De há uns tempos a esta parte, principalmente depois de haver sido “caçada” uma conhecida e talentosa plagiadora, tem sido razoavelmente falada no milieu nacional a questão das fraudes literárias. Das quais duas – se lhes podemos chamar fraudes – ficaram famosas no século que há 8 anos se finou. Refiro-me, como os de melhor memória terão já percebido, aos affaires de “A caça espiritual” (Rimbaud) e de “Gros Calin” – O lambe-botas, (Romain Gary/Emile Ajar).
Já vamos dar-lhes uma rápida olhadela. Mas importará, em jeito de leve rol, referir que as chamadas fraudes se dividem em vários grupos, a saber: o plágio puro e simples (que tem sido o mais praticado muros adentro); o livro escrito com questionável qualidade mas valorizado por um “nome” de prestígio já a fazer tijolo; o livro de qualidade que todavia o autor nunca escreveu; o livro de qualidade, de facto escrito por um autor de renome mas atribuído a um desconhecido e que antes de ser premiadíssimo vários editores espertalhaços não agarraram com as quatro mãos. Ainda, numa estância subsidiária, o livro que simplesmente não existe (apenas composto por maravilhosos fragmentos bem artilhados) e o livro convincente mas criado de cabo a rabo com o único intuito de mostrar os limites do que se conhece sobre uma personalidade histórica ( e há alguns bastante célebres: sobre Napoleão, Rasputine, Erskine Caldwell…).
Falemos no caso do falso Rimbaud.
Certo dia, os eruditos académicos Maurice Saillet e Pascal Pia (que já havia editado falsos Baudelaires, Pierre Louys e Apollinaires…) disseram ao mundo que o arquifamoso e perdido “A caça espiritual” estava nas suas mãos. Começara a grande tourada…
Imediatamente desmascarado como falso por André Breton, que se baseara apenas no conhecimento interior da obra rimbaldiana, a titarada arrastou pelos bas-fonds da ignorância, da jactância, da sobranceria académica e da tolice literata muitos dos “trutas” das letras francesas mais armados em arco. Afinal, a deliciosa brincadeira fora pensada e executada por dois actores/estudantes que tinham resolvido dar uma lição aos emproados.
Curiosamente, diz-nos um comentador do caso que apesar das evidentes provas dadas de caducidade mental e societária, os génios da crítica em causa continuaram a dispor de respeitabilidade, ainda que a sua credibilidade tivesse ficado muito abalada nos meios menos atoleimados.
Ou seja: o que por vezes parece contar (e por cá há maviosos exemplos) não é de facto nem o talento nem a seriedade estudiosa mas a classe de poder onde os pássaros bisnaus se incrustam.
2. Em 1973 a editora “Gallimard” recebeu um inédito intitulado “Gros câlin” ( O lambe-botas), relato prenhe de sustância, força, pundonor e novidade de escrita. Intimidada, porque o texto era de facto inovador e ia contra a corrente dos romances que a época e as vendas em montra festejavam, a publicação foi recusada.
Dias mais tarde é o “Mercure de France” que recebe o dactiloscrito. A sua responsável, Simone também de apelido Gallimard, pesados os prós e contras dá-o a lume. Olhado a princípio com certa incomodidade pela crítica, a pouco e pouco a obra impõe-se. Começa a sua marcha triunfal e é proposta para o prémio Renaudot. O nome do seu autor, Emile Ajar, por ser desconhecido começa a suspeitar-se que cobre um autor de gabarito: para uns, Raymond Queneau; para outros, Louis Aragon. E outros mais…
Mas um dia, o dia do lançamento de um volume depois célebre, “La vie devant soi”, o mistério descripta-se: o seu autor Emile Ajar era o nome com que Paul Pavlovitch, o sobrinho do já galardoado e consagrado escritor Romain Gary (autor, por exemplo, de “Racines du ciel”, “La promesse de l’aube” de “Lady L”) dera a lume o livro que, logo a seguir, receberia o prémio Goncourt, venderia mais de um milhão de cópias e seria traduzido em 23 línguas…
Paul Pavlovitch torna-se uma coqueluche do “tout Paris”: repórteres seguem-no de Monte Carlo até à Côte d’Azur, é visto nas festas e nos bares de luxo em companhia de belíssimas actrizes e meninas finas do “demi-monde”. Um lindo e saudável forrobodó que não desagradaria, suponho, a se calhar mais de metade dos austeros romancistas lusos…
No princípio de 79 outro livro de Ajar vem à luz: o belíssimo “L’angoisse du roi Salomon”, novo êxito de criar bicho. E é então que em Março outro escrito da autoria de Romain Gary, “Vie e mort d’Emile Ajar” revela o imbróglio: os livros eram produto da sua pena, o sobrinho fôra apenas o actor escolhido para esta partida aos literatos – partida tanto mais gostosa se nos lembrarmos que o Goncourt não se pode atribuir/receber duas vezes…
Ou seja: então como resolver a bambochata? E os gabirús da literatice desesperavam!
Na sequência deste seu último livro, pois logo a seguir, profundamente ferido pela morte de sua mulher e amada, a célebre actriz Jean Seberg, Gary suicidava-se – deixara um bilhetinho irónico colado na testa:”Diverti-me a valer! Até à vista e obrigado…”.
Sem ser só por isto – mas também por isto, por esta manifestação de excelente senso de humor e de alto talento que a passagem dos anos não crestou – sugerimos vivamente, a quem porventura os não conheça, a leitura dos livros de Romain Gary. É um dos que, a par de Marcel Scipion, Jean Husson, Philip Claudel e Jacques Borel (ou seja, dos chamados “descentrados” das letras gaulesas) valem muito a pena ser lidos – com os olhos, com as orelhas, com a ponta da alma.
E com um leve risinho absolutamente colorido