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A poeticidade do mundo

Compreendido por Axelos como questão aberta, o fim da arte se vincula à formulação da poeticidade do mundo. Para além de um problema, esse tão propagado fim – desde a modernidade, para se dizer no mínimo – , “não está sozinho, muito pelo contrário atua como referencial nas áreas do saber e da técnica” (Axelos, 1991: 136), uma vez que se situa na constelação do mundo, numa condição mais condizente com um sentido sempre em atualização, disposto a um andamento dinamizador em vez de auferir um estado decrescente rumo a uma conclusão pré-racionalizada.

Exatamente por situar o debate sobre a poeticidade face a uma enigmática multiplicidade (ibid.) de esferas, de produtores culturais e relações interdiscursivas, é que a ênfase de Axelos na arte não se vê superada pela implantação histórica de um estado monopolizante de operações técnicas e geopolíticas, alcançando seu auge nessa fase transnacional e fundamentalmente mercadológica do capital. Ao contrário, a criação poética (artística aí entendida) mais fortalece sob o risco do fim (de certas destinações e amoldamentos históricos) sua atividade, seu poder multiplicador de linguagens, na relação com o mundo. Passa a se projetar numa dimensão de exterioridade e exposição – verifica-se uma autoposição de seus componentes estéticos no cotejo com as forças de linguagens e os poderes (sejam os da cultura, sejam aqueles relativos à sua veiculação) –, depois de destituídas as idéias de originalidade e finalidade, alçadas a metas absolutas e superiores.

Desde a realização de um ensaio como “Rimbaud e a poesia do mundo planetário” (1964), Kostas Axelos vem desbravando um corte filosófico que, só alguns anos mais tarde, encontrará interlocução, como, por exemplo, nas conceituações de Deleuze e, também, de Guattari (em particular, quando o esquizoanalista, coautor de Mil platôs, pensa sobre a transdisciplinaridade). Repercute até hoje a compreensão de que Rimbaud praticou um diálogo com os diferentes planos do conhecimento no instante em que investigava, na escrita de poesia, sobre o potencial inaudito de crítica e criação numa era tecnicista, como se lê em seu texto publicado nos anos 1960.

A contar de um referencial moderno – o poeta de Illuminations, no momento em que grafava suas experiências de linguagem, no enfrentamento totalizador e paradoxal das novas possibilidades de ser/estar no presente, tal como contém o enunciado “É preciso ser absolutamente moderno” –, o pensador de Através do pensamento planetário apresenta as coordenadas que situam poeticidade e mundo, a partir de uma descentralização fundamental dos lugares da poesia e do poeta, desde então. Rimbaud comparece como agente e imagem da arte que se produz sob o signo de uma indagação constante acerca dos seus limites e enlaces. Trava-se, à exaustão, um embate capaz de conduzir a escrita literária ao silêncio, seja através da incorporação de todos os sentidos (discursos e saberes de uma época) seja pelas linhas-de-fuga (efetuadas numa gradação, que vai da caminhada à viagem, até a desterritorialização crescente rumo ao Oriente e à África) traçadas em relação a uma ordem vigente, central. Não se convive com a abertura de dimensões culturais e conceituais trazida pelo expansionismo civilizacional da modernidade sem que deixem de se imprimir na produção de literatura os sinais do deslocamento de referentes, numa ação conjunta sobre a corporalidade e o corpus (para falar, com J-L Nancy de toda uma topografia discursiva e cultural) do poeta (veja-se o livro Corpus, de Nancy).

Sublinha Axelos, com justeza, a visão interrogativa (Axelos, 1964: 165) de Rimbaud, que viabiliza a construção de um trabalho poético montado sobre o ataque ao eurocentrismo, sobre a recusa aos valores ocidentais – dos religiosos aos políticos, projetados estes no pano-de-fundo radicalizador da Comuna de Paris (1871). Apreendida como uma verdadeira sondagem do homem moderno, a poética indagativa e impaciente (tal como esposa a perspectiva de leitura de Blanchot, em O livro por vir) composta por Rimbaud fornece, também, o desbravamento de veios múltiplos de ação e conhecimento na era expansionista industrial aberta pelo capitalismo no século XIX.

