Como argumenta Ezra Pound no seu ABC da literatura, nenhum poeta consegue alcançar mestria sobre a forma poética sem exercício. Isso significa estudar versificação, poesia do presente e do passado, e escrever e reescrever as obras até encontrar a melhor forma para o que se deseja transmitir. Por isso, para revolucionar um modo de expressão artística, é necessário conhecer as expressões anteriores e contemporâneas da arte em questão, e seus artistas, pelo fato de não haver a possibilidade de revolucionar algo sem um fundamento anterior. Se algo de novo é descoberto em uma forma de arte sem que o artista tenha tido conhecimento prévio de tal evento, isso diz respeito ao campo da invenção.
No caso, por exemplo, de Whitman, houve uma revolução: o poeta sabia muito bem o que estava re-formando. Assim, exceto nos casos de inspiração repentina e exacerbada em que os poemas surgem na mente do poeta quase prontos para passarem para o papel, na maior parte do tempo eles precisam ser retrabalhados. Dessa forma, um tradutor que pretende recriar poesia de maneira a transpor a forma poética de uma língua para outra precisará estar treinado na arte da poesia, pois, a exemplo de um poeta, ele vai lidar com elementos poéticos de base e não pode dar-se ao luxo de desconhecer os métodos de versificação de ambas as línguas.
Com isto em mente, serão apresentados a seguir alguns exemplos do meu trabalho como tradutor de Folhas de relva. Este artigo é uma adaptação de um trecho da minha tese sobre tradução, que visou também a traduzir parte da obra; a tese está publicada de forma completa em inglês neste site: www.english.mrkind.pro.br; quanto à obra Folhas de relva, tudo que já traduzi dela está publicado neste site: http://poesiadewhitman.com/.
A ideia geral que move meu trabalho de tradução é comunicar o conteúdo, ou o sentido (o significado), tão fielmente quanto possível, e reconstruir os elementos estruturais do poema (significantes) em português. Como foi afirmado no início da tese (caso alguém queira ler!), além do conteúdo semântico, o intuito foi recriar, na medida do possível, os elementos estéticos do original, suas propriedades fônicas e visuais, para que a forma e o sentido fossem integrados em uma coesa enunciação artística. Entretanto, é preciso levar em conta que não se pode sacrificar uma coisa em proveito de outra. Isso significa uma transposição da significação original das palavras, sem dobrar ou torcer seu sentido, e uma reconstrução de seus aspectos estéticos de maneira similar, para que a obra não perca sua beleza.
Com base nessa concepção artística, foi iniciada a prática com alguns poetas em particular. Alguns resultados desses exercícios poéticos serão mostrados abaixo e comentados. O foco foi direcionado sobre poetas cujas obras são altamente elaboradas e que colocam grandes desafios para um tradutor.
Os primeiros exemplos são retirados do Rubaiyat (palavra derivada do árabe que quer dizer ‘quatro’, ou seja, ‘quadras’, ou ‘estrofes de quatro linhas’), de Omar Khayyam (matemático e astrônomo persa, 1048-1123), um tipo de poesia extremamente concentrada (poucas palavras para expressar muito sentido), que mescla com mestria imagens e ideias, calcadas sobre uma melodia que flui suavemente, com perfeita harmonia entre significado e significante. O Rubaiyat foi traduzido para o inglês por Edward Marlborough Fitzgerald (1809-83), escritor inglês cujas traduções de mais ou menos uma centena de estrofes foram as primeiras e as melhores publicadas em inglês (1859).
Serão comparadas algumas quadras recriadas em português com a versão em inglês e também com a tradução de Augusto de Campos (1986, p.103) e a de Haddad (1964). Fica aqui, por outro lado, a questão: será que a tradução apresentada neste trabalho, juntamente com a de Augusto de Campos, foi capaz de reeditar em português a beleza do grande trabalho de Fitzgerald, embora Augusto possa ser acusado de “tomar liberdades” com o original e de usar sua criatividade para fazer sua tradução poeticamente melhor que o texto em inglês?
