“Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor.” Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum, e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem desta para melhor não temos à mão uma borracha que apague os arquivos do vivido. Quem sabe a ideia lhe pareça intolerável. Ao fim e ao cabo, continua negra, ou seja, naïf, burrinha; as luzes do seu espírito não são intensas a ponto de isentá-la da pecha de “faísca atrasada”. Irene ainda persiste, para a frustração do estafeta do juízo final, como uma negra da alma negra.
Não por acaso os personagens negros de Monteiro Lobato estão confinados dentro de lógica idêntica. Pretos e pretas solícitos, velhos e mansos, ou, no extremo, diabólicos e traiçoeiros, como o Saci, cachimbo no beiço e barretinho vermelho, compósito de Vulcano e Ossanha, rapazola deformado, sobre uma perna só e/ou coxo. Condição que talvez lhe faculte um pouco da tolerância do senhor, da capatazia social para com suas oscilações de ânimo advindas do duplo “estigma” físico. Seu caráter fantástico de espírito malévolo e respondão é relevado pelo déficit que ostenta relativamente à “boa aparência” dos senhores. Já Tia Nastácia, irmã siamesa de Irene, está fadada à humilhação doméstica, no livro As caçadas de Pedrinho é comparada a uma “macaca de carvão”. Só para avivar a humana emotividade dos devotos de Monteiro Lobato, registro aqui a existência do substantivo anastácio, do qual deriva o nome da personagem, e cuja acepção indica os significados de “simples e ingênuo: tolo, palerma”. Também o Tio Barnabé, esse natural pretendente à mão da Tia Nastácia, recebe um nome-condenação: barnabé, substantivo masculino que designa “funcionário público, especialmente o de baixo nível hierárquico”.
Revista Bravo
Essa espécie de recall a que vem sendo submetida contemporaneamente a obra de Monteiro Lobato tem como motivação suas ideias racistas e que se revelam abertamente em seus livros, e esse recall teve há pouco outro desdobramento. A revista Bravo!, cujos leitores são mimados por sua publicidade como gente cult, cool e pop, e cujo cinismo irônico e meritocrático de sua editoria está sempre a postos para tachar de bom-mocismo a crítica (vá lá) mais à esquerda, pois essa revista de viés elitizante há pouco publicou e repudiou o conteúdo de cartas em que Monteiro Lobato defende o racismo eugênico. Mas o assunto de capa parece ter causado um mal-estar no diretor de redação. Tanto é que escreve uma “carta do editor” tentando esclarecer (como assim?) os seus inteligentes leitores que o logotipo da revista, estampado no alto da capa, e que de hábito soa como uma interjeição de aplauso, não aplaudia em nenhuma instância a frase escrita por Monteiro Lobato, que de maneira atípica, na edição em causa, substitui a tradicional imagem de uma celebridade do meio artístico que por razões diversas é homenageada com esse espaço nobre. A frase diz: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido”. Há algo de cômico no fato, o editor dispara uma espécie de “não erramos” colocando a publicação ao lado de uma maioria que está longe de ser cult ou cool. Um movimento kafkiano, um calafrio culposo arrepia esse acanhado editorial que tenta inutilmente forjar acepções menos efusivas ao logotipo de mão única que, por várias razões, se limita com a opção “curtir” da comunidade dos facefriends. Isto é, a negatividade crítica precisa dar explicações, precisa inventar sua relevância perante os fast thinkers, mas de modo a não corar a pudicícia da mulher de César. Quem repudia mais alto? Agora que a porta foi arrombada, compartilhar o bônus e mostrar indignação é moleza. A “interjeição de aplauso”, afinal, sempre fora uma contrafação.
“Sinceramente não sei o que este tipo de reportagem pode trazer de benefício”, alguns leitores-seguidores, devotos da figura de Lobato expressam assim sua perplexidade. Afinal de contas, segundo esses depoimentos emocionados, suas histórias ajudaram a salvar uns e outros de uma infância miseravelmente infeliz e solitária; este aprendeu a ser perspicaz; aquela se tornou estudiosa e aprendeu a ter esperança.
