Em sua última entrevista, feita três semanas antes de sua morte e publicada postumamente pelo jornal La Tercera, de Santiago do Chile, em 20 de julho de 2003, Roberto Bolaño, então gravemente enfermo, aguardando na fila por um transplante de fígado que pudesse lhe garantir alguma sobrevida, “sobretudo por meus filhos, minha caçula (Alexandra), que tem dois anos, e Lautaro, de catorze”, consciente do fim próximo, almejando apenas “o prêmio de poder escrever a cada dia”, não perdeu sua irreverência em relação a toda idéia de literatura e literatos como instituição de poder cristalizado.
Desde 1999, com a consagração generalizada no mundo das letras em língua espanhola (que culminou com a obtenção do prêmio Rómulo Gallegos por seu romance polifônico Os detetives selvagens), ele passou a ser cultivado por jovens escritores, pela mídia cult e por críticos literários, em especial no Chile, para onde jamais retornaria, desde sua milagrosa fuga de um campo de concentração de presos políticos em Concepción, auxiliado por um policial que o reconheceu como ex-colega dos bancos do liceu, semanas depois do golpe de Pinochet. Nessa derradeira entrevista, dada em sua casa em Blanes, na Catalunha, 100 quilômetros ao norte de Barcelona, Bolaño reafirmou: “Eu não sou ídolo de nada”. Para arrematar: “Prefiro morrer em plena lucidez a morrer (como vários escritores) fazendo tontices”.
Obra incomum
Ao desaparecer, aos cinqüenta anos, Bolaño parecia ter cumprido, em meteórica carreira, essa postura radical sem nenhuma impostação de vanguarda, e o legado de sua obra vertiginosa e absolutamente incomum em número, variação, brilho e densidade surge como roteiro de pistas e sentidos inesgotáveis, a ser trilhado, agora lentamente, pelas atuais e futuras gerações de amantes sobreviventes do que ainda pode ser tomado como grande arte literária. Ele deixou pelo menos duas obras inéditas: o livro de contos El gaucho insufrible, já no prelo (publicado três meses depois de sua morte), que, ao lado de seus dois outros volumes de contos, Llamadas telefónicas (1997) e Putas assassinas (2001), o insere tranqüilamente no rol dos mestres da narrativa curta na América Latina — o que não é pouco numa região em que esse gênero teve tantos inventores de altíssima qualidade em todo o século XX —; e o monumental romance 2666, este carecendo ainda de revisão final em suas mais de mil páginas, trabalho que Bolaño confessava, naquela entrevista, estar além de suas forças físicas, e que sairia postumamente em 2004, sem o último mergulho que ele reclamara.
Enquanto esperamos ver proximamente toda a sua obra traduzida no Brasil, vale mencionar os dois contos-manifestos com que encerra seu El gaucho insufrible e que iluminam algo do que seria uma sorte de testamento poético, ao lado da entrevista final e também, veremos, de seu discurso em Caracas, ao receber o prêmio Rómulo Gallegos. Em “Literatura + enfermedad = enfermedad”, na aguda visão da doença, mas sem nenhum pingo de autopiedade, Bolaño, numa sucessão de blocos narrativo-ensaísticos, faz homenagem a poetas e escritores de sua linhagem estética mais remota, encerrando com Kafka, a partir do livro que lhe dedicou Canetti, para dizer que, percebendo-se doente, “já nada o separava de sua escritura”. Já em “Los mitos de Chtulhu”, dedicado ao amigo Alan Pauls, sucedem-se parágrafos contundentes de pensamentos autônomos, mas todos convergentes para uma desconstrução impiedosa do atual sistema literário latino-americano e mundial globalizados, e da ridícula encenação de suas imortalidades passageiras. Sua visão da história emerge faiscante: “A América Latina foi o manicômio da Europa assim como os Estados Unidos foram sua fábrica. A fábrica está agora em poder dos capatazes e loucos fugidos são sua mão-de-obra. O manicômio, faz mais de sessenta anos, está queimando em seu próprio azeite, em sua própria gordura”. Quem são esses “capatazes”? Voltamos à entrevista com que comecei: Hernán Rivera Letelier, Skármeta, García Márquez, Vargas Llosa, Bryce Echenique, Isabel Allende, Tomás Eloy Martínez. E prossegue Bolaño: “E digo que a literatura agônica é a minha e que os ganhadores são eles, os que vão ditar as normas do manicômio”. Para então finalizar, ele que foi grande admirador de Guy Debord: “A perdurabilidade foi vencida pela velocidade das images/stories vazias. O panteão dos homens ilustres, descobrimo-lo com estupor, é o canil do manicômio que se incendeia”.
CONSCIENTE DO FIM,
QUERIA APENAS “O
PRÊMIO DE PODER
ESCREVER A CADA DIA”!
