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GODARD

Quando Friedrich Kittler estuda, em Gramofone, Filme, Máquina de Escrever, o advento da datilografia, aponta para a dimensão obtida pela escrita como sistema de informação. As máquinas de escrever, assim como as tecnologias de som, são dispositivos derivados da construção de machine-guns, durante a Guerra Civil Americana. Situam o ato da escrita entre o registro imediato da letra impressa e os apelos crescentes da subjetividade frente ao aparelhamento tecnicizado das esferas da vida cotidiana no horizonte das transformações históricas desenhadas pela máquina de guerra norte-americana, desde então.

Escrever passa a conter o dado antecipado da publicação, com efeito sobre o reconhecimento da identidade. « Eu escrevo, então eu sou; eu sou, então escrevo » (Kittler, 1999 : 241). Com base numa leitura de The Buribunks, de Carl Schmitt, o semioticista da tecnologia que é Kittler se mune de indagações emergentes no toque da máquina:

O que eu escrevo ? Eu me escrevo. Quem me escreve ? Eu mesmo me escrevo. Sobre que escrevo? Eu escrevo que me escrevo. Qual é o grande engenho que me eleva para fora do complacente círculo do ego ? História !

(Kittler, 1999: 241)
O projeto cinemático-historiográfico godardiano desenvolvido em História (s) do cinema mostra grande afinidade com o estudo de Kittler, especialmente no ponto em que, acionado o circuito produzido pela comercialização da máquina-de-escrever, é captada a transformação da atividade literária de dentro – desde o que envolve a autentificação do autor até a constituição profissional de um núcleo formado por escritório e secretária no dia após dia de tiragens massivas da letra impressa. A emergência da datilógrafa no espaço da escrita se encontra acoplada ao design e à performance da máquina-de-escrever – typewriter designa duplamente o aparelho e a função do secretário, fundamentalmente feminino, lembra Kittler em atenção aos processos de autoria/autoridade desencadeados nos laboratórios de diferentes escritores como Henry James e Franz Kafka.
O cineasta datilografa todo um poder de projeção e de impressão tomado pela literatura no instante em que ele pensa o século passado e o cinema. Desde o início da série, não se dissocia a projeção de images/stories da máquina de escrever sempre em uso pelo diretor.
Entre o que se lê e o que se enuncia, entre os signos escritos e as sucessões ópticas dos quadros de uma História no plural, Godard, em pessoa, localiza em seu escritório/laboratório/usina um estado permanente de formação da máquina de projetar images/stories consolidada no século xx, posta em retrospectiva e reconfiguração no fim do mesmo século. Se o debate em torno da imagem, travado ao longo de sua filmografia, sempre abrangeu os planos escritural e literário, no momento em que o diretor elabora História (s) a confluência de cinema e literatura mais se firma dentro de uma problemática que entrelaça as duas artes em termos de técnica e produção, possibilitando mapeá-las a partir de um mútuo cruzamento.
História (s) da literatura são desentranhadas da história que o cinema apresenta em images/stories, sons e legendas (letras e textos) no correr do século de sua industrialização – Como sempre, não importa a Godard a tradução, ou seja, o projeto pré-concebido que daria a imagem da obra em termos de uma concepção roteirística de cinema na qual as diferentes linguagens « se adaptam » aos desígnios administrativos e empresariais de um espetáculo fluente, legível, em nome e em lugar do público. Ocorre a citação direta, intempestiva – leitura ou referência, fragmento ou volume recorrível na estante –, pela qual se dão a ver os elementos implicados na relação escrita/imagem.
Mme De Lafayette
William Faulkner

São cada vez mais aproximadas as ligações entre escrita e técnica, já sinalizadas pelo toque genealógico da máquina-de-escrever desde o início da série aqui em pauta. Desde que se configura o plano do diretor em criação, composto a um só tempo por impressão de textos, fala dirigida a um grande microfone e diversas fontes de images/stories projetadas (incluídas, as do próprio JLG). Situado entre o arsenal maquínico de som/visão e uma estante de livros, o cineasta realiza um atrito sempre novo entre linguagens e artes (gráficas, plásticas, escritas e áudiovisuais).