Todavia, se de fato sua obra inventou ou “modificou a infância e a juventude de muitos brasileiros”, podemos indagar se, nesse percurso escritural, Lobato não teria deixado vazar, por assim dizer, suas vergonhosas posições racistas, inventando ou colaborando, por sua vez, para moldar o caráter de um adulto reprodutor desse “preconceito civilizado”, amistoso, que, segundo muitos, seria vantajoso relativamente à rudeza da ideologia de um apartheid emblematizado, por exemplo, na história dos conflitos étnicos sulafricano e norte-americano. Críticos disfêmicos argumentam que como contraveneno ou compensação ao racismo ingerido inadvertidamente “crianças e jovens que lerem Lobato terão um contágio de outra natureza: se tornarão adultos mais imaginativos com um interesse infinito por folclore e mitologia”. Se o crítico, com maldosa ingenuidade, aventa essa possibilidade por que não levar em consideração a possibilidade dessa mesma obra fazer com que crianças e jovens se tornem cidadãos anódinos com relação ao racismo velado e covarde de nossa formação? A obra de arte, concordando com a lógica do comentarista, graças a um engenhoso mecanismo de filtros, só nos concederia, então, benefícios? Quem garante que o texto promoverá tal reversão de sentido? Ah, o sentido! Fico com Jacques Derrida, que escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é enunciação.” Para além dessa observação, que pode ser útil tanto para um lado como para o outro, o que importa é como a obra será lida, e quem estabelece os novos parâmetros de leitura.
Denúncias
Volto à ideia-feita do “preconceito civilizado” de que o texto de Lobato seria paradigmático, e de que em comparação a outras formas mais rudes de ideologia segregacionista, a que ele esposa seria menos deletéria para o ânimo da “nossa juventude”. Entretanto, a questão não é escolher entre duas, aquela alternativa que se nos afigure menos ruim, mas, sim, debater de uma vez por todas, com franqueza e para além dos limites do anedotário, esse tema de fundo da formação brasileira, cuja dramaticidade fica desfocada graças ao estatuto da cordialidade de que nos servimos na tentativa de não nos tornarmos o que de fato somos.
Outro ponto diz respeito ao suposto verismo documental do autor, pois de acordo com essa visada “não há nenhuma passagem em Lobato que informe um jovem com uma mensagem racista de natureza diferente do mundo que a cerca”. Tudo bem, o racismo não está tão-só na prosa de Lobato, seu nascedouro não se dá aí, mas sim no tecido mesmo das relações socioafetivas do brasileiro imerso no pesadelo da história, isto é, a arte de Monteiro Lobato “denunciaria” sem esforço essa conformação ao preconceito naturalizado a que o senso comum e o autor não escapam. Pelo contrário, o autor do Sítio do Picapau Amarelo inclusive o reforça. Para essa leitura leniente, temos a chapa: “Até onde se sabe, vivemos no Brasil, não é mesmo?”. Sim, sim, então é normal que de tal modo se passem as coisas; que concordemos com esse Brasil retrógrado apenas transliterado desinteressadamente para o núcleo da obra de Monteiro Lobato. Lavação de mãos brancas.
Pedrinho e Narizinho, por sua vez, são a versão edulcorada do preconceito naturalizado no interior de um ethos dos “panos quentes”, que é típico de um país onde a mestiçagem é fruto do estupro escravista, e que, a um só tempo, se ufana e se envergonha de tal desenho étnico; o menino e a menina sempre em férias (com os quais todos se identificam) se encaixam na versão “tesouro da juventude” do filho do senhor de engenho em cuja famosa ilustração para o clássico Casa-Grande & Senzala figura montado num moleque negro o qual na “brincadeira” serve como besta de carga. Essa invariante romanesca do sinhozinho perverso montado no negrinho, que também fundamenta a visão de mundo do peralta Brás Cubas, atravessa a linha de fronteira entre o vivido e o imaginado. No capítulo XI, “O menino é o pai do homem”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis plasma a tópica do nhonhô “menino diabo” e seu comportamento de mando. Brás Cubas rememora suas façanhas do idílio infante herdadas ao contexto familiar da escravidão: “(…) Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito, um ‘ai, nhonhô!’, ao que eu retorquia: ‘Cala a boca, besta!’ – (…)”.
Prudêncio ubíquo
Esse Prudêncio ubíquo reaparece em diversos registros. No filme Joanna Francesa (1973, direção de Cacá Diegues), ele será o robusto negro Gismundo (Eliezer Gomes), não mais escravo e que conquista uma pequena ascensão tornando-se agregado, mas que permanece a besta de carga de sempre, pois na cena final cabe-lhe carregar na cacunda, no lombo, a dona de prostíbulo Joanna (Jeanne Moreau), que abandona seu negócio em São Paulo e vai para Alagoas apaixonada por um cliente, um decadente senhor de engenho. A história se passa nos anos 30.