Isto traz à tona a questão da infidelidade poundiana à forma do original, mas também a fidelidade ao seu tom. Veremos se as dificuldades colocadas pelas quadras foram satisfatoriamente enfrentadas. Mesmo levando em conta que o idioma em que o Rubaiyat foi escrito, o persa, como é típico de idiomas orientais (HADDAD, 1964, p. 17), tem maior poder de concisão do que as línguas ocidentais e que o inglês também é mais conciso que o português.
Por outro lado, Haddad foi capaz de manter as quadras, porém esticou os versos para doze sílabas métricas, ou versos alexandrinos, e modificou o esquema de rimas para aabb (sendo que em inglês o esquema é aaba), desta feita deixando os versos mais retóricos e quebrando a densidade, a destreza e a surpresa do trabalho de Fitzgerald.
Este primeiro rubai é especialmente belo por causa de seu apelo à fruição da vida. A primeira linha, com “faça o máximo de”, é uma referência à expressão latina Carpe Diem, que significa agarre o dia, ou pegue, colha, arranque ou viva o hoje, desfrutando do momento presente, pois não sabemos se amanhã estaremos vivos.
Esta ideia do Carpe Diem apareceu primeiro em uma ode (I, 11) do poeta romano Horácio (65 – 8 a. C.), que diz assim: “Carpe diem quam minimum credula postero” [Agarre o dia, pois no futuro você pode crer o mínimo]; vejamos então a primeira quadra:
FITZGERALD:
RUBAI XXIII
Ah, make the most of what we yet may spend,
Before we too into the Dust Descend;
Dust into Dust, and under Dust, to lie,
Sans Wine, sans Song, sans Singer and — sans End !
MINHA RECRIAÇÃO:
XXIII
Prove todo o prazer que ainda vem,
Antes que Empurrem-nos ao Pó também:
Pó entre Pó e sob Pó, postados,
Sem Canção, sem Cantor, sem Vinho, e — sem!
AUGUSTO DE CAMPOS:
XXIII
Ah, vem, vivamos mais que a Vida, vem,
Antes que em Pó nos deponham também;
Pó sobre Pó, e sob o Pó, pousados,
Sem Cor, sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem.
HADDAD:
XXV
VAMOS GOZAR o Amor! Provar cada Alegria
Que a vida possa dar! Seremos Poeira um dia:
Poeira a jazer na Poeira e sob a Poeira e assim
Sem Vinho e sem Amor, sem Música e sem fim!
Falando de ritmo, na versão em inglês está assim: as primeiras duas linhas e a quarta estão escritas em pés iâmbicos, ou seja, um pé métrico (em verso acentual silábico, típico da língua inglesa) que compreende uma sílaba (poética ou métrica) não acentuada seguida por uma acentuada. A terceira linha começa com um troqueu (ou trocaico, o oposto de um iâmbico) e continua com iambos. Augusto reconstruiu esses pés iâmbicos na primeira e na última linha. No entanto, isso é uma exceção em português, no qual o verso é silábico, com acentos em sílabas métricas específicas, e em que as palavras tendem a ser mais longas que em inglês, tornando-se quase impossível reconstruir essa versificação em nosso vernáculo.
No caso da minha recriação, a primeira e a última linha têm acentos na terceira, sexta e décima sílabas (métricas), com a segunda e terceira linhas tendo acentos na primeira, quarta, oitava e décima sílabas. Augusto usa esse padrão na terceira linha de sua tradução e outra variante, com acento na sétima sílaba no segundo verso. A minha tradução e a de Augusto mantêm o esquema de rimas aaba; em ambos os casos a repetição de D foi mantida com o uso de P, como em “Pó”; o som de S de “sans” permaneceu no S de “sem”, e o M de “make” e “most” foi recuperado pelo P de “prove” e “prazer”.
Talvez a minha tradução tenha um ritmo mais batido por causa do T em “entre”, “postados” e “Cantor”, que soam como tiros, adicionados aos sons mortais do plosivo P (plosivo refere-se ao som do discurso produzido pelo completo fechamento da passagem oral e posterior liberação, acompanhada de uma explosão de ar, como no som de p: pagar, porta, porto; e d: dia, dono, dado).