É justo nesse ponto que Axelos concebe a poética rimbaudiana com o perfil de inúmeras problemáticas novas, relacionando elos insuspeitados entre a criação de poesia e o trabalho humano, entre espiritualidade e técnica, entre amorosidade e comunidade. Como bem captou o estudioso de Rimbaud, o autor de Uma estação no inferno se situa num plano já radiador da diversificação planetária quando se confronta com a tendência homogeneizadora da modernidade mercantil, em franca expansão, capaz de tornar norma a dicotomia entre poesia e mercado, entre corpo e imaginação, entre indivíduo e coletividade. Rimbaud se mostra, então, como o autor (também recepcionado por Deleuze em igual proporção fomentadora de conceitos, novos cortes e combinações de literatura/vida, como se apreende, especialmente, em seu Foucault) que mais se defronta com as potências vitais, assim como pela travessia de realidades culturais interditadas até àquela época, territorializadas pelos estamentos geopolíticos europeus.

Numa espécie de contraviagem – em espécies de espaços (parafraseando-se o livro seminal de Georges Perec) –, Rimbaud comparece na mirada do filósofo grego como aquele que redistribui a topografia da escrita de poesia. Ao mesmo tempo, ele cartografa diversas espacialidades e culturas (as ditas “primitivas” e as que apresentam o contorno do devir). Assim, projetam suas caminhadas pelas cidades europeias modernas, já tomadas pelo esquadro das multidões e das novas formações sócio-culturais, sob uma perspectiva descentralizadora (do desregramento de todos os sentidos, de um trato com as margens), que vai conduzi-lo a Áden e a Harar.

Na realidade, Rimbaud pratica a escrita como cartografia. De início, o referencial literário clássico é refeito, quando ainda estudante aplicado no Latim. E, na sequência dos poucos anos de sua adolescência (tempo em que dura sua produção poética), são apropriados o Romantismo e os poemas da atualidade parnasiana, posteriores a Baudelaire, na virada para o que ficou conhecido como Simbolismo. (Deve-se pôr em destaque o dado que o criador de Fleurs du mal se situa como matriz de suas desleituras/reescritas). Em tal andamento, o literário deixa de ser o único molde para a escrita de Rimbaud. Seu material se mescla, plurificando-se. Recolhe textos diversos no cotidiano, em todas as variações inscritivas, em seu uso mais ordinário, a partir mesmo do refugo cultural (veja-se a esse respeito “Alquimia do Verbo”).

Jacques Rancière já observava que o poeta havia escrito, além de ter lido, o seu século (Veja-se o ensaio “As vozes e os corpos”, de Políticas da escrita). Todo o potencial de conhecimento, na emergência de ciências e planos do saber (do esoterismo ao urbanismo, da apreensão geopolítica do mundo à concepção de uma revolução político-estética, protosituacionista, como a disseminada pela Comuna de Paris) despontados àquela altura do tempo, move a poética rimbaudiana. Daí Axelos corrobar a abertura de esferas de sentido para a literatura, confrontada com o mercado e as nascentes tecnologias de impressão e projeção visual, ao mesmo tempo em que se encontra redesenhada pelas formações de linguagem no interior das ciências humanas operadas na segunda metade do século XIX a caminho de seu fim.

“Qual horizonte englobaria a nova totalidade humana?” (Axelos, 1964: 169). A indagação, crescente em Rimbaud até seu silêncio criativo e rompimento com o mundo europeu, deixa em suspenso, em passagem, um infinito campo de experimentações, questões em aberto lançadas, no entanto, a um certo desafio, a um visível limite. Não sem razão, Axelos localiza em sua obra-vida (como a designou Alain Borer) o ponto de explosão de tal produtividade escritural e convivial com a abertura de planos/platôs/esferas em que se realizam modos emergentes de síntese e relação com as multiplicidades, com as totalidades, não solucionáveis por um enquadramento mecânico, unilateralmente racionalista. Eis o que se nota à medida em que ao criador e seu corpo se oferecem possibilidades não-duais de existência na esfera multidimensional de signos e referências contidos nos arquivos não-lineares do homem histórico, a Ocidente do planeta.

