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A dificuldade de ser de Jean Cocteau

Régis Bonvicino

Vem de ser lançado o indispensável A dificuldade de ser (Editora Autêntica), de Jean Cocteau (1889-1963). O livro foi redigido durante a 2ª Grande Guerra e editado na França em 1947. Trata-se, de fato, de uma arte poética feita a partir do relato de sua vida, da infância até o momento de finalização do texto, quando passara dos 50 anos. Ao mesmo tempo, o livro possui um caráter de testemunho ativo, aliás, às vezes crítico, de um dos períodos mais ricos da cena europeia, então cubista, surrealista, construtivista. E há, ainda, na obra, um viés de depoimento acerca de suas personagens maiores: o compositor Eric Satie (um de seus mestres), Picasso, o poeta Guillaume Apolinaire, o bailarino e coreógrafo russo Nijinski, Charles Chaplin, o dramaturgo Jean Genet e tantos outros de primeira linha.

Cocteau foi, em essência, um poeta, que escreveu romances, peças de teatro, crítica literária, fez filmes e foi um artista plástico inspirado, que deixou sua marca em capelas de pescadores então abandonadas da Provence e da Côte D’Azur – ali onde está Monte Carlo viciou-se em ópio, o que o fez submeter-se a várias internações em clínicas. É preciso observar que este talento múltiplo não se diluiu em nenhuma de suas atividades, somou-se. Como ele mesmo explica: “Explorei tantos caminhos para que minha semente se espalhasse por toda a parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave”.

Ele começou a escrever aos dez anos e aos 19 publicou o primeiro volume de poemas, “La Lampe d’Aladin” (1909). Ele, o poeta, critica Jean-Paul Sartre durante a Guerra: “Sartre levantou uma grande lebre. Mas por que ele se limita ao engajamento visível? O invisível alcança mais longe. É para excluir os poetas que não se engajam em nenhuma causa exceto a de perder”.  Em 1917, escreveu “Parade” para Serguei Diaguilev, fundador da companhia Ballets Russes em Paris. O balé tinha cenário de Picasso e música de Eric Satie. Apolinaire, comentando o espetáculo, o definiu como “surrealista”, palavra que seria, pouco depois, apropriada por André Breton e se tornaria todo um movimento. Cocteau foi então “classificado” como surrealista, como o introdutor do surrealismo no cinema nascente. Cocteau acusado, por tantos, de “frivolidade”, de algumas décadas para cá, de “démodé”. Cocteau o amante de Jean Marais, sua grande musa. Cocteau amante de Francine Weisweiller e a Mansão Santo Sospir. Cocteau, o engajado do invisível, o gay “católico”, dialogando com Jacques Maritain: “Maritain achava minha postura pesada. Ele queria abrir-me um caminho. O seu. Para percorrê-lo ao seu lado, infelizmente, eu não possuía nem asas de anjo, nem a considerável máquina espiritual dessa alma disfarçada de corpo. Privado de minhas pernas, só me restava o cansaço. Evadi-me”.

Quero chamar a atenção aqui, especialmente, para dois aspectos de sua obra: o de cineasta e o de dramaturgo. Três de seus filmes estão incluídos entre os cem melhores e, para alguns críticos, entre os dez melhores de todos os tempos. Falo de Sangue de um Poeta (1930), A Bela e a Fera (1946) e Orfeu (1950). Cocteau anota que “O sangue de um poeta” emprega o mecanismo do sonhar sem dormir. Era um meio de arrebentar o realismo industrial da vida. O professor espanhol Eduardo Peñuela Cañizal, já morto – um dos fundadores da ECA-USP – estudando a influência de Cocteau sobre  Pedro Almodóvar observou: “ seu esteticismo era uma forma de denúncia da realidade como artifício”; acrescente-se que o autor de “A dificuldade de ser” foi presidente honorário do Festival de Cinema de Cannes. E, a partir de 1955, membro eleito da Académie française (de letras).

