Entrevista de Antonio Cícero a Luis Dolhnikoff e a Régis Bonvicino
Luis Dolhnikoff: A primeira questão relevante que me vem à mente, em uma conversa sobre poesia, é para que fazer poesia hoje. Note que não se trata de perguntar por que, pois isso aponta para um motivo, e os motivos são pessoais e, no limite, idiossincráticos. Para que tem uma dimensão mais objetiva. Não me refiro, porém, a qualquer questão adorniana. A coisa se torna menos óbvia e, ao mesmo tempo, menos opaca, se lembrarmos de todos os movimentos do século XX, ou seja, de nosso passado poético imediato. Um modernista sabia para que fazer poesia, um concretista também, assim como um poeta engajado, e mesmo um poeta “marginal” (poetizar a vida e vivificar a poesia etc.). Um romântico o sabia, e também um simbolista, que acreditava, por exemplo, na necessidade de expandir a sensibilidade e os meios expressivos. É verdade que a poesia há muito deixou de ser uma atividade particularmente trabalhosa, pois hoje vale certo laisser faire. Mesmo assim, não é habitual alguém se dedicar a algo sem nenhuma razão de ser. Um hobby faz sentido (justamente por ser um hobby), atividades prazerosas fazem sentido, buscar o conhecimento faz sentido, ganhar dinheiro faz sentido, adquirir status faz sentido, conquistar mulheres faz sentido, mas não vejo como a poesia hoje possa enquadrar-se em alguma dessas categorias. Então, qual o sentido?
Antonio Cícero: Penso que quem faz poesia de verdade o faz porque, em algum momento da vida, em geral quando ainda jovem, teve experiências estéticas extraordinárias com alguns poemas, de modo que estes lhe revelaram o que a poesia é capaz de ser; ou talvez eu deva dizer: o que o ser é capaz de ser. Quando um leitor se apaixona por um poema, ele se torna seu de um modo muito especial. Um poema pelo qual nos apaixonamos guarda algo do nosso próprio ser. Daí vem a vontade de guardar em poemas o que se quer guardar do próprio ser.
LD: A primeira questão talvez esteja ligada, de algum modo, ao que chamo de atual neoformalismo multiforme alimentado de solipsismo temático: “Se não há mais formas dominantes, volta a ser dominante certo formalismo multiforme. E esse formalismo multiforme, em que cada poeta se compraz em criar suas próprias idiossincrasias formais, é impotente para ir além da mera idiossincrasia formal. Todo grande poeta sempre se caracterizou por desenvolver uma voz fortemente particular. O individualismo poético contemporâneo, porém, assim como a adesão passiva às regras grupais nas antigas escolas, é incapaz de gerar vozes poéticas realmente poderosas. A isso se alia, em termos temáticos, um coerente solipsismo, no qual o pequeno mundo cotidiano do poeta e seu não maior mundo mental são dominantes. Em termos práticos, não se pode separar, portanto, o fraco formalismo idiossincrático do forte solipsismo temático”. Você concorda, de alguma forma ou em algum grau, com esse diagnóstico? Se sim, vislumbra alguma saída?
AC: Não creio que o fato de não haver mais formas dominantes implique necessariamente formalismo. É possível até que isso leve ao oposto do formalismo, digamos, ao “conteudismo”, pois é possível que a pessoa que escreve poemas pense que, uma vez que qualquer forma é aceitável, a forma seja secundária em relação ao “conteúdo”. De fato, acho que é isso que em geral acontece, para a maior parte das pessoas. Elas acham que escrever poesia é mais “fácil” do que escrever prosa, pois, para escrever um bom texto de prosa, é preciso saber gramática, coisa que não lhes parece ser necessário para escrever um poema, onde “vale tudo”. Sendo assim, usam algo que chamam de “poesia” para escrever seus diários ou suas confissões…
Na verdade, tanto o formalismo quanto o conteudismo são posições que só afetam os maus poetas, pois os bons poetas sabem que forma e conteúdo são inseparáveis no poema.
Contra o “anything goes”
LD: Complementarmente, penso na possibilidade ou necessidade de negar outra certeza “pós-moderna”: a de que não se pode definir, ou seja, descrever, a linguagem poética, devido ao fim das formas fixas, o fim das fronteiras entre os gêneros etc. Porque isso tem tudo a ver com o quadro descrito na questão anterior, alimentado agora por uma dimensão ideológico-linguístico-política, expressa por muita gente, de Beuys a Warhol a Leminski, pela afirmação segundo a qual, grosso modo, artista é quem quer, e arte o que alguém que se queira artista quer, o mesmo valendo para a poesia. Chamo a isso de democratismo, a doença senil do “espírito 68”. Uma crença (ou ilusão) neorromântica antimeritocrática, que tem, uma vez mais, tudo a ver com todo esse Zeitgeist. Parafraseando Kennedy, acredito na necessidade de se buscar definir/descrever a linguagem poética, não porque seja fácil, mas porque é difícil. Tão difícil quanto necessário, como saída possível (mesmo se não provável) para o laisser faire contemporâneo, sem o que me parece que estamos condenados a mais do mesmo, o que não é ou não deveria ser uma opção. A respeito disso, lembro-me de um comentário feito por Drummond em algum lugar, segundo o qual o modernismo havia permitido que quem não sabe escrever poesia o fizesse; obviamente, isso não torna o modernismo condenável, mas tampouco torna defensáveis todas as suas consequências, nem inteiramente aceitável, na minha opinião, uma posição de distanciamento acadêmico que, entre outras coisas, por medo de incorrer no pecado capital do anacronismo, não leva em conta afirmações como essa de alguém como Drummond. E se o modernismo o fez, o “pós-modernismo” o faz numa escala e numa intensidade incomparáveis. Daí a necessidade, não de um retour a l’ordre, mas de uma nova lucidez poética, que poderia ou não ter alguma consequência prática. Você acha isso necessário e/ou possível? Em caso negativo, não estamos perigosamente condenados a mais do mesmo (o perigo refere-se à irrelevância)?
