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BERNSTEIN FALA DE POESIA A PARADOXO

Diego Braga Norte, Revista Paradoxo, 09/12/2008

Hoje, a poesia não encontra mais ressonância entre leitores. Essa frase e inúmeras variantes similares tornaram-se lugar comum. Raramente [nunca?] vemos livros de poesias figurando nas listas de mais vendidos. Não os vemos nas vitrines de livrarias, nem entre as indicações de leitura. Nos cadernos culturais, há resenhas de livros de culinária, mas não de poesias. Até nas listas de “livros para o vestibular” a poesia está se esvaindo. Por onde ela anda? Quem a lê? Quem as escreve?

Charles Bernstein, americano nascido em Nova York há 58 anos, é um dos autores que lê, escreve e pensa a poesia. “Poetas não fazem parte da cultura de massa e, portanto, não têm a platéia de um filme, de um programa de TV ou de um músico pop. Esta é a natureza do gênero de poesia em nosso tempo: é uma pequena escala, da não-cultura de massa. E talvez esta é a grande vantagem da poesia.”, disse Bernstein em entrevista exclusiva à Paradoxo. Se por um lado o autor concorda com o reduzido espaço destinado à poesia em nossos dias, por outro, ele extrai uma lição e nos mostra um caminho em meio à suposta adversidade.

E o caminho trilhado por Bernstein é repleto de inventividade e provocação. Histórias da Guerra (Martins Editora) é o primeiro título do autor no Brasil. A obra é uma compilação de poemas originalmente publicados nos EUA, extraídos dos livros Parsing [Asylum’s Press, 1976], The Sophist [Sun & Moon Press, 1987], With Strings [University of Chicago Press, 2001] e, sobretudo, Girly Man [University of Chicago Press, 2006]. O título traz ainda três ensaios de Bernstein, uma breve biografia do autor e uma excelente entrevista concedida, em 2002, para a revista Sibila.

A edição bilíngüe, além de privilegiar os leitores com fluência em inglês, desnuda o processo de tradução do também poeta Régis Bonvicino, responsável também pela seleção dos poemas e pelo prefácio da obra, onde deixa explícita sua “rebeldia latino-americana” ao traduzir/transcriar certas passagens. Algumas soluções adotadas são brilhantes, como no verso “War is us”, transformado em “A guerra sou E.U.”. Se o sentido coletivo da palavra “us” [nós] foi diluído, o significado político [US, United States] foi realçado com o “E.U.” [Estados Unidos].

“O meu trabalho, incluindo poemas nesta coleção, é imediatamente a reação aos acontecimentos históricos do dia 11 de setembro e da Guerra do Iraque. No entanto, grandes eventos como esses são muitas vezes utilizados como formas de evitar a realidade material da vida cotidiana. Rejeito o pensamento ‘o mundo não é o mesmo após 11/09’”, afirma o escritor. “Houve muitas catástrofes no século 20 e também no nosso século. Nasci no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, com Hiroshima e o extermínio sistemático dos judeus. Mas a morte por fome e frio de um homem sem abrigo em Nova York [ou São Paulo] também é uma catástrofe. E terrorismo estatal é uma ameaça para nós, nos EUA, como são os grupos terroristas estrangeiros”, explicou Bernstein sobre a influência de fatos históricos em seus trabalhos.

Ainda sobre a interação entre arte e política, Bernstein declarou-se “muito feliz pela vitória do Obama”. “Sinto que um pesadelo está acabando”, completou. O autor confessou que escreveu um poema sobre a eleição, chamado “On Election Day”.

A poesia de Bernstein, no entanto, não é feita de panfletagem política ou proselitismo doutrinário. Seus poemas são instigantes, desafiadores, extremamente articulados com as tendências estéticas modernas da literatura americana do pós-guerra. Desde a preocupação com a forma à escolha meticulosa das palavras, suas construções são cerebrais, mas não perdem o charme. Carregam um lirismo ora truncado, ora escondido, disfarçado em camadas, como uma flor aparentemente bruta que se revela cada vez mais bela e delicada quando apreciada com cautela.