De outra parte, nas memórias do pintor Iberê Camargo, naquilo que lhe tocou viver, seja como complexo, seja como desejo recalcado, o brasão dos Cubas imprime sua marca. O guri da campanha, feito um personagem de um sonho borgiano, se depara maltratando o meio-irmão “de cor”. Destaco um breve trecho do texto “Ai, minhas feridas!” (Gaveta dos guardados, 2009), em que o pintor rememora um episódio da manhã de sua infância: “– Ai, minhas feridas! – gritava o negrinho Naná, a pular num pé só, como o Saci, e segurando a canela com as duas mãos. Eu, guri estouvado, o havia machucado, brincando de guerra. (…) Eu corria atrás dele e procurava reconduzi-lo ao campo de batalha. Prometia não machucar mais. Naná não se deixava convencer. Era birrento. Emburrava. Empacava, pior que mula. Cansado de rogar, de agradar para que voltasse às boas, perdia a paciência. Aí, então, passava a maltratá-lo. Dava-lhe empurrões, socos e o escorraçava a pedradas”. Pobre Iberê Camargo, que teve de partilhar sua mãe-preta aparentemente sem nome civil. Note-se, em mais esse fragmento das memórias do pintor, o patético do seu drama: “Das minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua”. A mãe noturna, mãe da hora-extra, mãe de leite do menino branco. Talvez por ciúme, o sinhozinho Iberê maltratava o moleque, pois esse, sim, deveria ser o filho de sangue da ama de leite, e não ele, sugador de empréstimo. Juliana Burn, a Bua, sua ama de leite cujo nome e sobrenome só nos são revelados em uma parca nota de rodapé. Esse ser que a custo é enquadrado nas fotografias das histórias privadas legadas à posteridade.
O continuísmo simbólico do universo do Sítio do Picapau Amarelo, seu sucesso reeditado há muitas gerações, vai a par da perpetuação do preconceito disfêmico, doce, macunaímico, que não ofende o jeito de corpo do Brasil. Preconceito que se resolve em anedotário. E a anedota mais torpe a respeito é a seguinte: Ninguém é racista ou preconceituoso, mas todos conhecem e identificam pessoas de sua relação, parentes inclusive, que o são. Corolário: cada brasileiro se apresenta então como uma ilha de tolerância étnica cercada por um mar encapelado de reaças eugênicos, nostálgicos de um tempo em que as coisas estavam no seu lugar; em que o negro estava em seu lugar.
Tolerância indiscriminada
A literatura de Monteiro Lobato no quesito “representação do negro” não é, entretanto, um caso isolado dentro das contradições que envolvem uma tradição de representação do outro dentro da literatura. Com efeito, trata-se de um absurdo, mas em nossa sociedade o negro ainda é o outro. Adaptando a boutade de Duchamp ao tema em questão, podemos dizer que de ordinário quem paga a conta é o negro. As imposturas que acompanham inadvertidamente as “boas intenções” de Lobato são verificáveis — e similares àquelas encontradas — também em outros textos conhecidos e elogiados por todos nós. Cito alguns exemplos: os poemas negros de Urucungo, de Raul Bopp; “Irene no céu”, de Manuel Bandeira (já referido no início desse texto); “Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima; etc. Tais obras, segundo o poeta Oliveira Silveira (1941-2009), são poemas que atendem a uma temática “negrista”, isto é, experimentos eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, não passam de forasteiros simpatizantes-antipatizantes do “assunto”. Em outras palavras: brancos escrevendo sobre negros com vistas à ampliação do repertório e do seu discurso de poder.
Nessas obras esteticamente bem-sucedidas, de homens cultivados num safári através da selva áspera e forte, subjaz um “problema do negro” que à força de tanta reiteração (ardis de séculos e simbologias duvidosas) nos faz ratificar sua existência: aprendemos a temer infantilmente a África-tipo, feérica, selvagem e bela, bárbara e canibal — estupro de donzelas brancas enfeitiçadas por Mumbo-Jumbo (nonsense) ou Pai João. E sequer suspeitamos de que nossos irretorquíveis autores, graças ao seu engenho, acabaram inventando um “problema” na tentativa de fazer um outro invisível aos olhos de todos. Ou seja, o que sempre tivemos e ainda temos, mesmo, deixando de lado superciliosos eufemismos, é um imenso “problema do branco”.
O problema do branco é para o Brasil mais dramático do que a questão das saúvas que o sarcasmo macunaímico colocou na ordem do dia. Monteiro Lobato, esse branco paradigmático e vertical (seja lá que fantasia imperial isso suporte), que pretende inventar a infância, a economia e a pureza étnica brasileiras, se sente acuado pela bodarrada que, provavelmente, e como acontece com todos aqui, lhe informa o ser.
Faço referência à “Bodarrada”, o conhecido poema do livro Trovas Burlescas (1859) em que, segundo Haroldo de Campos, Luís Gama “arrasa com a prosápia dos nobres, dos brancos”. Mas, ao contrário de Lobato (que não se põe em relação com o outro), o poeta, graças a uma consciência luciferina, também se vê implicado na arenga com que desfaz os poderosos, pois em troca e na mesma moeda baixa, eles hão de chamá-lo “tarelo,/ Bode, negro, Mongibelo;/ Porém – prossegue Gama – eu que não me abalo,/ Vou tangendo o meu badalo/ (…) / Se negro sou, ou sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?/ Bodes há de toda casta,/ (…) / Bodes negros, bodes brancos…”. Luís Gama é um poeta cuja linhagem remonta a Gregório de Matos e a François Villon, representantes do “duro” em contraste com o “suave” na arte da poesia. Mas o difícil é apontar essa dureza e a impertinência do riso sarcástico contra si mesmo. Felizmente, quanto a este quesito, Luís Gama também não deve nada aos seus parceiros e precursores, pois ele, a plenos pulmões, desconta e canta: “Aqui, nesta boa terra/ Marram todos, tudo berra/ (…) / Em todos há meus parentes/ (…) / Folgue e brinque a bodaria;/ Cesse pois a matinada,/ Porque tudo é bodarrada”.