AC: Tanto quanto você, deploro essa ideia que você descreve, segundo a qual artista é quem se diz artista, e arte é o que o artista diz ser arte. Por outro lado, a ideia de Drummond, segundo a qual o modernismo permitiu que quem não soubesse escrever poesia o fizesse, também parte de um pressuposto com o qual não se pode concordar. É o pressuposto de que fazer poesia é escrever corretamente segundo determinadas regras. Ora, isso é simplesmente falso. No século XIX, muita gente aprendia a escrever sonetos absolutamente corretos, e usava essa técnica para fazer sonetos ocasionais: comemorando o aniversário de fulana, a inauguração de uma obra, a formatura de um advogado etc. Praticamente nada disso vale nada. Praticamente nada disso é um poema de verdade. É claro que escrever bem é uma condição necessária para se fazer um poema, mas está longe de ser uma condição suficiente. Montaigne já observava que, no que diz respeito à poesia inferior, “pode-se julgá-la pelos preceitos e pela arte. Mas a boa, a excessiva, a divina está acima das regras e da razão”. E Giordano Bruno já afirmava que “a poesia não nasce das regras, a não ser por imprevisível acidente; mas as regras derivam da poesia: porém há tantos gêneros e espécies de verdadeiras regras quanto há gêneros e espécies de verdadeiros poetas”. Ou, como sintetizou Kant, “o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento (seja teórico, seja prático), logo não se fundamenta em conceitos”. No entanto, isso não significa voltar àquela ideia pós-moderna de que “anything goes”. Apesar de não ser objetivo, o juízo de gosto aspira à universalidade. É possível chegar a tal universalidade – uma universalidade subjetiva, porém não particular – porque o juízo de gosto se encontra acima de qualquer interesse particular. Por isso, discute-se o gosto – é das coisas que mais se discutem – e, com o tempo, chega-se perto de um consenso subjetivo, que se corporifica no cânone. O cânone é o conjunto das obras que, em princípio, devem ser conhecidas por todos.
Régis Bonvicino: Você não acha que toda a poesia e a literatura deveriam ser comparadas (internacionais), para que os critérios de criação e avaliação fossem mais universais e rigorosos?
Antonio Cícero: Sim; e acho que tendem a ser comparadas.
RB: Percebe algum isolamento no cenário da poesia e da prosa brasileiras? Como vê a tendência – se concorda – da insularidade brasileira?
AC: Não sei se essa tendência era uma opção dos brasileiros ou uma situação imposta pela percepção geral do Brasil como um país periférico. De todo modo, penso que ultimamente tem havido considerável mudança nessa percepção do Brasil.
RB: Se não sabemos mais “para que” poesia, como diz o Dolhnikoff, poderia dizer-nos se há crítica literária que eleve o nível dos criadores?
AC: A crítica literária de verdade é importante, pois é um dos mais importantes componentes na determinação das obras canônicas. O cânone poético é produzido por uma sociedade aberta, composta por poetas, críticos, professores, estudantes e leitores em geral. Ele nunca é absolutamente definitivo. De vez em quando, o direito de determinadas obras a pertencer ao cânone é questionado; de vez em quando, outras obras (novas ou antigas) entram no cânone. Mas o fato é que, à medida que o tempo passa, determinados autores que foram apreciados por várias gerações constituem uma espécie de núcleo canônico, e este dificilmente é modificado. Hoje me parece praticamente inconcebível que autores como Homero, Horácio, Dante, Shakespeare, Baudelaire, Rilke ou Drummond deixem de ser canônicos.
RB: Gostaria que falasse um pouco sobre figuras hoje um pouco esquecidas, como Haroldo de Campos e João Cabral (este menos esquecido do que aquele); como percebe a presença de Augusto de Campos e Décio Pignatari?
AC: Francamente, não me parece que Haroldo de Campos ou (de fato, menos ainda) João Cabral tenham sido esquecidos. João Cabral, na verdade, talvez seja, junto com Drummond e Bandeira, o mais lembrado de todos os poetas brasileiros. Quanto a Haroldo de Campos, este ano mesmo participei de um seminário em Princeton dedicado a ele e a Octavio Paz. Há poucos meses, saiu O segundo arco-íris branco, que teve excelente acolhida crítica. Pela qualidade do seu trabalho, creio que Haroldo se tornará cada dia mais importante. O mesmo vale para Décio e Augusto. De Augusto, aliás, assisti há poucos meses, no Rio, no Instituto Moreira Salles, a uma apresentação chamada “Poemúsica”, com a participação do Cid Campos e da Adriana Calcanhotto. Posso dizer que foi um dos espetáculos mais bonitos que já vi.
RB: Há apoio à pesquisa no Brasil? A universidade cumpre um papel alentador?
AC: Não sei. Acho que há apoio à pesquisa intrauniversitária.
RB: Estamos condenados ao crônico aggiornamento de Machado de Assis?
AC: Espero que não. Acho que trabalhamos para que não nos limitemos a isso.
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