Espero, senhores, que os grandes jornais e as revistas especializadas estejam preparando, no mínimo um alentado dossiê sobre a vida e obra de Valêncio Xavier – um dos mais inventivos prosadores surgidos no Brasil nos últimos tempos, recém falecido em Curitiba, aos 75 anos. À exceção da imprensa local, pouco ou quase nenhuma foi a repercussão nacional da morte do escritor, em condições cruéis, devastado pelo Alzheimer.
O paulistano, e russo, Valêncio Niculitcheff, morava há mais de 50 anos em Curitiba onde produziu vídeos, peças, filmes, textos, programas de televisão. Trabalhador incansável, em seu caso somava-se a isso o interesse múltiplo e numeroso por diversas áreas, o que o tornava ainda mais inquieto, excitado sempre e rabugento por excelência.
Nunca o deixei de perdoar, mesmo as vezes em que me atacou duramente – sempre por diferenças pessoais – , num delírio que já era a sua marca, muito antes de a doença começar a devorá-lo, devagar e de modo insidioso, em 2002. Jamais criticou o que escrevo, coisa que ele, mesmo engolindo em seco, parecia admirar. Afinal vibrávamos na mesma pauta – a busca de uma maior expressividade da prosa brasileira. Ao largo, ao menos, dos romancetes que se fazem por aí com vistas a entreter o fim de semana de enfarados executivos paulistanos.
Depois que começou a ser publicado pela Companhia das Letras, considerava-se, por sua conta e risco, o maior escritor brasileiro vivo. E dizia isso sem nenhum pudor, em qualquer lugar, em qualquer roda, em círculos íntimos ou públicos. Ainda não era a doença, repito e garanto, mas ali talvez ela já deitasse seus ovos.
Mez da Grippe
De todos os livros de Valêncio onde, de modo singular, único e insubstituível, a intervenção gráfica era o seu estilo & estalo e a sua mais insolente maneira de criar, prefiro o “Mez da Grippe”. A meu ver, um autêntico clássico contemporâneo, ao lado apenasmente do “Catatau”, de Paulo Leminski, e de “Galáxias”, de Haroldo de Campos.
Composto em 1981 e publicado numa ediçãozinha canhestra, em Curitiba, o livro trata da epidemia de gripe espanhola que assolou a cidade em 1918. Ali Valêncio Xavier serve-se de seus mais caros recursos: fac-símiles de anúncios fúnebres da época, recortes de jornais antigos, cartões-postais, ilustrações. E nos faz passar aos olhos, como numa procissão sinistra, a história da História. Sem erro, uma obra-prima.
Só em 1998 seus livros passaram a ser considerados nacionalmente, depois que a Companhia das Letras reuniu 5 de seus melhores títulos – todos até então pessimamente editados – , num só volume. Mais pela intervenção de Boris Schnaiderman e Décio Pignatari do que por algum suposto “faro” crítico, digamos, da editora paulista.
Várias vezes instado por amigos a visitá-lo em sua casa do Ahú, não tive coragem de vê-lo derruído pelo Alzheimer. A última vez que nos falamos foi através de um longuíssimo telefonema que ele, já desconhecendo que estávamos estremecidos, me privilegiou. Fomos além de todos os anéis de Saturno…
Ultimamente sabia de Valêncio por ouvir falar. Ao tempo em que ainda podia sair de casa, contavam, levava pontualmente seus textos ao jornal “Gazeta do Povo” onde colaborou por décadas e que, puro caos infantil, não eram, óbvio, publicados. Ele pensava que sim e renovava a colaboração com obsessiva freqüência. Abraçava inimigos fidagais na rua… E acho que não sabia mais se escrevia ou bordava. Três meses de UTI, num hospital aqui próximo de casa. Na degenerescência da doença horrível… Crudelis vitae!
Adeus, velho! Fica a sua lição, a grande lição do inconformista e do iconoclasta que achava a literatura brasileira uma coisa “pouca digna de Alain Robbe-Grillet”, um dos santos de sua devoção. Pelo que disturbava, claro, a exemplo dele mesmo, Valêncio Xavier Niculitcheff, o coro dos contentes.
Dramalhões de pais com filhos
Hoje o que temos são amazonismos pós-modernos e dramalhões de pais com filhos excepcionais travestidos de literatura de repertório. Todos devidamente premiados, claro… Uma prosa que mais parece pastiche, mal-traduzido, da idiotia norte-americana de última safra. É só dar no “New York Times” e a indiarada corre a traduzir, editar, e espalhar pelas vitrines das mega redes de livrarias a baboseira ianque & suas congêneres.
Enquanto isso, a literatura tupiniquim, sabemos, afunda, sob a égide da legião de manés e de professoras universitárias semi-analfabetas. Uns e outros a se considerarem críticos, ensaístas, pesquisadores… Não passam de exibicionistas, a soldo do reles mundo acadêmico, no geral bancado pelos impostos de nós mesmos, os otários do Sanatório das Letras Tupiniquins. E eles, o manés e as “normalistas” do campus, ainda dizem que mandam… Podem não mandar, mas que “premeiam”, ah, três, quatro vezes por ano, “premeiam” – compadres e apaniguados.
Não fui ao velório e muito menos à cerimônia de cremação. Só cinzas, na noite que ora neblina entre pinheiros, Valêncio Xavier não é mais. Morreu sem que pudesse lhe passar um de meus pesadelos transformados em texto, e que ele desejava incluir numa antologia onírica, sempre adiada.
Ficou também o sonho do escritor Valêncio Xavier Niculitcheff pelas ruas de Curitiba, tarde da noite, recitando Perec, lembrando Resnais e falando mal da vida alheia.
VALÊNCIO XAVIER
Valêncio Xavier Niculitcheff nasceu em São Paulo, em 1933 e morreu em 2008. Morou em Curitiba, onde atuou como consultor de imagem em cinema e roteirista e diretor de TV. Como cineasta, recebeu o prêmio de “Melhor Filme de Ficção” na IX Jornada Brasileira de Curta-Metragem, por Caro Signore Feline. Dirigiu, entre outros vídeos, O Pão Negro – Um Episódio da Colônia Cecília (1993) e Os 11 de Curitiba, Todos Nós. Um dos nomes mais contundentes da prosa de inovação brasileira, escreveu grande número de narrativas em jornais e revistas, como Nicolau e Revista USP. Entre suas publicações mais recentes, destacam-se O Mez da Grippe (Companhia das Letras, 1998), Meu 7º Dia (Ciência do Acidente, 1998) e Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido (Companhia das Letras, 2001).