Lá por 1950, mais ou menos, eu colecionava as “Balas Futebol”. Consistiam de pequenos retratos de jogadores de futebol que envolviam uma bala de péssima qualidade. Nós, os garotos da época, comíamos a bala gostosamente depois de verificar qual o jogador que a sorte nos tinha trazido.A operação terminava com a figurinha do jogador sendo colada no lugar que lhe estava determinado, na respectiva equipe. Quem preenchesse o álbum ganhava um prêmio. Passávamos os dias folheando o álbum, olhando angustiados os espaços em branco dos jogadores que nos faltavam e conferindo os já colados, nos assegurando de que estavam sempre lá. Trocávamos, barganhávamos e apostávamos nossos jogadores. Por isso sabíamos de cor os times e conhecíamos as caras como se fossem parentes, apesar da qualidade horrorosa da impressão. Tenho ainda diante dos meus olhos essas equipes perdidas no tempo. Havia os times da capital e também os do interior, entre eles a Ponte Preta. Lembro-me nitidamente das figuras apagadas e vagamente indefinidas, pouco dos nomes. Alguns no entanto ficaram para sempre, como Ciasca, Pitico, Bibe e Jansen. Os outros se perderam. E eis que, tantos anos depois, recupero essa Ponte Preta do meu passado profundo, subitamente intacta, inteira e completa, com aqueles nomes que lia e relia, todas as infindáveis vezes em que virava as páginas do álbum: Ciasca, Bruninho e Waldir, Pitico, Carlito Roberto e Carlinhos. Noca, Gatão, Nininho, Bibe e Jansen. Talvez seja essa a dívida maior que tenho com este belo livro de André Pécora. Com ele revisitei por momentos 1950 e constatei que aqueles nomes, que de tão distantes eu tinha transformado quase em personagens de ficção, na realidade pertenciam a homens de verdade, jogadores que um dia defenderam a Ponte Preta. Em certa medida isso fez com que me identificasse com o livro como se ele também tivesse sido escrito para mim, pois de alguma maneira a Ponte Preta esteve sempre comigo em alguma parte, e de vez em quando reaparece, como nessa leitura.
Ponte Preta − a torcida que tem um time não é um estudo acadêmico, nem uma análise sociológica ou histórica. É mais que isso. É um livro para quem tem a Ponte Preta na pele.
O que o torna singular, no meio de tantos livros escritos sobre times brasileiros, é que este livro não se furta em celebrar derrotas. É cômodo descrever vitórias, é cômodo ser torcedor de um dos chamados grandes, que empilham suas conquistas de maneira quase monótona. O torcedor da Ponte, como André Pécora, ao contrário, cultiva suas gloriosas derrotas, cuida delas com desvelo, faz questão de recordá-las. Um grande número de páginas, por exemplo, é dedicado a descrever, em um tom épico, os jogos das finais de 1977 contra o Corinthians, quando a Ponte não venceu. Porque as derrotas da Ponte não são quaisquer derrotas. Não se trata de um livro que enaltece um time pequeno, fazendo apologia do humilde e relatando a profissão de fé do perdedor. O torcedor da Ponte não é um daqueles heróis que permanecem fiéis a certos times por motivos inexplicáveis ou para serem originais. O torcedor da Ponte sabe que torce por um time grande, que forjou sua grandeza nas grandes batalhas, mesmo as perdidas. No fim, o que importa mesmo é a batalha. Com o tempo implacável, o resultado das lutas se torna embaralhado e impreciso, quem ganha e quem perde não significa mais nada. Só os heróis ficam, os grandes personagens. Como disse Polozzi: “É claro que queríamos o título e lutamos muito por ele. Mas, depois de tanto tempo, acho que entramos para a história da mesma forma, porque até hoje a final contra o Corinthians é lembrada por todos”. Claro que o livro também fala das grandes vitórias, como contra o Palmeiras, recém-campeão mundial de 1951, ou, mais perto de nós, o incrível derby do dia 28 de outubro de 2002.
Gostei muito do livro de André Pécora porque ele viaja pela história centenária da Ponte detendo-se ora aqui, ora ali, retomando constantemente o relato das grandes decisões, falando de derbies também quase ao acaso, um aqui, outro ali, em um movimento que parece não ter fim, uma espécie de variações sobre os mesmos temas: 1951, 1977, 1981, 2008. Há narrativas de outros feitos, naturalmente: a epopeia da construção do Moisés Lucarelli, ou o fenomenal time de basquete de Hortência, Paula e Karina. Sim, estão lá, fazem parte da glória. Mas o que mais me agradou foram os perfis, rápidos, mas precisos, dos grandes jogadores que desfilaram seu futebol pela Macaca. Nem é preciso dizer quais são porque os torcedores sabem seus nomes de cor. O que não sabem é o que pensam hoje, o que dizem hoje, o que relatam hoje, pois as entrevistas com esses grandes jogadores foram quase todas feitas em 2009 e 2010. Até Bibe comparece, com seus 84 anos. Até o calado Pitico. Há depoimentos comoventes, como os de Polozzi, Manfrini e Sérgio Guedes. Há os surpreendentes e quase divertidos, como o de Oscar, sem falar no do grande Carlos e no do mitológico Dicá. Os perfis dos que morreram são reconstruídos cuidadosamente e com carinho, como a singular trajetória do goleiro Ciasca. O que fica da saga ponte-pretana é que quem passa pela Ponte jamais a esquece, mesmo que tenha jogado por pouco tempo.
A marca dessa torcida fica. É comum nos depoimentos um jogador dizer que ainda vai ao estádio, leva seus filhos e torce pela Ponte. Oscar chega a declarar: “Meus melhores anos não foram no São Paulo, foram na Ponte”. É isso que faz da Ponte um time diferente. É isso que faz de Ponte Preta – a torcida que tem um time um livro diferente. E bom. Agradeço ao André Pécora ter me proporcionado belos momentos lendo este livro. De repente, como já disse antes, me pareceu que eu mesmo era um torcedor da Ponte. De repente me pareceu que, quando se falava de 1977 ou 1981, se falava de algo que eu me lembrava mais do que supunha, algo que me era mais familiar do que pensava. Isso é um time grande. O que tem feitos que ficam na memória e na mente não só de seus torcedores, mas dos torcedores dos outros times.