, assim como pela emergência de formações culturais muito diversas, em seu vórtice de divergência e disseminação pela mescla, pela pertença indiscriminada, hibridamente dada, ao presente, a face mundializada civilizatória toca em todos os pontos a poeisis em suas variantes enunciativas, criativas e operacionais.

Surpreendente é ler o potencial de exterioridade e exposição – como formula Giorgio Agamben o dimensionamento da linguagem em sua abertura ao viver-em-comum, em A comunidade que vem – engendrado pela “poesia toda” de Régis Bonvicino. É o que mais se aguça no contato com um autor aparentemente circunscrito a um círculo de procedimentos programáticos avant-garde quando de sua primeira apresentação em livro, movido que era por uma acepção experimental, experiencial, não limitada, contudo, ao discurso à la lettre, sob a demarcação de um posto conquistado avant. Pela posteriorização, por um dado de incurso tardio, o muito jovem poeta de Bicho papel e Régis Hotel se inscreve em seu momento (final da década de 1970) – no cume e na mutação subjacente ao mais novo, indissociável do trajeto concretista há mais de 20 anos do surgimento de suas linhas atomizadas de ação/progressão.

Ready Régis

Se o contrapolo de uma acepção do “literário”, adstrita à página e ao papel particular de um autor, se revelou até certo momento em sintonia com os pressupostos reconhecíveis da vanguarda, evidenciável se apresenta na estreia de Régis Bonvicino outra sinalização. Despontam outro instante, outra instância figural e recursiva no que envolve a revolução das formas e a historicidade que a permeia. É o que se dá à leitura em “Horready Mades”, por exemplo, através do margeamento concedido à palavra POESIA na lateral-exterior de um quadrado branco onde se demarca ÁREA DE SEGURANÇA. Em um compasso simultâneo de remapeamento, as balizas icônico-sintáticas de uma textualidade experimental passam por uma antievocação articulada como fragmento de voz, de ser-de-linguagem sob o influxo, porém, de uma busca depuradora, tanto paródica quanto paradoxal a vibrar dentro de uma estrita espacialidade: “Eu queria/uma poesia/Como um quarto branco/Quatro paredes/Oito cantos” (“Sem título”, p. 355).

Integrantes de Bicho de papel, os poemas aqui citados oferecem uma consonância mais reveladora com a época em que surge Bonvicino e da arquitetura trilhada em formato breve, na borda e na dobra da estética concretista, quando seguidos de Régis Hotel. Neste livro, publicado em 1978, um senso agudo de recepção – tal como indicia o título – se apresenta, também, concomitante à ressonância máxima do rumor com que o autor opera um manancial de recursos e referendos advindos do âmbito da poesia mais nova, representada ainda pelo plano/manifesto concreto, cruzada, naquela altura da história, com a “desarmada” criação independente, timbrada pelo gesto comportamental e pela “pegada” leve, bem humorada, do talhe e do design formalizados ao longo do trajeto feito pela militância vanguardista. “o cabelo crespo cresceu/na viagem/ele dizia vem cara/vamos transar essa miragem…” (“duda veio”).

O Régis de Hotel recolhe na fonte os pressupostos e os procedimentos da experimentalidade, advindos do seu convívio com a arte concreta, assim como se faz embalar pelo que é contingente e temporal, pelo que contamina a experiência da escrita (para fora de uma marca programada, diga-se) mais do que pela adoção de uma dicção contracultural (daquela em vigor à volta dos autores “marginais”). O que se mostra interessante nesse segundo conjunto poético é, justamente, uma urgência de nota – entre a gíria do instante e o contágio submetido a uma filtragem, sem perda de força e de mescla. Vibra, precisamente, o poder de tocar os extremos de vertentes simultâneas de criação (o concretismo, em sua terceira década, e a nascente “produção alternativa”), num ponto-de-cruz da palavra lançada em encruzilhadas decisivas de relançamento, de redefinição. Assim, outra dimensão criadora e textual se apresenta sob o signo mutante de orientações políticas, comportamentais, essenciais ao fazer poesia numa hora não-mais dada em linha reta, crescentemente depuradora, mantida por um radical e refratário repertório, confrontada que foi por desafios contemporâneos de arte e atuação cultural, repercutidos no Brasil sob o peso do ditame militarista na contramarcha do século progressivo, sempre à frente. Ao captar um desfile de mercadorias, à evolução de uma parada selvagem reificada na cidade-capital como miragem do cada vez mais novo, sob um efeito de ponto-morto do desejo, a pauta do poema se abre para um constructo de prosa: “As putas fazem ponto na porta do cemitério da Consolação. O brasiwagen chega. O brasilcel freia…” (“Sem título (6)”)