Dois volumes são retirados da estante pelo diretor-encenador de História (s), no momento em que ele relaciona criação estética e tecnologia: La Princesse de Clèves e Absalom, Absalom.

de Madame de la Fayette
a Faulkner
será necessário cinco vezes menos do tempo
que foi preciso
para que a primeira locomotiva
se tornasse
um TGV (Trem de Grande Velocidade)

(Godard, 1998, vol. 1 : 197)

O comentário emitido em off, feito no compasso da exibição das capas dos dois romances (colocados um dentro do outro pelas mãos do leitor e regente de images/stories), tão diferenciados, tão distanciados no tempo (um do século XVII, o outro do século passado), resume o intuito de uma amostragem das simultaneidades que fazem a história através do contato (atrito e superposição) com os diferentes domínios produtivos e criativos. Na relação travada entre o tempo técnico, veloz, da modernidade dos últimos séculos e a cronologia histórica existente entre os romances em amostragem e cotejo, JLG se revela como um autor-produtor. Da maneira como formulava W. Benjamin nos primeiros anos do século XX, tendo em mira as mudanças da arte e suas mediações materiais. A criação se articula, desde então, em termos de produtividade, como economia e política da linguagem, operada por táticas críticas desbravadas estrategicamente em cada meio pelo artista, passando este a ser entendido como agente, um operador em situação.

No instante em que enuncia a boutade acerca da mutação radical dos trens (a passagem da locomotiva para TGV) ocorrer em um tempo cinco vezes menor do que aquele que se processa entre três séculos de literatura, JLG se apresenta, dentro de sua usina de produção, como a própria imagem consolidada de tal aceleração técnico-material. Com a diferença, contudo, de o cineasta estar dispondo, sempre de um modo analítico e interventivo, de uma resposta não-evolutiva às conquistas tecnocientíficas no decurso do tempo (tudo o que se projetou, ao modo de um coroamento de tal processo, como imagem progressiva do século XX).

Retirar livros da estante e citá-los intempestivamente (prática de sempre), apresenta-se como busca essencial da linguagem do cinema em cada filme. É o atrito que desponta e configura uma pequena história da literatura, para fora do domínio do escrito e da síntese enciclopédica. O corte historiográfico polivalente proposto por Godard, numa dimensão de autoria-produção em termos benjaminianos, é o que toma o primeiro plano da série de vídeos. E isso se dá em correspondência com as interrupções e as digressões, as diversas discursividades e as leituras literárias, presentes desde os primeiros filmes, inseridas plenamente no debate sobre técnica, arte e história realizado no interior de cada fotograma ao longo de sua filmografia.

Crítica e produção de filmes, cinema e escrita (de ficção, de si e do tempo) – a filmografia godardiana nunca se distanciou do interesse em fazer História, quanto mais se lança à aventura de investigação em torno do presente, comprendido do modo mais diversificado. Em curso e em corte – A Godard interessa justamente o impasse existente em cada época, no interior e para fora do molde de uma temporalidade já dada.

Ressalta, com argúcia, Monica Dall’Asta (2007) o sentido da citação godardiana apreendida como fator da montagem, com base numa concepção benjaminiana (montagem de citações, presente em Passagen-Werk). Sua leitura enfatiza, também, o vitalismo com que Nietzsche se indispunha contra uma dimensão histórica genérica e universal, ao propor uma historiografia crítica dos valores configurados no tempo humano, interessada na emergência de potencialidades, de relações inauditas.

Exatamente o trânsito, o fio subterrâneo entre romances e épocas, despontam em lugar da mera afirmação evolutiva da passagem de um período em que a leitura romanesca tinha vigência para aquele dos transportes de images/stories técnicas. O cinema de JLG veio se mantendo, desde os anos 1960, como amostra de todo um poder de situar e tramar diferentes referências históricas, artísticas e culturais. Em consonância com o período em que foi crítico, o cinevideasta sempre se indagou sobre os relatos emergentes na ficção do cinema no instante em que rodava seus filmes. Nesse sentido, ele faz o caminho inverso da boutade sobre o TGV, sem perda de velocidade e do senso de temporalidade. Os livros da estante de literatura são renovados quanto mais ganham distância, transformados que são em história essencial ao cinema. Assim como se mostram imprescindíveis ao século que passa sob o registro godardiano.

Lançando seu foco na dimensão pluralizada dos signos que compõem as diferentes épocas, o cineasta deixa emergir a relação implicada entre cinema e literatura. Não à toa, interessa-lhe destacar o trajeto TGV entre Madame Lafayette e Faulkner, assim como o vínculo produzido entre o naturalismo de Zola e o surgimento da fotografia até ser desenhada a ligação de Gide – através de seu sobrinho, em aventura investigadora no Congo, portando uma Debrie 7 – com a máquina cinematográfica, já no século XX. Até o ponto em que Madame Bovary se torna cassete-pornô. (Do telégrafo, seminal para a voragem afetiva do personagem de Flaubert, ao VHS privê, sistema doméstico de convivialidade e técnica).

