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Lustra, de Ezra Pound

O norte-americano Ezra Pound (1885-1972) foi um dos mais importantes poetas, tradutores e críticos literários do século XX. Sua primeira coletânea, A Lume Spento, foi editada em Veneza em 1908. Nesse mesmo ano, fixou residência em Londres, onde permaneceu até 1920. Ford Madox Ford, James Joyce, Wyndham Lewis, W. B. Yeats compunham seu grupo londrino de interlocutores; simultaneamente, nos Estados Unidos dialogava com William Carlos Williams. T. S. Eliot submeteu-lhe, para sugestões, incorporadas, o manuscrito de sua obra-prima The Waste Land, antes de publicá-lo em 1922. Seu principal poema intitula-se The Cantos (Os Cantos) e foi escrito entre 1915 e 1962, baseado, em parte, no modelo da Divina Comédia. O poeta Dirceu Villa, nascido em São Paulo, em 1975, repropõe, de modo oportuno, questões relevantes ao traduzir Lustra, desse mesmo Ezra Pound, editado em 1916, durante a Primeira Guerra, em Londres.

A crítica, a poesia e a prosa brasileira atravessam um período anômico. Anomia é incapacidade de atingir fins culturais. A poesia se torna relevante, entre outras coisas, na medida em que se confronta com o amadorismo e a ignorância. Some-se a isso o dado que a cultura literária brasileira oficial se empobreceu em virtude de uma poderosa articulação política nacionalista de décadas. O que se passa com o ensino universitário público de literatura no Brasil não é diferente do fenômeno patrimonialista descrito por Raimundo Faoro em Os donos do poder (1958).

Lustra – produto do período imagista de seu autor – traz à tona discussões perdidas no cenário anômico brasileiro como a da importância técnica no fazer poético, a da inovação lastreada no conhecimento de uma tradição universal (e não apenas local) e a da própria tradução em perspectiva de rigor. Neste volume, Pound revê o medievo inglês, as composições poéticas dos trovadores provençais, poetas italianos e ainda se apropria das estruturas da poesia japonesa, chinesa etc. Como anota Villa, o livro é um passo decisivo para o modernismo inglês, europeu e estadunidense. Em Lustra, encontra-se o seu mais famoso poema, “In a station of the metro” (versão de 1913), bem resolvido por Villa: “A aparição destes rostos entre tantos / Pétalas num úmido, negro ramo”, poema traduzido anteriormente por Augusto de Campos. Aliás, a melhor e a primeira tradução que há de The Cantos para o português é a de alguns desses “cantos” reunidos no livro Cantares, de Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos. (Ministério da Educação e Cultura, sem data, provavelmente 1960). Os Cantos foram integralmente bem traduzidos por José Lino Grünewald (Nova Fronteira, 1986).

O desafio da exploração de várias formas, proposto por Lustra, torna-o desigual, com poemas mais e menos trabalhados (isso se falando em um nível de Pound). É um livro relativamente leve, no qual se destaca o tom satírico e bem humorado do jovem Ezra, como em “Saudação segunda”, entre muitos. É fácil criticar uma tradução depois de feita. É a velha questão baudelairiana do leitor hipócrita. Existem poemas nessa coletânea que entendo serem, mesmo que satíricos, abstratos em versos como “The soul of the salmon-trout floats over the streams”, de “Fish and the shadow”, chocando-se com as próprias teorias já então esboçadas por Pound.

Por fim, há uma tópica relevantíssima que Villa repropõe ao cenário anômico ao traduzir o autor de The Cantos: a do poeta desajustado ajustando contas com seu tempo e seu país. Pound – um antissemita – aderiu ao fascismo de Benito Mussolini e fez locuções de rádio, em Roma, durante a Segunda Guerra, tentando persuadir seus “compatriotas”. Não é possível separar a obra do homem ou fazer prevalecer a poesia à sua adesão política. Entretanto, é preciso dizer que foi preso pelas tropas norte-americanas, em 1945, na cidade de Pisa e imediatamente julgado e condenado por traição à pátria. Antes, todavia, ficou cerca de seis meses enjaulado em uma cela, como as de Abu Ghraib. Levado aos EUA, “salvou-se” da execução de sua pena de morte em razão de um diagnóstico de psicose. Permaneceu quatorze anos internado no Saint Elizabeth Hospital, da cidade de Washington. Liberado, em decorrência de uma campanha internacional em seu favor, retornou à Itália em 1958, onde viveu até o fim da vida, em companhia de sua filha.

Como anota o argentino Nicolás Alberto González Varela, Pound foi, antes da adesão a Mussolini, um socialista. Escreveu de 1911 a 1921 no jornal New Age. O diário pertencia à Fabian Arts Society e tinha como lema “An Independent Socialist Review of Politics, Literature and Art”. Antes da Segunda Guerra era considerado o melhor diário da esquerda inglesa. Ali escreveram Shaw, Chesterton, Belloc e muitas futuras figuras intelectuais do Labour Party. O diário tentava realizar uma rara síntese, prossegue Varela, entre socialismo evolucionista e sindicalismo. A formação econômica de Pound realizou-se integralmente graças a este diário através da difusão de economistas heterodoxos, alguns importantes ainda hoje em dia.

Pound foi, ao cabo, um protagonista único da história e deu protagonismo à poesia. Boa parte dos autores brasileiros escreve, hoje, para obter um prêmio aqui, uma resenha acolá, para obter uma vaga de professor na Faculdade tal ou qual, um posto no jornal da moda, um patrocínio etc. A literatura se tornou uma instituição “social” (em termos de Sarney, “tudo pelo social”) generalizada e banal. Dirceu Villa tenta reativar o protagonismo literário quando traduz Lustra, em um livro de fôlego, com ensaio e notas. E tenta não ignorar a importância de Pound, em virtude de suas escolhas políticas. Prefiro concluir com Varela: “Pound foi um fascista sui generis, porém sua poesia não”.

Um poema de Lustra:

Epitaphs

Fu I

FIT I loved the high cloud and the hill,
Alas, he died of alcohol

Li Po

And Li Po also died drunk.
He tried to embrace a moon
In the Yellow River.

Epitáfios

Fu  I

Fu  I amava a nuvem alta da colina,
E, aí, o álcool o matou

Li Po

E Li Po morreu bêbado também.
Ele tentou abraçar uma lua
No Rio Amarelo.


Trad. Dirceu Villa


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.