Coetâneo da emergência do corpo na cultura, na esfera das artes naquele instante, Régis Hotel se faz hospedeiro de uma espécie de composto conceptual observável em performers de suas próprias presenças no ato da criação e dos dimensionamentos obtidos pela imagem – pelas imagens da arte –, como praticaram Vito Acconci e Dan Graham através de peças fotográficas/videográficas em torno de suas anatomias e dos espaços ocupados por suas figurações físicas em diversos habitats, suportes e geografias (a cidade novaiorquina, sobretudo). Se, por um lado, Régis mantém ativo o foco experimental, não o aparta, numa outra ponta do seu projeto, daquela ressonância, já comentada, de rumorologia, do scratch deliberado de limites entre e a autoria e a pregnância da inscrição, da exscrição pensada por Jean-Luc Nancy – escrita expropriativa, sem fundamento na remissão, não ancorada no destinatário, sem preparação prévia nem meta culturalizada, codificada (blur no plano das visibilidades; estática nas camadas de sonorização). “a verdadeira/linguagem cifrada/é a dos homens-escada/que sobem na vida/sem dizer nada” (“Sem título (2)”); “eExXpPeErRiImMeEnNtTeE/oO aAbBsSuUrRdDoO sSoOmM/dDeE uUmMaA cCiIdDaAdDe (“Sem titulo (3)”).

Quanto mais emerge a exteriorização dos protocolos do museu das formas e das formulações em que se sedimenta a linha enunciativa do poema, mais a recorrência ao readymade será extraída de uma combinatória alea, não encontrando sustentação tão somente no objeto industrial, e, sim, num campo disperso de propagação, de baralhamento de planos, em que a objetualidade se revolve, ao refazer a subjetividade, a corporalidade, com toda uma tópica/topologia superficialmente exilada do escrito.

Torna-se a sonda da linguagem simultânea às inquirições do corpo e seu corpus. Uma esfera implicada, investigativa, integra a literatura como sistema de informação (como concebe o semioticista dos media, Friedrich Kittler) nada infensa aos domínios de outras linguagens assim como de seus impactos e inter-relações culturais, experienciais, produzidos em um diversificado espaço de referência e ressonância no que diz respeito às suas modulações de sonoridade, imagem e pensamento (tais como apreendidas, de modo seminal, sempre influente, por Ezra Pound).

Ron Silliman iria sublinhar, num ensaio publicado em 1998[1] , a inviabilidade de uma perspectiva unidimensional na poética contemporânea, seja na ênfase à textualização seja na presentificação do autor, como ele observa na prática testemunhal das leituras correntes da slam poetry, feitas na “batida” pretensamente comunicacional e direta da palavra ao vivo, à altura do vivido. Na outra margem, a compreensão de um uso puro da linguagem, autonomizado do persona-show contido no gesto genuinamente autoral, não se mantém na pulsação de uma historicidade capaz de esquadrinhar a projetada impessoalidade do escrito – da linguagem desenrolada em torno de si, no interior de um livro. Tal processo se faz legível no momento de Régis Hotel e de tudo que já se prefigura, aí, no itinerário de Régis Bonvicino, numa legítima passagem de época (no encaminhamento da gradual democracia da nação, em sincronia com uma gritante inserção contemporânea buscada pelas poéticas daquele período, inclusive nos domínios do Concretismo, tendo-se em mira a consciência pós-utópica da militância-vanguarda por parte de Haroldo de Campos).