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Pausa. A esta altura, seria o caso de exibir pelo menos uma amostra do enfeitiçado poder narrativo de Bolaño, pelo menos uma personagem, para além de seus duplos, o par quixotesco de poetas-detetives-cultos-selvagens-presentes-ausentes que são Arturo Belano e Ulises Lima, alter egos, respectivamente, do próprio autor e de seu amigo maior, o poeta mexicano infrarrealista Mario Santiago Papasquiaro (1953-98), a quem ele dedica esta hoje injustamente ignorada prosa poética Amuleto (1999) e algumas passagens comoventes de seu discurso de Caracas. Fixemo-nos por ora em Amuleto, com essa personagem estranhíssima que é Auxilio Lacouture, poeta uruguaia exilada no DF (a fórmula popular para a megalópica capital mexicana), mas que na vida real se chamou Alcira (confirmam isso tanto a crítica argentina Celina Manzoni como o poeta uruguaio Enrique Fierro, hoje professor em Austin, Texas, e exilado no México nos anos 1970, coevo a Bolaño). Tirando histórias de dentro de histórias, no que também se revela mestre, o autor amplificou, em Amuleto, numa narrativa em primeira pessoa, a voz delirante de Auxilio-Alcira, cujo primeiro registro, sob forma de depoimento, aparecera no capítulo 4 da segunda parte de Os detetives selvagens. Já na sua reaparição, em primeiro plano, o discurso lírico toma a cena e o caso, combinando o onírico de suas visões enlouquecidas à evocação trágica da repressão militar que se abateu sobre a Universidade Autônoma do México (Unam) em 1968, seguida do massacre de centenas de estudantes na praça das Três Culturas de Tlatelolco, durante as Olimpíadas. O caso é que essa mulher, andarilha do campus, espécie de antimusa dos jovens poetas radicais do México, ficou confinada por cerca de duas semanas num dos banheiros femininos dos prédios invadidos pelo exército, e sua saga é a da resistência, não só libertária como poética, pois em sua cisma solitária ela dialoga, entre outros fugitivos, com exilados de outro tempo e de outra guerra, a Civil Espanhola, casos do poeta Pedro Garfias e da pintora surrealista Remedios Varo, que emigrara para o DF com Benjamin Péret. Ela diz: “Pensei: ambos os fatos estão relacionados, escrever e destruir, ocultar-se e ser descoberta”.
Infrarrealismo
A propósito, uma pista para o “infrarrealismo” ou “visceral-realismo” do jovem poeta Bolaño, ao lado de seus companheiros de viagem no exílio mexicano, nos anos 1970: tal designação foi inspirada por Mariátegui, numa expressão de sua autoria sobre a poesia de Philippe Soupault, outro dos surrealistas “históricos”. Enfim, estamos diante da mistura, nem sempre de resultados felizes, entre a idéia de poesia e a de revolução. No entanto, as visões de Auxilio-Alcira são as de uma memória imemorial, entre sonho e delírio, como um instrumento da lembrança do desastre histórico de várias gerações, matriz de todas as utopias derrotadas. Na viagem de sua mente revolta, prisioneira oculta e senhora de uma façanha involuntária, ela vê num quadro de Remedios Varo o vale mítico do México e ouve a marcha e o canto dos milhares de jovens rumo ao sacrifício. Seu canto de guerra e amor se converte então em amuleto, da narradora e de sua loucura, mas logo da loucura dos poetas e artistas, amuleto de uma literatura capaz de evocar tantas personagens mínimas, tantas vozes mortas.
Seria esse o destino do vôo cego da alta literatura, ou a função maior da poesia, de que tanto falava nosso poeta e exímio contador de histórias? Em Os detetives selvagens reaparece o motivo, em torno de outra mítica personagem feminina, Cesárea Tinajero, poeta desaparecida nos desertos mexicanos, nos anos 1930, e redescoberta pela obsessiva busca da dupla Belano-Lima, nas páginas finais do romance.
Dela não restaram versos, apenas as marcas desconexas de testemunhos e registros vagos espalhados em vilas-fantasmas de Sonora. Quando Cesárea reaparece, precipita-se o desastre, porém sua morte é a salvação dos detetives, do jovem poeta García Madero e de sua namorada, a prostituta Lupe. Essa paisagem, de desolação e anúncio de queda iminente, de estilhaçamento das identidades, tem outro grande inspirador: Malcom Lowry, de À sombra do vulcão (1947), não à toa inserido como epígrafe do romance. Tinajero teria dito a uma professora primária, sua colega, entre tantos destinos perdidos e silêncios vagos, sobre “os tempos que iriam vir”. “Cesárea mencionou uma data: lá pelo ano 2600. Dois mil seiscentos e tanto.” Como se, fora do tempo e do espaço, uma nova locação histórica e cultural pudesse começar a ser tecida. Parece que aqui também se vislumbra a pista desencadeadora de seu mais ambicioso e derradeiro projeto, 2666.
SEU LEGADO É
INCOMUM EM
NÚMERO, VARIAÇÃO,
BRILHO E DENSIDADE
Mas nenhuma presunção e muito menos misticismo irrompem das múltiplas vozes, centenas de histórias e milhares de páginas de Bolaño. Seu infra-realismo volta sempre ao plano da lucidez mais meridiana. Nas linhagens longínquas, certamente Cervantes acompanhou nosso iluminado escritor. Isso foi muito bem apontado por Cedomil Goic, grande scholar, espécie de Antonio Candido chileno, em magistral conferência sobre Bolaño dada em Austin, na primavera de 2006. A estrutura do picaresco, da aventura radical e do acúmulo labiríntico de intrigas, da crítica política e moral, de pontuações que combinam a precisão de marcas exatas no tempo e no espaço com o imprevisto, aleatório e quase sempre desastrado fim das personagens, reatualiza a saga renascentista de Quixote no mundo desencantado de nossa era dos extremos.
Por isso, citando Cervantes, em Caracas, em 1999, Bolaño reafirmou: “Tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, os que nascemos na década de 1950”. E, adiante: “Toda América Latina está semeada com os ossos desses jovens esquecidos”.
Francisco Foot Hardman é professor de Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Ensaio publicado em O Estado de S. Paulo, de 29/7/2007