O mundo moderno e contemporâneo, ocidental e europeu, em vias de se tonar planetário, justamente já o é; planetário, quer dizer, errante, migratório, percorrendo, assim como os planetas, o espaço e o tempo – o continuum quadridimensional –, sem lugar e sem fórmula (…) Esse mundo aspirante ao Todo implica o Nada vazio, o niilismo, quer dizer, a nulificação da “verdade” do mundo. O niilismo é a verdade do mundo moderno tomado na engrenagem planetária, do mundo onde a verdade do ser não se manifesta; toda resposta à questão do porquê fundamental fracassa – quando o horizonte escapa, como se já fosse fugidio. Os homens desse “mundo” são consequentemente viajantes errantes e Rimbaud busca ter a verdade – o sentido da manifestação dessa errância.
(ibid.: 150)

A sintonia promovida pelo poeta ardenês (das Ardenas, noroeste francês, na fronteira com a Bélgica) com um universo amplificado de linguagens, saberes e culturas, a partir do movimento descentrado inaugurado pela flânerie baudelaireana, significa na leitura do filósofo um marco não apenas para a produção literária do século XX, mas atua como referência para os impasses e mutações do mundo tardo-moderno. Por situá-lo no fulcro da problemática nascida entre uma ordenação global, expansionista e o dimensionamento desterritorializador, capaz de articular o planetarismo para fora de um enfoque hegemônico, Axelos assimila defrontações da arte, da poeticidade, em plena repercussão na atualidade. Exatamente, quando se pensa no presente e no vir-a-ser da poesia. Algo que se acirra ainda mais no momento em que tal discussão é localizada na passagem do século/milênio. E mais: com um adendo contextualizador, que reloca a criação rimbaudiana na cena do mundo globalizado e no plano interdiscursivo de um diálogo com poéticas da periferia ocidental.

Photomaton & Vox

Em Photomaton & Vox (1978), de Herberto Helder, surge de modo deliberado um intercâmbio dos mais produtivos com a vida-obra rimbaudiana. Juntamente com o trato da figura de Diotima, colhida do Hipérion, de Hölderlin, a presença de Rimbaud, naquele que é uma espécie de composto teórico-performativo da imagem e da dicção do poeta Helder – Photomaton/Vox –, acaba por criar uma interessante convergência com a leitura promovida por Axelos em Métamorphoses (1991).

Tomados pelo filósofo como recorrências axiais da poesia do Ocidente no que envolve o esposamento das concepções de sujeito, divindade e mundo, tornados elementos essenciais da atividade escritural, Hölderlin e Rimbaud dão materialidade às modernas partilhas ocorridas sempre (desde Homero, apreendido por Axelos nas primícias da literatura) entre o conhecimento de cada, dada, época e uma linguagem que é ritmação, imagética e pensamento, em articulações simultâneas de experiência e sentido. Referencializados pelo autor português no momento em que inventaria sua bio/bibliografia, de acordo com o enfoque de Diana Pimentel (Ver a voz, Ler o rosto, 2007) sobre Photomaton & Vox, os poetas-chave de sua trajetória não por acaso tornam explícita a indissociável dinâmica nomeadora de uma arte confrontada com seus núcleos de extensão e finitude, por meio dos mais arriscados e radicados desdobramentos. Especialmente, em torno de Rimbaud verifica-se uma concentração mais visível, reiterada, na sucessão dos “textos de autointerpretação” (ibid.: 55), integrantes do livro citado.

Nada mais apaziguador que ter falhado em todos os lados da biografia. E – como se o não fosse: resolutamente!

Olhe-se Rimbaud: “On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans”. E quando se tem quarenta e dois? Aos dezessete pode, por exemplo, expor-se a desenvoltura impertinente: escrevo para compreender, ou modificar, ou salvar o mundo. Nada sério, claro.

Mas aos quarenta e dois, é-se tão pouco sério que convém evitar os superlativos da candura exercida com tanto impudor. Respondemos que é “porque sim” (…) Resolve a gente ao menos o problema na internidade biográfica? Tudo para adiar, imagine-se. Adiar horizontalmente, sobre as idades pessoais, o mundo. E falam de seriedade!(Helder, 1987: 38-39)

Uma série de motivos se faz notar no elo formado entre as escritas de Rimbaud e Helder, exatamente no que se relaciona às indagações imorredouras (a palavra ininterrupta, de que trata Blanchot em O livro por vir, 1984: 93), atualizadas pela linguagem da poesia em consonância com as diversificadas formas de saber existentes nos últimos séculos modernos. Como não atuar no presente, precisamente agora? Como deixar de considerar o chamado do mundo – seja como compreensão, modificação ou salvação (nos termos de HH), e ainda como linha-de-fuga trilhada ao revés, pelo risco, pela confrontação extrema do lugar e do tempo?