A quadra seguinte é outro exemplo brilhante do gênio de Fitzgerald. De novo, minha tradução e a de Augusto de Campos coincidem na tentativa de alcançar mais eficiência formal. Especialmente porque Augusto chama a atenção para a correlação anagramática entre as palavras “life/flies, life/lies”, e finalmente a explosão visual da flor na última linha — “the F-L-O-W-E-R that once has b-L-O-W-n F-O-R e-V-E-R dies” (1986, p. 97) —, que mostra o sentido das palavras graficamente visível em seus significantes.
Este tipo de solução poético-tradutória se aproxima do que os poetas Concretos chamam de poesia “inventiva”, na qual existe uma conexão intrincada entre todos os elementos envolvidos na transmissão da mensagem poética: o sentido é múltiplo, a poesia é concisa, precisa, e, visualmente, se projeta sobre as letras das palavras enquanto se deixa ouvir na reiteração dos sons. Assim, como se fosse uma exceção em nossa língua ou tentando tirar o máximo dela, minha tradução objetivou reconstruir o “tu-TUM” do pé iâmbico, enquanto Haddad esticou os versos para uma batida cansativa e arrastada:
FITZGERALD:
RUBAI LXV
Of threats of Hell and Hopes of Paradise!
One thing at least is certain – This Life flies;
One thing is certain and the rest is Lies;
The Flower that once has blown for ever dies.
MINHA RECRIAÇÃO:
LXV
Inferno ou Paraíso! uma voz soa:
Só há uma coisa certa – A Vida voa;
Uma coisa é certa e todo o resto é Loa;
Na Flor que se abre logo a cor escoa.
AUGUSTO DE CAMPOS:
LXV
Inferno ou Céu, do beco sem saída
Uma só coisa é certa: voa a Vida,
E, sem a Vida, tudo o mais é Nada.
A Flor que for logo se vai, flor ida.
HADDAD:
LXV
O PARAÍSO e o Inferno! A Esperança e a Ameaça!
Só uma coisa é certa – A nossa Vida passa;
Só uma coisa é certa e é Falso tudo o mais:
Flor que desabrochou não abrirá jamais!
Para completar essa degustação poética, forneço mais dois exemplos do Rubaiyat, para demonstrar o desenvolvimento da técnica utilizada adiante para traduzir as Folhas de relva, que pode ser apreciada no site http://poesiadewhitman.com/. O primeiro, o rubai XXVIII: além da bela batida desta quadra, o aspecto que mais interessa aqui são as rimas internas ou intermédias, especialmente entre “Doctor”, “evermore” e “door”, (“DouTOR”, “FORa” and “POR”); e “About” e “out” (“tAL” e “umbrAL”). Haddad tentou fazer algo semelhante, mas parou após a segunda linha, dividindo a quadra, fonicamente, em duas partes, e assim perdendo o ritmo (Augusto de Campos não traduziu estas):
FITZGERALD:
XXVIII
Myself when young did eagerly frequent
Doctor and Saint, and heard great argument
About it and about: but evermore
Came out by the same door where in I went.
MINHA RECRIAÇÃO:
XXVIII
Eu quando jovem frequentei com gosto
Doutor e Santo e vi o Assunto posto
De tal maneira e tal: mas como sempre
O mesmo Umbral fora por mim transposto.
HADDAD:
XXVIII
EU MESMO frequentei nos meus tempos de moço
Muito Doutor e Santo e, cheio de alvoroço,
Ouvi suas razões sobre o universo para
Pela porta sair por onde eu, crente, entrara.
E agora, como um presente final do Rubaiyat, apresento o rubai VI, que fala do rouxinol, pássaro que é o símbolo dos cantores. Embora o resultado poético seja bom, é praticamente impossível transpor toda a informação do rubai em inglês para o português. Ele é por demais compacto para ser expresso em decassílabos em nossa língua (a palavra vinho é repetida quatro vezes). Mas que seja mostrado como homenagem ao Rouxinol:
FITZGERALD:
RUBAI VI
And David’s Lips are lock’t; but in divine
High piping Pelevi, with ‘Wine! Wine! Wine!
Red Wine!’ — the Nightingale cries to the Rose
That yellow Cheek of hers to ‘incarnadine.
MINHA RECRIAÇÃO DO RUBAI VI:
Calaram os Lábios de Davi; do ninho,
Piando em divino Pélevi, com ‘Vinho!
Tinto Vinho!’ — o Rouxinol à Rosa
Roga: faça encarnado o seu Rostinho.