Em sintonia com a elipse aural, conjuntamente ocorrida em volta do texto e do autor, como bem estuda Nick Piombino[2] , o estudo de Silliman expõe a linguagem ao plano das conjunções/conjugações trabalhadas pelo poema de modo integral, não englobante. Uma vez que os processos sensitivos, sensoriais, se recriam na escrita precisamente através da marcação de uma fronteira, do ponto em que se dá a falha de uma única, predominante, dimensão, o conjunto sônico-visivo-intelectivo se torna um objeto transicional (com base nos textos de Winnicott), produtor de aura através da elipse de cada um dos sentidos presentificados no poema, em relação suplementar, um em extensão ao outro. A criação de poesia passa a se dar, dentro dessa compreensão, para além da acepção monovalente de um programa (seja em nome da linguagem, seja em nome da experiência do poeta). Som, visão e pensamento se extraem de uma ambiência múltipla, pluralmente intrincada, interligada, em um “holding environment”, sublinha Piombino tendo como base as investigações de Winnicott.

Os desdobramentos da L=A=N=G=U=A=G=E Poetry, refletidos por um integrante de tal vertente como é o caso de Silliman, dos quais vai tomando parte Bonvicino, num envolvimento plurívoco e partilhado com Charles Bernstein e Michael Palmer, acabariam por tornar claro o interesse por uma poesia espacializada em agenciamentos que escapam ao “ventriloquismo de um títere por meio do qual uma babel de vozes críticas contendem”[3] .  Importa, justamente, a um número extenso de poetas norte-americanos surgidos desde os anos 1970 a multiplicação de linguagens, formatos e projetos de livros tomados pela perda da aura englobadora da figura do texto e da presença do autor. É justo, num curto-circuito elíptico, relacional, que a escrita como acontecimento pode reinventar um corpo ampliado de configurações da palavra, como também de potencialidades estéticas e cognitivas assimiladas dos diferentes registros e práticas discursivos. A identidade é esse agenciamento frisado por Silliman através do qual leitor e autor se atualizam, envolvidos por figurações nada lineares da história, da psicologia e da cultura, assim como por incontáveis outras séries do saber e dos signos. O autor no palco não se furta à voltagem por escrito de sua buscada performance (já que a palavra oralizada  não se limita a uma contrafacção do trabalho escritural, muito ao contrário, não pode abster-se de seu entramado sígnico). De igual modo, em outro extremo, o texto no livro jamais moverá um dado se mantido presa do referendo interior à escrita, destituindo-se da performatividade semiótica colhida em um vasto arsenal tanto teórico quanto literário, tanto estético quanto vivencial.

Ao recepcionar a imagem do poeta e seu corpo em todas as suas adjacências, em suas fronteiras de experiência e cultura, Bonvicino se encontra, no final dos anos 1970, em total consonância com a inventividade pós-aurática engendrada pelos autores da Language Poetry, entre os quais ele se incluiria. Tal consciência, tal aderência ao presente se alastrará na produção seguinte, reunida em Sósia da cópia.

Quando se lê a sintonia da reunião poética de 1983 com o livro-óxido pós-borgiano (tal como consta de “quando se lê”), mais uma vez se observam no itinerário do autor as variantes do timbre Ready Régis, característico de uma postura de quem se oferece em exercício pelos extremos que tangenciam sua produção – o lastro concretista em sua virada tardo-moderna; o módulo de brevidade desenvolvido pelos poetas posteriores às vanguardas no Brasil (entre os quais fulgura Leminski, companheiro de geração e seu grande interlocutor nos 70-80) e no mundo (conforme desponta   para   Régis  sua  aproximação  em  escala  crescente  da Language Poetry); a marca de posteriorização, enfim, a assinalar outra época na história e nas concepções de teoria, cultura e arte. A subjetividade se assinala em insurgência não prospectiva como se tratasse de uma assinatura a ser inventariada, assim como os códigos matriciais, referenciais, da vasta e volante enciclopédia constante do ato de criação, entendido pelo autor de Sósia da cópia como palco, receptáculo, hotel ultrarressonante de frequências estranhadas ao seu corpus de hospedeiro.

