Ele tem sete anos, idade normal.
No fundo do quarto como no fundo do porão. Encolhido, braços nus.
Virado sob as cortinas, as tapeçarias.
“Você não está no lugar, é ele que está em você.”
No fundo dos corredores, é isso.
Os olhos fechados, cerrados, sim.
Tarnac, 1953, ele tem sete anos, idade normal, olhos perdidos, comprimido sob as
tapeçarias, as cordas do barco, o aborrecimento.
Ele acreditava que queria vomitar.
Sobretudo a história da chuva, alguma coisa ainda embaixo das pedras, e o barulho da água; quando fecha os olhos ele vê o barulho da água, as palavras do livro misturadas ao barulho da água, gotas e gotas, um som de prece ou de salmo, um som de poeira vegetal.
A urze, sim, murcha, áspera. Bordas cavadas, as bordas absolutamente negras.
Quero dizer que ele aprende a ler fechando os olhos, sim.
Algumas palavras, muito poucas. Inclinado sobre um livro. Algumas palavras, de início a lápis, depois sublinhadas à caneta, todos os dias, nos cadernos escolares. Caravelle, Ouragan, Hermès, Corvette, Héraklès, cinza, verdes e azuis, espirais, de 28 de setembro de 1952 a 4 de dezembro de 1958,
Em 16 de abril de 1964, ele morre.
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De seu “testamento espiritual” de “filho indigno” de são Francisco:
1. que meu cadáver seja fechado em um caixão de madeira branca, e enterrado no cemitério de minha paróquia embaixo das árvores;
2. que nenhum símbolo de luto seja colocado nem em meu domicílio, nem na igreja, do lado de fora ou mesmo no altar onde será celebrado o santo sacrifício.
Assim começa e recomeça a história da poeira.
Alguém diz que só há a floresta (chuva contínua, em contínuo. Uma só nota, contínua.)
– O cume das árvores foi tomado pela noite. Não resta nenhuma cor.
– A floresta está fechada. É como ela se estivesse fechada.
– Você se lembra dos olhos fechados, a boca costurada, no fundo do quarto, virado e comprimido sob os lençóis, sob as tapeçarias, caçando as bestas, ocupado pelo barulho do rio.
– Tudo ao redor?
Sim, a noite caiu entre os galhos. Agora a floresta está fechada
(e agora e para sempre a floresta está fechada, coberta).
A chuva continuará durante várias horas, vários dias e várias noites. Ela continua depois, muito tempo depois. Ela não pode apagar a poeira.
Este abril de 1964 ele não está em Tarnac. Não verá o corpo. Deste que ele viu durante muito tempo ler e escrever no ângulo do terraço no claustro do jardim, não sabe todavia que ele está morto.
Mais tarde encontrará os XXIV cadernos de meditação.
*
história da poeira
Alguns lugarejos estão muito afastados da missa. A primeira, quando há duas missas, se diz muito cedo no inverno. Devemo-nos levantar antes do amanhecer. Chegar cobertos de neve e molhados até os ossos.
Por muito tempo será preciso carregar os mortos. Fechamos os olhos. Seguimos a inclinação. Somos sustentados pelo vento.
O hábito de carregar os corpos de muito longe e por caminhos escarpados é fatal para alguns destes que o fazem. Banhados de suor, eles são expostos ao frio e, constrangidos, ficam longamente imóveis, de pé, na igreja fundada sobre fontes.
A história da poeira é também a das águas correntes.
As casas, muito baixas, obscuras, são mal pavimentadas ou nem são.
A pedra das paredes é uma espécie de argila.
Olhamos o solo. Dirigimos-nos em direção ao barulho da água. Durante os temporais o vento carrega as estruturas como folhas de um livro, derruba-as e as destrói.
Em uma caixa de metal colocada sobre a borda do lavatório na parte alta ele tinha encontrado um pedaço de mata-borrão, grosseiramente recortado
E estas linhas:
Colocar dois cabelos em cruz
Fechar os grãos de sal em um sachê de tecido e os
esconder em um local secreto
Deixar secar uma porção de grama em cima de uma bebida ardente
Ir de pés descalços.
No mesmo verão, para o projeto “história da poeira”, ele tinha recopiado este fragmento que havia intitulado
“descrição”.
Uma máscara nos olhos fixos engolia com sua boca
aberta a cabeça de um pombo cujas duas asas estendidas
recaíam sobre a pedra.
Tradução: Solange Rebuzzi
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2011.