O sistema literário não quer que esqueçamos que Lobato nos legou um bem inestimável: uma literatura infantil de altíssimo nível, e “as eventuais alusões racistas a personagens como a Tia Nastácia não tiram a prazer da leitura…”. Não tiram de quem, cara pálida? Talvez só não tirem o prazer da leitura àquele que jamais se dispôs a imaginar como deve ser passar “um dia de negro” no Brasil. Ora, a expressão “alusões racistas” é uma contradição entre termos. Chamar Tia Nastácia de “macaca de carvão” se não é um insulto racista, o que mais então seria?
A pertinência da obra de Lobato estaria assegurada, segundo alguns analistas que fazem sua apologia, graças ao fato de que ela “carrega os conflitos de seu tempo, os nós sociais do contexto e da circunstância com que foi escrita”; assim, sua obra arrastaria o presente de volta ao passado, “potencializando o futuro”. Não consigo relevar o triunfalismo dessa leitura. Aliás, não vejo como – a contrapelo dos que consideram Lobato como um dos escritores mais talentosos de sua geração –, não vejo como esse escritor mediano, no máximo, um beletrista do entretenimento, jeca-sentimental, exalando por todos os poros seu preconceito contra o negro e a condição mestiça brasileira (leiam trechos de suas cartas publicadas na revista supracitada), pode “desvelar” ao presente a possibilidade de um futuro marcado pelo aprofundamento dos nossos dramáticos processos culturais.
Para os exegetas desse Lobato condenado a ser um escritor potencialmente transgressivo, a revelia de seu asqueroso racismo, o preconceito, quando identificado em sua literatura, se reverte em algo positivo. Entretanto, não se trata de ser positivo ou negativo, pois, se estivermos diante de literatura de nível, esse preconceito, não obstante deva ser criticado, será secundário. Tratar-se-á de um conteúdo não essencial, como diria Walter Benjamin. Neste sentido a obra de Lobato fica nos devendo algo, porque a ela não interessam problemas do objeto, afinal o autor é pré-modernista, e por isso mesmo jamais entendeu que a grande conquista da literatura da virada século 19 para o século 20 foi a sua autonomia ficcional e estética. Por não ser capaz de perceber a relevância dos problemas do objeto como o interesse principal tanto da arte, como da literatura, é que Lobato, a partir de critérios menos clássicos do que nazistas, diagnosticou sintomas de paranoia e mistificação na conhecida exposição individual de 1917, onde Anita Malfatti apresenta suas obras pictóricas inspiradas nos movimentos estéticos da vanguarda europeia.
Mas ainda há aqueles que o defendem dizendo que pelo menos a leitura dessas passagens “controversas” gera “conflitos e questionamentos” ao contrário do que pretende a literatura politicamente correta de hoje, que aposta em algo que simplesmente seja palatável operando uma tolerância indiscriminada em torno do seu raio de motivação. Mas o ponto é que a literatura de Lobato não pretende gerar “conflitos e questionamentos” acerca, por exemplo, dos problemas do racismo e do preconceito; a rigor, sua literatura é um espaço mantenedor das estruturas conservadoras, ou melhor, um lugar onde a desumanização e a subalternidade do negro mais do que preservadas são elogiadas. Lugar de nostalgia e de saudade de um mundo idealizado onde o sinhozinho branco faz travessuras e liberta o imaginário em seu sítio encantado.
Lobato escreve e inventa um tipo de obra que é “palatável”, sim, mas apenas para os defensores da meritocracia de fachada, para os retranqueiros da branquitude ameaçada em seus privilégios, pois seu mundo mitológico e folclórico é o mundo perdido do menino branco que se vinga no filho da mucama batendo nele, já que o moleque (eterno negrinho do pastoreio com a boca cheia de formigas), esse, sim, saiu das entranhas dela, e ele, nhozinho de calças curtas, é um parasita cuja mãe se negou a amamentar impondo o fardo à negra mais próxima. O Lobato criançola ama e odeia o mundo impuro situado além das cercas de suas férias de verão onde essa mãe, cujos seios ele babujou com seu afeto mais íntimo, é considerada, com todo carinho, como uma macaca de carvão.