Nada dualista, o compacto breve modulado por Régis Bonvicino desde o primeiro livro, tomado agora em diversas derivações de nota, fragmento, “papel nu” incorporado de passagem até ganhar o contorno de um relato-suma em “vida, paixão e praga de rb”, deixa de comparecer como contraposição ou sublevação de um senso de vivência e pessoalidade, de um simplificado “retorno do real” após a era das mentações e dissecações construtivistas. Não referenda um revés do discurso localizado no sujeito, no envio a uma possível origem. Muito ao contrário indica, segundo formula Hal Foster, em The Return of Real, o caráter rasurado, traumático, engendrado como trama da finitude e de uma posteriorização. Os traços de uma pregnância de realidade, de historicidade, se dão como um gestual afásico-falho em seu esforço de recuperação, de remissão ao vivido, à existência em sua materialidade e imediaticidade: “a erosão do tesão/nuvem/prova/ferrugem/imagina-se//errata/o próximo” (“quando se lê”).

Como se estivesse encaminhando-se para o sentido gradativo de uma desfiguração, no trato com o real, que é, ao mesmo tempo, diagrama dos duplos paradoxos, não duais, de qualquer essência ou noção de unidade, Bonvicino está próximo não apenas de outros poetas, mas de um cineasta contemporâneo, revelado em fins da década de 1990, como Harmony Korine. Em seu filme Mr Lonely (2008), o baralhamento da cópia faz de criaturas-covers uma comunidade de sósias indistinguíveis de seus modelos, como a frisar os sinais dobrados, clonados, de uma cultura desenraizada, na origem, e do simples aporte numa destinação depuradora final. Interessante é ver que a dublagem de Michael Jackson feita pelo protagonista ocorre a partir da imagem do cantor-dançarino de Thriller convertida à pele branca, modelada já numa recorrência real em que qualquer endereçamento ao princípio, à etnia em sua fidedignidade biológica, se mostra metamorfoseado em suas primícias. É do cover de um clone que se ocupa Mr. Lonely, numa correspondência gritante com o lapso fundamental, a aporia infinita dos efeitos em abismo das emissões e remissões do escrito, entre livro e vida imediata, entre realidade e referência, contidos em Sósia da cópia e, também, em 33 poemas: “é como se em português/”This lunar beauty…”/tivesse um destino de pastiche” (“Destino de pastiche”).

Pulsa, então, a escrita de Bonvicino numa codificação complexa da letra na página – em seu tracejado de pertencimento e orfandade (mais tarde, viria o poeta a nomear Página órfã) feito no livro branco, puro e atomizador da música autônoma da linguagem, no longo decurso da modernidade, desde Mallarmé até o corte/constructo concretista. Através da forma, formulação, breve, aqui e ali mesclada de prosa, em que se radica todo um projeto, deixa de haver uma retomada atualizadora de pressupostos e proposições legitimáveis na história, mas amplificação desfiguradora, espaçamento no “estado do tempo” (como viria a ser grafado no texto futuro Remorso do cosmos).

Não replica, não redobra, pois, uma linhagem o autor de Más companhias e 33 poemas, juntamente com Sósia da cópia, entre 1983-1990. Ao contrário, R. B. se insere numa voltagem de criação – corroborada pela perspectiva oferecida, em 2010, por Até agora –, da qual surgem poemas impactantes, brilhantemente executados, capazes de dar a extensão da problemática, da controvérsia e – por que não? – da beleza nascida da confrontação e das conjugações nada simplificadas em volta do livro e da passagem de Régis Bonvicino.

 

Orbitação

Sonda e síntese não programática, não dialética, das tensões estéticas e conceituais abertas pelo tempo e na conjuntura brasileira, a poética de Bonvicino ganha um perfil bem particular, concentrado em miniaturas, minudências de flagrantes e paisagens, por meio das quais vem a ocorrer a plasmação de um modo outro de compor. Constante dos livros dos anos 1990 – Outros poemas; Ossos de borboleta; Céu-eclipse –, o jogo do sentido que as peças verbais, plasticamente configuradas em linhas móveis e concisas de sonoridade (como que encaminhadas por um fio de voz, no limite da linguagem), passam a acompanhar diz respeito à concepção e à sideração da palavra em um raio de conexões sempre amplificado, nunca descartado na feitura dos textos.