É sempre tempo de rebentar, sempre ódio, sempre crime, ou suicídio, ou loucura – evidentemente: com a coroa de rosas, botânica das nossas posses.

E o pânico? Ouviram falar? Pois eu estava num aeroporto africano, em fuga. Porque, quando se parte de um lugar, vai a gente a fugir, sempre.(Helder, 1987: 39)

Ao traçar, desde os gregos, os dimensionamentos abertos à poesia, no suceder de concepções que partem do mito e refazem o vínculo com as totalidades (o sagrado, o cosmos, numa primeira instância) em proporções crescentemente problemáticas das ideias de divindade e homem, Kostas Axelos faz confluir em torno de Hölderlin e Rimbaud os últimos vestígios de um enfrentamento maximal do mundo em todas as suas acepções nomeadoras e conceituais. É a partir de tal encruzilhada histórico-cultural que pode ele relançar a poeticidade em vínculo estreito com a perspectiva da planetariedade no campo do pensamento.

Por um lado, observa-se que o pacto pleno com as potências do presente, atravessadas pelo modular interrelacionamento de mediação técnica e mundialização econômica, encontra formas de abertura através da experiência inédita da poeticidade do mundo (Axelos, 1991: 147) . Em contraface, a poesia propriamente escrita, literária, se localiza no cerne de um embate milenar, procedente de uma extração cosmogônica, do partilhamento entre linguagem humana e palavra primordial do sagrado, presentificando-se pela regência suprema (ibid.: 142) da cosmotécnica contemporânea, como bem pontua o filósofo.

Queiramos ou não, somos ritmados pela onitemporalidade constantemente tridimensional em que, e através da qual, surge e começa a se findar a história, configuração visível de uma cadeia de épocas. Pois o que chamamos de devir, continua, bem mais vasto do que a história. Mas o que, no curso do devir é destinado a advir, forma ou formará ainda uma época ou inscreve sua marca no fim das épocas, a era das épocas sendo terminada?(ibid.: 147)

É precisamente nesse ponto – nesse núcleo vivo, em movimento, de indagação – que a tecnicidade mundial, com toda uma engrenagem planificadora, não surge de modo consecutivo-causal como coroamento de um processo aplainador de contrastes pelo qual se timbraria um fim de horizonte tanto histórico quanto poético. No ver de Axelos, embasado na leitura de autores literários, a técnica articula um modo refigurador da experiência criadora e reflexiva, relacionado com a constelação do mundo invisível, dizendo respeito ao plano imaterial, conceitualmente inexplorado, constitutivo dos aparatos “universais” da informatização, um domínio, aliás, nada monolítico. Refere-se, pois, ao que advém, uma vez que a poesia se instala no vórtice do questionamento lançado pela tecnicidade contemporânea. Cabe ao seu potencial liberador tanto de invenção quanto de investigação a mobilização de recursos e procedimentos em face de uma estagnação histórica geral, pois o “empreendimento da técnica planetária visa a açambarcar o mundo, que permanece invisível e cessa no geral de propor questões” (ibid.: 148).

Essencial se mostra o erguimento da poesia enquanto poeticidade do mundo para a elaboração de um campo de estratégias e possibilidades pluralistas, formadoras de um outro conjunto de signos técnicos, estéticos e políticos nessa fase do chamado capitalismo conexionista, da forma como entende Peter Pál Pelbart. Como disse Rimbaud, na Carta do Vidente ou do Visionário, subsiste um espectro de imaterialidade merecedor de ingressos favoráveis à imaginação e à presença dos diferentes agentes sociais e culturais – dar a visão, enfim, ao mundo-imagem (ou do chamado sistema-mundo) desponta como trabalho urgente e desbravador na interface do uso meramente reprodutor do repertório tecno em vigência.