Drummond

Para explicar sua opção ao escolher palavras que por vezes extrapolam seus significados mais imediatos e reconhecíveis, o autor resgatou uma passagem muito conhecida por nós. “As palavras são fundamentalmente instáveis. Como Drummond escreve: ‘no meio do caminho tinha uma pedra’. A interação entre os significados precisos e ambigüidade é uma condição da linguagem, não uma invenção dos meus poemas. É a ‘pedra’ que nos deparamos”, metaforiza Bernstein. “A dimensão estética da linguagem é uma fonte de grande satisfação para a poesia. Linguagem, para todos nós, é mais precioso do que ouro. O ouro é uma coisa que podemos moldar ao nosso gosto”.

Mesmo que a aparente aspereza de versos em alguns poemas possa denotar formas cifradas e econômicas, o autor refuta o rótulo de hermético. “Eles [os poemas] não possuem significados ocultos ou segredos que você precise decifrá-los. Eu diria que as outras camadas não são tão ‘escondidas’. É como se estivéssemos em um passeio na floresta, se formos devagar, percebemos mais coisas. Eu tento criar poemas que restaurem na linguagem algo dessa selvageria, dessa imensidão. O processo de leitura pode se tornar tanto uma descoberta como um ato de transmissão de conteúdos. Creio que os poemas incentivem – talvez até provoquem – a criação mais do que apenas o consumo imediato. É mais pensamento ativo, em vez de recepção passiva. Pelo menos assim espero”.

Além de poeta, Bernstein é ensaísta e estudioso do assunto. Hoje ele é professor na Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, mas já lecionou poesia e literatura em outras instituições norte-americana. Em 1978, Bernstein e Bruce Andrews lançaram a revista e o movimento L=A=N=G=U=A=G=E, que se propunha a discutir e disseminar novas estéticas e formas de poesia. Para o autor, tanto a cena mainstream como a cena alternativa estavam carentes de discussões e reflexões.

“Os poetas da L=A=N=G=U=A=G=E, e houve dúzias de nós, estavam interessados em uma abordagem histórica e ideológica da poética e da estética. Nós questionamos todas as características da poesia que nos foram impostas, da voz e expressão à clareza e exposição; e no processo, surgiram diferentes e mesmo contraditórias abordagens para a poesia e para a poética. O nosso desejo era associar nossa poesia com o pensamento contemporâneo, crítico, filosófico, especulativo e político – com uma ligação visceral com o movimento dos direitos civis, feminismo, pacifismo. Nosso trabalho resultou na ascensão de vários grupos coletivos, que foram elogiados e condenados”. Questionado se o movimento L=A=N=G=U=A=G=E morreu, ele foi enfático e humilde. “Poesia não morre, apenas passa a ser ignorada”, disse o autor de uma obra considerada das mais importantes dentre a poesia norte-americana no pós-guerra.

Como poeta e professor, Bernstein conhece e admira outras vertentes da poesia americana, [aqui no sentido continental da palavra]. Considera o movimento concretista brasileiro como uma influência e paradigma para aqueles interessados na inovação da poesia do século 20. Constatação que, dita por um norte-americano, surpreende. Da mesma maneira que nos surpreendemos ao depararmos, logo no início do livro, com uma tradução de Bernstein para o poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Para quem não conhecia o instigante trabalho de Bernstein, saber que ele lê, estuda e traduz poesia brasileira é reconfortante – nada há de mais prepotente que um gringo escrevendo do alto de uma torre, ignorando a tudo abaixo da linha do equador.

E ao ler a orelha do livro Histórias da Guerra, notamos que a prepotência pode ser coisa nossa, tão tupiniquim quanto uma jabuticaba. “A poesia de Bernstein acaba por ser vítima, aqui, da resistência ideológica que há contra os ‘ianques’, embora, por ser inovadora, acrescente e abra perspectivas para a poesia brasileira contemporânea”. É isso. Não há fronteiras para as palavras de Bernstein. Desfrute-as.