A forma é obtida na andadura de um percurso, de uma estratégia em que olhar e gestualidade criam uma dinâmica intercambiante, atenta tanto à
macrodimensão ambiente – cosmos e mundo em torno dos quais versarão mais orientadamente os poemas de seus livros recentes (Remorso do cosmos e Página órfã) – quanto à microtemporalidade, àquele micro-vácuo, de que fala o dançarino e performer mineiro Marcelo Gabriel. “…o micro-vácuo não comporta o espaço no espaço (…) é um sintoma do sentido restrito da linguagem, o micro-vácuo é o espaço da respiração (…) é o espaço de uma pulsação cardíaca para outra”.

A imprevisão do espaço no espaço é a certeza de onde parto para coreografar.[4]

A forma advém da imprecisão, da indeterminância (frisaria Marjorie Perloff, leitora da poesia moderna e principal estudiosa da Language Poetry), da imprevisão a que se refere Marcelo Gabriel.  Em convergência com o coreógrafo de Estábulo de luxo, o poeta de Céu-eclipse (livro realizado na mesma época em que o espetáculo era concebido em Minas Gerais) se lança ao desenho-dança-mentação do escrito, a se configurar na linha breve de seus compactos poemáticos no gesto mesmo, sensitivo-sensorial, em que se formam os textos, pelo qual se indaga acerca de instante, história, e repensa a atualidade do ato de escrever. “Mês a mês, sol/quem?/habite-se//O obscuro silêncio de ser/pouco//Nítido conflito/de figuras/visíveis impondo/limites” (“Desconexo”).

A partir da conquista do corpo, da contingência, com seu vasto armazém de coisas e heterogêneos nomes, como poderia grafar o poeta Octavio Paz, teórico da “Consagração no instante” no espaço da poesia, R. Bonvicino se aventura, em livros como Céu-eclipse, na duração e no ambiente urbanos, fazendo um contraponto muitas vezes nas esferas da natureza. Guia-se, assim, por um princípio bem atual de descentralização, confluente com os rumos da Poesia de Linguagem.

Não por acaso, ao travar uma viva correspondência com Michael Palmer, vertida em textos mutuamente traduzidos, em volumes e eventos em comum, o autor paulistano não só efetiva no domínio da escrita um pacto deliberado com a indeterminação e o acaso. Ele se oferece ao diálogo com a produção contemporânea, demonstrando a amplitude de seu cosmopolitismo, mais desabrido do aquele contido na pauta avant-garde. Pois se revela estar capacitado a desbravar outras fontes e matrizes de relação e conceituação poéticas, produzindo assim trocas culturais ao vivo, em tempo presente, numa clara abertura de repertório e intercâmbios criadores.

No livro em que Bonvicino reúne traduções desse autor imprescindível, influente, da poesia americana de hoje, que é Michael Palmer, materializa-se o projeto nascido de idas e vindas de Palmer e do próprio Régis entre Nova York e São Paulo. Trata-se de um trabalho de escrita e transcriação regido por um sentido de viagem orbitada pelo signo da mundialização em seus polos de radiação mais transformadores, em que se captam mudanças de referência e modos de escrever, recepcionar, refigurar o texto de literatura. Entre-viagens, decorre a interpoeticidade de autores da atualidade em quadraturas transversalizadas, para além de uma via estreita de influência/recepção. Cadenciando-um-Ning, um Samba, para o outro chama-se o projeto, o livro ou o espaço formado pela circulação de escritos criados em inglês e português, vertidos nas duas línguas. “Talvez tenha morado numa rua chamada Sí dar. Há uma rua chamada Campeche. Rose/e Andy moram com certeza na Cedar Street. Maçãs não significam nada”. “(171196)”