Pál Pelbart já podia sinalizar a emergência de redes autônomas de criação individual e atuação comunitária no contrapolo do novo capitalismo tecnotrônico (Veja-se o ensaio “Poder sobre a vida, potências da vida”, integrante de Vida Capital, 2003). Com argúcia, o pensador brasileiro observa que em correspondência mesmo com a metáfora conexional plugada à máquina abstrata do capital globalizado, assiste-se ao surgimento de territórios existenciais alternativos, nos quais se imprime a marca do corpo, do sentido de vida em comunidade, difusa na simultaneidade do pacto das interações on-line.

O filósofo de Vida Capital recepciona as constelações de sentido de que trata Axelos quando assinala a reinvenção da corporeidade; a geração de vizinhança e solidariedade em contrafacção ao pertencimento impalpável e generalizador travado pela noção de sociedade (tal como podia, também, pontuar Sloterdijk); a criação, enfim, de um plano/projeto existencial e subjetivo na contramão da serialização e das reterritorializações propostas pela economia atual em tempo de rede (“Poder sobre a vida, potências da vida”).

Justamente tal disposição entrelaçadora, formuladora de novas sínteses e propulsões de simultaneísmo e informação, favorece, no entendimento de Pál Pelbart, as inteligências grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capitalismo. Refaz-se, por força de tal estatura deslocadora e multiplicadora de agrupamentos e conjunções cognitivas, o potencial, por exemplo, dos excluídos urbanos, dos periféricos de todas as latitudes e margens, com foco voltado para vetores de autovalorização, de autonomia política.

Atrito/Arte

Não por acaso, a arte, ou, melhor dizendo, o que se concebe como poeticidade planetária, na compreensão de Axelos, comparece no horizonte do monopólio técnico para além do uso imediato, funcionalista, das conexões, atuando através da postura dissensual das linguagens em difusão e diagramatização no espaço nocional da web, com maior investimento no eixo das cognições. Algo que também ocorre como fator de transformação no que se refere ao senso corrente de comunidade. É o que se mostra observável em espaços de segregação revitalizados sob o influxo de criadores – nos campos da música e da poesia (etimologia do rap em sua oralidade composta de rhythm and poetry), do teatro e do vídeo –, que são, numa crescente extensão, promotores culturais e sociais de uma realidade grupal, atuantes nas esferas abertas pela globalidade. Tomada essa numa acepção de força-invenção dos cérebros em rede (como pensa Pál Pelbart), em sincronia com a potência multitudinal do homem comum em ampla convivialidade.

Um ponto convergente com o pensamento de Pál Pelbart pode ser notado em Estética do conceito, de Sousa Dias, quando o filósofo português apreende a axiomática do capitalismo informacional, caracterizado por uma “equivalência generalizada”, de toda a espécie de forças descodificadas: humanas e não humanas, naturais e “espirituais”, de trabalho e de tecnologia, fluxos de moeda, de saber, de linguagem” (Dias, 1999: 9). Frisa ele, simultaneamente, o que compreende como dinamismos heterogêneos (ibid.), advindos, de modo não determinista, das mutações sociais e culturais no seio de uma civilização tecnocientífica como a atual.

O que torna nossa época interessante é que quanto mais o neocapitalismo “globaliza” as suas axiomáticas e articula liberdades inéditas (…) mais suscita movimentos descontrolados, resistências e fugas que não consegue colmatar, forças não tecnocratizáveis que não sabe como controlar. (…) Migrações da periferia, facilitadas pela livre circulação internacional. (…) Será curioso ver como é que o sistema fará para lidar com as exclusões que produz e também que novas formas de resistência fará surgir, que contra-organizações e que contra-poderes adaptados às condições da sociedade comunicacional emergente.(ibid.: 10)

Uma linha de diálogo com a arte agora – com a poeticidade no mundo global –, pode ser aberta de acordo com o interesse pela criação em diferentes culturas e formações comunitárias do presente, manifestado nos processos reinventados de resistência. Em Literatura, defesa do atrito, a teórica e, também, poeta Silvina Rodrigues Lopes destaca, precisamente, o plano experimentador aberto à produção literária ante os regimentos culturalizadores, os universais do mercado mundializado. Em lugar do amoldamento a uma face tecnicista, monovalente, de pertencimento às mais novas ofertas de legitimação da escrita, Rodrigues Lopes trilha a via inquiridora, investigativa, pela qual a poeticidade se relança, através “de uma força de pensamento capaz de, pela sua potência de interrupção, abrir vazios no manto liso da cultura e impedi-la de ser inteiramente dominada pelo emaranhado das trocas sociais”. (Lopes, 2003: 13)