O monólogo teatral A voz humana – um marco – data de 1930. Este monólogo traz apenas uma atriz no palco, falando ao telefone; em termos formais é de um minimalismo expressivo ímpar. Berthe Bovy, atriz da estreia, representa o papel da mulher apaixonada por um homem, que, ao que tudo indica, lhe deixa por outra. E seu único meio de comunicação com o amado em fuga, na tentativa de persuadí-lo a voltar ou algo assim, é o telefone. A atriz fala por uma hora pelo aparelho, o tempo de duração da peça, ligação que é algumas vezes interrompida por ruídos e desespero. O monólogo foi levado ao cinema por Roberto Rosselini, um dos líderes do neo-realismo italiano, em “L’Amore”, de 1948, com Ana Magnani. Cocteau foi, deste modo, seminal também para um dos movimentos posteriores a ele mais importantes do cinema, protagonizado por Rosselini, Fellini, Antonioni, De Sica. Tanto quanto foi considerado precursor da Nouvelle Vague a partir de 1958.

Neste momento no qual a arte e a reflexão se rendem às “facilidades” do estar, é interessante trazer à tona trecho no qual o artista múltiplo explica seu título. Cocteau estava em uma clínica quando o moribundo senhor Fontenelle, também paciente, ao ser indagado pelo médico a respeito de seu estado, respondeu-lhe: “Eu sinto uma dificuldade de ser”. Então, o autor de A voz humana, entrando na conversa, disse: “Senhor Fontenelle a sua é de última hora. A minha é desde sempre”. E assim recoloca a arte em sua perspectiva real: a do sofrimento, a do difícil, distante do glamour vazio, amadorístico, dos dias atuais.

Trecho

A França.

A França é um país que se denigre. Melhor assim, senão ela seria o país mais pretensioso do mundo. O essencial é que isso não se constate. O que se constata se neutraliza. No meu romance As crianças diabólicas, eu tomei o cuidado de dizer que aquela irmã e aquele irmão não se constatavam. Se eles tivessem constatado suas forças de poesia se teriam tornado estetas e passando do ativo para o passivo. Não. Eles se detestam. Eles detestam o quarto deles. Eles querem outra vida. Provavelmente, a daqueles que os imitam e perdem seus privilégios por um mundo que existe somente na certeza que os privilégios estão em outro lugar e que não se possui nenhum.

Eu tenho em casa uma carta de Musset, escrita na época mais rica em gênio. Ele se queixa que não há um artista, um livro, um quadro, uma peça. A Comédie-Française, diz ele, está carregada de poeira e Madame Malibran canta em Londres porque a Ópera (Opéra) desafina. Cada época da França é constituída de uma maneira que, com a riqueza debaixo do nariz, ela não enxerga nada e procura a riqueza em outro lugar.

São engraçados aqueles que a querem grande nas palavras: “Grandeza, pureza, obras construtivas.” É esse o refrão moderno. Durante esse tempo, a grandeza, a pureza as obras construtivas se produzem com uma forma que lhes permanece invisível e que lhes pareceria como uma vergonha para o país. E os críticos julgam a obra e não sabem que são eles julgados por elas. Quem faz a grandeza da França? Villon, Rimbaud, Verlaine, Baudelaire. Todo esse belo mundo foi levado para o depósito. Queriam expulsá-los da França. Deixaram-no morrer no hospital. Eu não estou falando de Joana d´Arc. Dela, é o processo que conta. Triste é sua revanche. Pobre Péguy! Eu gostava dele. Ele era um anarquista. O que ele diria do uso que se faz de seu nome?

A atitude da França depois da libertação era simples: nenhuma. Nas mãos dos militares, o que ela poderia fazer? O que era necessário? Dizer ao mundo: “Eu não quis lutar. Eu não gosto disso. Eu não tinha armas e não terei. Eu possuo uma arma secreta. Qual? Sendo ela secreta, posso responder-lhe?” E se o mundo insiste: “Minha arma secreta é uma tradição de anarquia.

Eis uma resposta poderosa. Um enigma. Algo para intrigar os povos fortes. “Invadam-me. Eu os possuirei com o tempo.” Já que essa postura chinesa não foi tomada e que nos fizemos de bufões, que chance nos resta? Tornarmo-nos um vilarejo como preconiza Lao-Tsé. Não ser mais invejável, exceto pelo invisível, mais vasto que o visível, e soberano.  Ao falar do império ideal Lao-Tsé disse: “Escutar os galos de um lado ao outro do território.” O que é a França, eu lhe pergunto? Um galo em um monte de esterco. Tire o esterco, o galo morre. É o que acontece quando se estimula a tolice até confundir um monte de esterco com um monte de lixo.

Jean Cocteau e seu companheiro o ator Jean Marais


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.