Se o diretor de História (s) do cinema faz desfilar uma série de títulos fundamentais para o levantamento de uma possível história da literatura – não adstrita somente ao século que passou, na medida em que são feitas referências a Jacques, o Fatalista, Cândido, A educação sentimental, A ilha do tesouro, Humilhados e ofendidos, O lírio do vale entre outros –, ele se indaga, ao mesmo tempo, sobre a imagem legada por tais recorrências. Pois é a partir do cinema que o metteur-en-scène se reporta a livros-marco, e, por seu turno, cinema (s) são sempre atualidades – reportagens, painéis, diagramas – para o diretor. A pura citação (sem mais outro propósito de adaptação) já é um enquadramento do conceito e da moral contidos em cada plano, em cada movimento produzido pelo cinema. Atualiza e refigura o conhecimento e a arte preexistentes. Justamente, ao dar imagem (ao mais simples, ao mais raro título, de um modo nada linear, essencialmente superposto, heterogêno, quando pensa o cinema, pensando conjuntamente sua historicidade).

Na formação de um livro imenso – « com que os homens violaram a natureza para semear a potência de sua ficção » (tal como é referencializado na parte 2) –, história, cinema e literatura acabam por se imbricar no projeto compósito, simultaneamente ensaístico e narrativo, concebido pela série videográfica. Com base na figura construída pelo livro infinito (pensada por Blanchot no estudo do moderno espaço literário), margeado por sinais de dispersão e ausência, o livro imenso a que JLG se refere não se conjuga de modo contínuo-consecutivo e nem pode caber numa forma, numa imagem finais, em síntese ou de síntese (como se pode pensar acerca do instrumental tecno contemporâneo).

O saber da História – Godard frisa, de frame a frame, entre a consulta a um livro e uma baforada de charuto – acontece em muitos níveis, relações e temporalidades. Não é por acaso que o próprio cineasta aparece para pontuar (sempre com a voz off) ou sublinhar por meio de legendas os intervalos entre um e outro quadro em sucessão. Quando não ocorre o toque na já muito antiga máquina elétrica de escrever, à maneira de um comentário intermitente, disseminado no fluxo das images/stories que são dadas a ver sobre as Histórias do Cinema.

Daí ser a imagem não apenas o foco e o fulcro de um trabalho como História (s), concentrado na especificidade do filme de cinema, mas, a um só tempo, o título, a capa e o parágrafo recortado de um pequeno e pouco conhecido livro de Beckett.

Do mesmo modo que a máquina datilográfica surge como pedra-de-toque fundamental na gnoseologia, na genealogia do cinema e da noção de história irrompida no vídeo de JLG, o parágrafo final de A imagem atua como um fade-in: um círculo destaca o texto beckettiano como se estivesse criando correspondência com um efeito primitivo, um rastro da gênese do cinema. Curioso é ver um exemplo da radicalidade da literatura no século XX, caso de Beckett, aliado aos traços arqueológicos do cinematógrafo. Como se JLG buscasse um elo com o único filme dirigido pelo autor irlandês – Filme (1965), realizado em parceria com Alan Schneider –, protagonizado por Buster Keaton a projetar seu olhar de ator sempre mudo.

O foco – aura do cinema sobre a página do livro – deixa imprimir (círculo e efeito) sua marca tipográfica:

me dou conta de que ainda sorrio não vale mais a pena há muito tempo é inútil a língua sai para fora entra na lama fico assim mais sede a língua entra na boca se fecha ela deve fazer uma linha reta agora está feito eu fiz a imagem

(Beckett, 1988: 18)

 

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Referências Bibliográficas :
BECKETT, Samuel. L’image. Paris: Minuit, 1988.
DALL’ASTA, Monica. « The (Im) Possible History ». In TEMPLE,  Michael et alii (org.). Forever Godard. Londres: Blackdog, 2007. p. 350-363.
GODARD, Jean-Luc. Histoire (s) du cinéma. 4 vols. Paris: Gallimard- Gaumont, 1998.
KITTLER, Friedrich. Gramophone, Film, Typewriter. Trad. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz. Stanford: Stanford University Press, 1999.