Concentrada no que define como “delibitação dos modelos e ideais de universalização” (ibid.), a estudiosa de “A literatura como experiência” escapa, contudo, dos contrapontos localistas e identitários que poderiam, numa primeira instância, fazer oposição aos desígnios homogeneizadores da produção artística atual, mas acabam por revelar um posicionamento imobilizante, refratário ao atrito com os modos sempre ativados de relação e captura. Resulta de tais posturas culturalistas o segregamento de estratégias localizáveis, autoreferendadoras, com “data vencida”, entretanto, no que diz respeito ao seu poder de intervenção e interatividade.

Exatamente, por enfatizar o elo indissociável criado pela arte com o mundo é que o fator experimentação se mostra tão destacado por Silvina R. Lopes. O curioso é que ela o sublinha no momento em que, nos termos de uma vaga, ineficaz, designação pós-moderna, teria sido relativizado todo um potencial especulativo e radicalizador da criatividade literária, seguindo-se uma ultrapassagem linearmente histórica dos paradigmas da vanguarda.

A importância dos ensaios escritos sob o signo-conceito do atrito é a força com que a escrita e o dado experimental obtêm reinserção à altura da globalidade cultural. Reinserção sem apagamento dos conflitos, sem aporte nas simplificadoras contrafacções à complexidade que envolve os elos entre arte e pensamento hoje. Avulta um modo novo, outro, que não adequa mais à agenda pós-moderna, com suas linhas programáticas vaga e infinitamente traçadas, desprovidas do diagrama das forças político-culturais do presente século, atravessadas no mínimo por dois eventos-chave, aquele proveniente dos abalos causados ao pacto da multiculturalidade incluso no constructo globalização (Setembro de 2001), assim como o desastre estrutural dos moldes eminentemente econômicos de tal projeto, culminados na revivência norte-americana do crack, em 2008.

Notável se revela, em Literatura, defesa do atrito, a capacidade de restituição da conceitualidade e da inventividade a uma esfera como a da arte. Tal proposição ocorre no momento em que o manancial fornecido pela tecnocultura é encaminhado a uma órbita cerrada, específica, de comunicação – mais próxima da manutenção one way, tão-somente on-line, da experiência, do que do ingresso pluralizador ao corpo presente, coletivo, oferecido pelo universo digital para além do funcionalismo maquínico. Ainda se nota a débil absorção do suplemento dos saberes e das linguagens reconfigurados pelo pick-up rizomático, que se virtualiza para direções infindáveis da vida cotidiana com procedimentos instauradores de formas inéditas de pensamento e existência.

Não à toa, o primeiro intertítulo de “A literatura como experiência” aponta para “Defender, escavar, vazios na cultura”. Não é por acaso, também, que a estudiosa portuguesa vem insuflando, sobretudo, no âmbito da poética uma postura analítica incitadora de producentes relações artísticas e alianças em nível teórico, destacando-se, inclusive, como um dos leitores seminais de Herberto Helder.

Em A inocência do devir, Silvina R. Lopes cria uma intrigante interseção da escrita helderiana com o pensamento de Nietzsche (tantas vezes referido em Photomaton & Vox) e a poética de Hölderlin. Acerca, justamente, do conceito de devir, o sentido da invenção de uma origem implica outra ordem de destinação, envolvendo a abertura para o inominável (Lopes, 2003: 89), perceptível no signo criança, nuclear em um livro como Do mundo.

Porque eu sou uma abertura,
porque as noites cruzam os cometas,
porque a minha pedra com os lados frios contra as faúlhas,
porque abre as válvulas e se queima.
Alguém com os dedos na cabeça dando volta à criança,
metendo-lhe mais força pelo fogo,

criança com um rastilho:
ou muita resistência na armadura, ou
peso, ou muita leveza, ou
dulcíssima:
ou fósforo, enxofre, pólvora, sopro, a farpa de ouro
e o orifício que traz para o visível (Helder, 2006: 485)