Não à toa, a referência ao habitar ocorre num crivo outro de pertença, de princípio constitutivo do ontológico (como se lê em Heidegger e, em outro registro, na filosofia de Sloterdijk), pontuando-se pela abertura ao errar, ao desabrigo, em dissenso com o eixo genuíno, constitutivo, da morada (casa do ser, propiciada pela linguagem). Vincula-se, desse modo, à tópica atual, multidisciplinar, dos estudos sobre a cidade, assim como produz seu aporte na condição espacial e convivial da globalidade, marcada pela permutação não hierarquizada dos elos entre centro-periferia, numa recomposição da noção de fronteira. No livro brasileiro e norte-americano de Bonvicino e Palmer, encontra-se “171196”, um poema de Céu-eclipse, que bem situa o rastro lançado pela convivência pessoal e textual, entre viagens e traduções. Afirma-se, então, na escrita de R. B. seu próprio universo limiar de seres, coisas e nomes postos entre casa e rua, de modo irreversível e conexo à passagem indiscriminada produzida entre a cidade de São Paulo e tantas outras do mundo. “Nunca morei numa rua chamada Vidro. Chutei uma vez paralelepípedos. Cada dia/passava como se num espelho – de ecos. Telefones, fios” (“171196”).

Num dimensionamento flagrante dos livros que Bonvicino publicou entre 1990-1996 e firmando a desbravação de uma cosmogonia, Céu-eclipse se apresenta no ponto-limite de uma produção e, também, de uma época que impõe à criação uma amplitude de orbitação. Ao invocar uma sincronia com o espaço urbano, numa profusão de linhas, que se leem como redistribuição tópica dos textos e das imagens-de-mundo, o  livro citado situa os embates com o que chama Steve McCaffery de “consciência nomádica”[5] . Contém o encontro e a dispersão despontados no contato com as grandes conjunções da cosmicidade e das esferas do mundo global, dadas em disseminação e dissídio.

 

Ano Zero Zero – Orfandade Paisá

Remorso do cosmos (de ter vindo ao sol) esquadrinha, no modo breve e processual já conhecido de outros livros mais recentes, o horizonte giroscópico (estudado por Neil M. Denary na paisagem, na cultura e na arquitetura contemporâneas) em que se movem os signos da natureza nos quais se centra e fornece de forma expandida uma dinâmica de esvaziamento e acréscimo, de retração e formação justaposta, proliferada de atributos. É como se, depois de definido o foco da sondagem minimalizada, constante já da forma de anotar/escrever do poeta, os “alinhamentos/e linhas inexistentes” (de que trata o poema “Me transformo”, de Ossos de borboleta) se expusessem agora a um movimento sinuoso e simultâneo, a uma espécie de fissão, de linha-de-corte caosmótica (ao modo multicelular, transdisciplinar, conceituado por Félix Guattari acerca das mutações das ciências e das consciências humanas).

 

…trincaram-se as sedelas do/anzol cumprindo-se a sina, num
movimento perpétuo, (palavras) atraídas por gravidades centrífugas
ou zero, debate de tempestades ameaçadas, ceder, à chuva, ao sol, ao frio, ao/dia, luz elétrica, janelas, portas, elevadores, cadeira, mesa, aviões, vitrines, Lynch/shaved fish, ondas do Atlântico, tráfego, manchetes, o sabiá, suave, no jacarandá –/lezíria, de um único rio, que corre, em todos os sítios…
(“Sem título”)

É do irrompimento de uma ambiência que se ocupam os poemas do livro de 2003 aos quais Página órfã (2007) traria a suplementaridade paralelística, paroxística, de um ingresso na poeticidade do mundo, concebida pelo filósofo grego Kostas Axelos. Frisa Bonvicino o enlace com o mundo, em sua rotação espácio-temporal mais imprevista, como desafio da criação de linguagem, como extracampo ao delimitado e descrito código de uma vanguarda. Distanciada da planificação, definidora de um universo globalizado, estratificado nos quadrantes da economia, a coexistência da poesia com uma concepção modular das relações oferecidas pela acepção de mundialidade (conforme entende J-L Nancy, muito próximo das teses de Axelos) se apresenta como dimensão a ser investigada, incursionada.

Entre o zerar do século/milênio e o efeito da multiplicação, para além da lógica consecutivo-causal da passagem das eras, do bug anunciado, do data crash em acúmulo de corpos e bens capitais, sob efeito da saturação (tomada no cume da cena e da hora destroyers 1192001), a poética de Régis Bonvicino palmilha bem o choque entre a homogeneização da globalidade e o despontar do pensamento planetário (tal como formula Axelos ao longo de sua produção filosófica). Avizinha-se da ética-estética das esferas, conceituada por Sloterdijk, como planos de interrelação potencial, de uma abertura relacional com o universo. Não é por acaso que circulam figuras duplicadas da moda e do modo-de-usar o consumo e a replicação de mercadorias – Kate Moss comparece como musa, conjuntamente composta pela celebrização e pela autodetonação de uma época, em Página órfã. Ao mesmo tempo, vibra na caixa-de-ressonância modular de Régis Bonvicino, especialmente em Remorso do cosmos, a canção-ritornelo de uma era entre repetições e epifânicas marcações não lineares da vida que se segue, sem lógica final, causal. Conforme se lê em “Canção”: “cansaço íntimo/de metais/& vida,/ao menos, oscila//entre o degredo/ de si/vidros se deitam/agora comigo”. Ou ainda em “En las orillas del Sar”: “…peregrinos/concha bivalve/& fole de repente sino/que se repete”.

Ao lançar-se na dispersão, na errância, o trabalho poético de Régis Bonvicino – seu tomo total até agora, dado em leitura – muda a orientação da escrita em curso, no nosso momento, dentro-fora do/no nosso país. Seus livros fazem trilhas. Processam-se como incursos, viagens radicadas em uma época redefinida por cruzamentos de espaço em seus horizontes nocionais,  plurívocos sempre, compostos por signos pulsantes de um plano
constelado de linguagens e saberes.

O autor de Remorso do cosmos consegue traduzir  para  a atualidade uma postura interferente nos modos de se conceber produção de arte nacional na sintonia de um redimensionamento global. Visível se mostra uma forma de projetar a poesia e fazer evento, que mantém o vetor da experimentação em alta, sem mais se reportar ao programático alinhamento da literatura a um princípio agregador, avalizador de um repertório. Segundo consta do seminário “Poesia em Tempo de Guerra e Banalidade”, realizado em 2006, no Brasil (Campinas), por ele idealizado e organizado, seu interesse se concentra no debate sobre diversas formas de criação e culturas, contando com autores nacionais e estrangeiros como o russo Arkadii Dragomoshchenko, o argentino Eduardo Milan, o chinês Yao Freng, o finlandês Leevi Lehto e, certamente, Charles Bernstein, um nome decisivo da L=a=n=g=u=a=g=e Poetry, com quem o escritor brasileiro vem estabelecendo um diálogo constante, marcado por traduções e mútuas colaborações (além daquelas realizadas com Michael Palmer).

A noção de evento se propaga como peça-chave do trabalho de Bonvicino, não fazendo menção tão somente à sua action-writing. Do livro às páginas da web (onde mantém o site da revista Sibila) instala-se uma concepção revigorada da atividade literária no momento em que se encontra sitiada pelos media. Em planos cruzados com produtores artísticos vindos de diferentes continentes, apreende-se no seminário citado, no espaço on-line, assim como em muitas das sequências de Até agora, não só um encontro renovador no âmbito literário, e não apenas por meio de uma sincronia com práticas contemporâneas. Através de discussões mútuas, tradutórias, intercambiadas, entendida como atuação crítica e política cultural, a poesia é tomada como eixo, e, da mesma forma, a ideia de mundo, em suas mutações recentes, num vínculo de correspondências e simultaneidades.