Helder retorna sempre à gênese que envolve a criação tanto de linguagem quanto do mundo – criança/cosmos –, na propulsão aberta a um andamento rítimico que não detém o fecho de cada bloco poemático, assim como não se subordina ao que chama Silvina Lopes de “exigências de identificação que dominam os discursos poéticos” (Lopes, 2003: 91). Mãe, terra, criança são elementos básicos e retornantes como que apreendidos à volta do fuso – orifício e espiral – de alteridade radical (no dizer de A inocência do devir), em que se encontra o ponto de irrompimento e ruptura, de nascimento e diferença das coisas em seu sentido sensorializado pelos inúmeros nomes. Um não-fundo – o contrário de uma idéia/substância mantida no dualismo de ausência/presença – em que tempo, espaço e movimento laborados pela dicção do poema contínuo favorece, sem trégua, a emergência de uma constelação imagético-verbal, apartada do referendo a um princípio, a um núcleo unificador mitológica ou culturalmente dado. Subsiste, assim, de uma heterogênese, pela qual todas as idades e identidades se intercomunicam, implicadas na “última imagem, aquela que está sempre por vir e só é escrita na sua iminência irreconhecível”. (ibid.: 90)

poema do começo
o sistema sideral infunde-se nos trabalhos do terror e da doçura:
a ideia, a idade,
o idioma:
o mais rouco ou mais leve ou de azougue –
poema que desconheço, o antigo, o novíssimo
(Helder, 2006: 529)

Assinala a estudiosa portuguesa de Helder que encontramos “esse tipo de permeabilidade ao heterogêneo na quase perda da linguagem que se lê em “Mnemosina”, de Hölderlin” (Lopes, 2003: 88-89). Ao mesmo tempo, relança-se, no atual século/milênio em que escreve Helder, o sistema sideral instalado pelas poéticas do autor de Patmos e de Rimbaud. Tal como capta Kostas Axelos, no momento em que a criação de literatura se rearticula e se expande, de modo não-causal, nada instrumental, em face do espaço oferecido pela tecnologia, nas órbitas imagéticas e interativas da cultura, por força de seu modo heterodoxo e complexo de feitura e concepção.

À altura de Do mundo (1994), pode-se captar na obra contínua de H. Helder o que compreende o pensador de Metamorfoses como linguagem habitada, em movimento, na qual lugares não-topológicos e instantes não-cronológicos grafam sua correspondência com o jogo mesmo do tempo – sempre passado, presente e por vir (Axelos, 1991: 144). Jogo incessante da transmutação da história e do mundo, através do qual as grandes dimensões, as potências definidoras do humano, tomadas em correlações e compartilhamentos – a história e o erotismo, a arte e a técnica, a ciência e a magia (usando-se aqui dois títulos contidos nos livros do autor) –, muito próximos da integralidade de forças concebida por Nietzsche, se põem em gravitação no sistema aberto produzido pela poética helderiana.

Assim como Hölderlin investiga a cosmogonia romântica entre os séculos XVIII e XIX e o autor de Iluminações precipita, em um diálogo apropriador e urgente com os postulados baudelaireanos, a modernidade, nodal para arte e a cultura na segunda metade de 1800 e em livre propagação nos novecentos, Herberto Helder sintoniza, em língua portuguesa, passagens (de modernidades e séculos) para o tempo de agora. Já em outra conjunção histórica, sob a marcação de processos criativos, que aludem à problemática dos últimos 50 anos, especialmente no que toca o campo da poesia, em relação ao legado de crise e autoindagação, de cerramento e abertura, pertencente à arte desde o romantismo (legado lançado à poeticidade em um mundo administrado por amplificadas segmentações sócioculturais, em gradativa tecnificação).

Ou o poema contínuo (compreendido não apenas como o título da penúltima reunião da Poesia Toda, mas como seu projeto) concentra um universo de referências e recursos de linguagem cada vez mais imponente e influente.


Referências Bibliográficas

  • AXELOS, Kostas. Vers la pensée planétaire. Paris: Minuit, 1964.
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  • BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio D’água, 1984.
  • DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.
  • DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • DIAS, Sousa. Estética do conceito. A filosofia na era da comunicação. Lisboa: Pé de página, 1998.
  • HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.
  • _________________. Ou o poema contínuo. São Paulo: Girafa, 2004.
  • LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003.
    _____________________. A inocência do devir. Lisboa: Vendaval, 2003.
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  • PELBART, Peter Pál. Vida capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
  • PEREC, Georges. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 1992.
  • RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete et al. São Paulo: 34, 1995.