A pauta poética se expande, dentro dessa compreensão, no momento em que não há mais vanguarda nos moldes históricos e ideológicos até então reconhecíveis, mas se mantém a potência experimental – tão bem apontada pela crítica e poeta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes nos ensaios de seu livro Literatura, Defesa do Atrito (Lisboa: Vendaval, 2003) –, na faixa de vibração dos transmissores de amplitude e velocidade que se reportam às formações recentes das culturas no mundo atual. Assim, leem-se as “Histórias de guerra”, escritas por Bernstein, numa discussão pontualizada com Bonvicino, que realiza, também, sua tradução do livro homônimo do poeta novaiorquino. Do mesmo modo são criadas “Definitions of Brazil” (como se pode ler em Página órfã), escritas pelos parceiros Régis B/Charles B. “Brazil is not emerging it’s proliferating”.

Ao descortinar em tempo real, na cena do presente, o panorama de orfandade que pontua a ausência de elo e pertencimento ante a engrenagem econômica de um mundo em consenso globalizado, o autor de Página órfã ativa a potência de nomeação e o enfrentamento do silêncio (operação da palavra escrita em face dos confrontos materiais). Lê-se, justo em “Silêncio”: “o rosto em close do Grito de Munch/mãos na cabeça/no entanto não há espirais/de pôr do sol entre nuvens/azul-turquesa súbito/mas apenas o túnel/escuro”.

No entanto, se há a intensificação da Paisá planetária, desolada entre guerras intermitentes e as variáveis formas de terror, em sua passagem pelo milênio, o poeta investe no seu poder de atrito e confronto e torna extrema a multiplicação de forças e fontes. Como está, lá no início, em 33 poemas: “velida crash que me vandaliza./yeah bárbara tua míngua no planeta!//ah!é dor!é arghh!velida não me esqueça. (“Zap”).

Ao retomar a fontana primicial de uma canção-de-amigo, Bonvicino insere na origem o entendimento de que tudo provém do ruído. Velida crash, a poesia se colhe num manancial hiperescrito, produtor de linguagens e discursos sobrepostos. Não é à pureza do verbo, de um zerar pleno no espaço não dito do poético, que sua criação recorre. Como diria William S. Burroughs, em A revolução eletrônica, o verbo já está inscrito no livro, deixando de promover a metafísica da proveniência e do sopro genesíaco. Literatura é um nome provisório para o cut-up ou pick-up, conforme prefere Deleuze designar a experiência de Burroughs: o fazer-desfazer incessante, em deriva/derivação, das textualidades definidoras do transcurso e do corpo humanos. Desde sempre.

Ou segundo enfatizaria Agamben, em Infância e história: a voz vem depois, passada a fase formadora da aquisição da linguagem. A história se ressitua como essa descoberta crescente da infância no transcorrer de uma vida.

É sob esse efeito que Até agora promove seu extenso campo de leitura. Oferece uma intrigante conjunção entre historicidade e literatura além de surpreender pela tocante força do conjunto contido no livro. É como se atravessar 35 anos se mostrasse como renovação e reencontro com a dinâmica singular da poesia.

Entre temporalidade e escrita a reunião da obra toda de Régis Bonvicino incita o despontar de uma novidade em plena conjugação. Dá testemunho da criação de linguagem numa época em que o fim da arte e o fim da história mais acentuam um potencial insuspeitado, precisamente depois, em um “tempo de guerra e banalidade” (resumiria o seminário de 2006), pós-ideológico, pós-ocidental, no qual Até agora se revela em toda sua experimentação, combinando livro-passagem-vida.

E continua.

 

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Notas

[1] “Who Speaks – Ventroliquism and the Self in the Poetry Reading”. In: BERNSTEIN, Charles (Org.).
Close Listening – Poetry and the Performed Word. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 360-378.
[2] “The Aural Ellipsis and the Nature of Listening”. Op. cit. p. 53-72.
[3] Silliman, Ron, 1998, p. 368.
[4] Marcelo Gabriel. Programa do espetáculo O estábulo de luxo. Belo Horizonte, 1995.
[5] “Text-Sound, Energy and Performance” in ROTHENBERG, Jerome e JORIS, Pierre (Org.). Poems for the Millennium. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1998. p. 427.