More like entertainment, less like art
William Deresiewicz
1.
Há algo de podre no reino da Suécia. Mas à diferença da antiga podridão hamletiana do vizinho reino da Dinamarca, não se trata do podre da política transformada em crime, mas da simples podridão da presença de um cadáver. Do cadáver caído em uma sala da Academia Sueca. O cadáver do Prêmio Nobel de Literatura.
Em compensação, seus pares gozam de perfeita saúde. Principalmente os três prêmios científicos: Física, Química e Fisiologia ou Medicina. A boa saúde dos prêmios científicos se deve ao fato de eles serem científicos. Pois apesar do crescente anticientificismo da época, alimentado por uma salada de correntes convergentes, da direita mais irracionalista (terraplanistas etc.) à mais irracionalista esquerda (que ataca, por exemplo, “o conhecimento heteronormativo epistemicida” disso e daquilo), a ciência, base da sociedade tecnológica que permite, entre outras coisas, aos anticientificistas de todas as cores fazerem uso de celulares e redes sociais para atacá-la, não é facilmente atacável, pois poderosa demais, em todos os sentidos. A ciência, portanto, ao contrário da literatura, está longe de ser derretida no ácido diluído, apesar de volumoso, lançado nas “batalhas culturais”. Daí os prêmios científicos não serem questionados: todo o robusto sistema científico internacional está por trás da corroboração estritamente científica do valor de novas descobertas e de seu eventual reconhecimento pelo Nobel. O exato oposto do prêmio de Literatura.
Daí a patética, plagiária e preguiçosa justificativa da Academia Sueca para a premiação de 2020, dada à poeta norte-americana Louise Glück – a primeira em muitos anos para a poesia. Mas qual poesia? “For her unmistakable poetic voice that with austere beauty makes individual existence universal”.[1] “Por sua voz poética inequívoca, que com austera beleza torna universal a existência individual”. Comecemos, então, pelo plagiário, que esclarece o preguiçoso. Trata-se de uma paráfrase da mais conhecida frase de Tolstói: “Se você quer ser universal, fale de sua aldeia”. O patético fica por conta da “voz poética inequívoca”. O que é uma voz poética inequívoca? O que, uma voz poética equívoca? Pensando nos modernismos, uma voz equívoca, em mais de um sentido, seria bem mais moderna. Ou simplesmente moderna. Mas a Academia Sueca, enquanto reconhece nos prêmios científicos a ciência inovadora, no prêmio literário busca tal “poético inequívoco” que não incluiria sequer o pré-modernista Baudelaire, com suas escatologias, mas sim todos os Olavo Bilac (nosso “príncipe dos poetas”) de todas as línguas. Por fim, quanto à “beleza austera”, é a mumificação daquela de Breton: “A beleza será convulsiva ou não será”.
Qualquer criticozinho de jornal de província seria capaz de cunhar – e comumente o faz – frase pretensiosa e anódina como essa, que serve a qualquer – portanto, não serve particularmente a nenhum – cometimento poético, pois não diz rigorosamente nada. Mas como parece dizer belamente tudo, salvaria a cara do criticozinho perante o poetinha em questão e a do poetinha perante seus pares: “sua inequívoca voz poética… ”
2.
A mesma Academia Sueca fala outra língua quando se trata de justificar os prêmios científicos. Por exemplo, o de física de 2020: “pela evidência mais convincente de um buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea”. Note-se que evidência é um substantivo, e o inequívoco do prêmio literário, um adjetivo; portanto, opiniático, logo, muito mais equívoco do que a dura evidência gramatical de um substantivo.
Mas, dirão, a arte é menos objetiva e mais subjetiva do que a ciência. Em registro ainda mais ingênuo: “a arte é a expressão do indivíduo (de sua ‘alma’, de seu ‘coração’), a ciência, da fria técnica”. No entanto, a história das formas e a ciência da estética demonstram não ser o campo da arte o pasto da pura subjetividade. Arte não é comida. Marx: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias”. A formação, a educação dos sentidos. Os sentidos (a percepção estética) são, de fato, educáveis. E têm de sê-lo, se quiserem atingir o máximo de suas possibilidades perceptivas. Mas quem ainda o quer? Não, com certeza, a Academia Sueca.
3.
Mas ela é somente um sintoma. A doença é da cultura da época. Trata-se de certa anemia grave e gravemente crônica, restando ao enfermo alguma força apenas para os pequenos espasmos provocados por sua urticária ideológica. Como nos tempos do “realismo socialista” do camarada Stálin, hoje os autoindicados comissários da arte politicamente-correta vigiam tudo e todos pelos olhos ubíquos do Grande Irmão das redes sociais. A “boa” arte, ou a arte “correta”, ou seja lá o que for, tem de ser algo como identitária, grupalista etc. – ou, então, que vá ser íntima e intimamente banal, já que não trata de tais grandes temas. Assim, publicou satisfeito um jornal brasileiro sobre nossa nobélica Louise Glück: “uma poeta conhecida pela limpidez, o intimismo e o lirismo de seus versos”. Versos líricos? Depois de todos os modernismos? Depois de todo o século XX? Intimismo? Em tempos de fim da privacidade? De domínio das relações sociais pelo oligopólio distópico das redes? De concentração assassina de riquezas nas mãos de uma casta de ferro de financistas? De ascensão irresistível do totalitarismo chinês? De catástrofe ambiental global? De fim do emprego e da emergência do “precariado”, os sem-trabalho sem volta pela automação do trabalho? De novas viroses e novas pandemias? A isso se condena contentemente a poesia? Ser um belo e delicado pudim verbal para quiçá edulcorar por um lírico e íntimo segundo o imenso chiqueiro do mundo?
Poesia, portanto, como entretenimento. Inofensiva, simples, banal. Íntima. Delicada. Poesia anulada, pois nenhuma poesia íntima, banal, simples, inofensiva, é nada além de um apanhado de palavras vãs, úteis apenas para embalar e embair mentes inofensivas, simples, banais, íntimas. Poesia como suave distração. Poesia como perfume ralo contra o farto futum do lixão do mundo. A banalidade da poesia do bem.
“Dizer que não sinto medo –
Não seria honesto.
Sinto medo da doença, da humilhação.
Como todo mundo, tenho os meus sonhos.
Mas aprendi a escondê-los,
Para me proteger
Da realização: toda felicidade
Atrai a fúria das Sinas.
Elas são irmãs, selvagens –
No final, não há
Emoção, mas inveja.”[2]
Tudo isso diz, portanto, lírica e intimamente, nossa Louise Glück. Já eu digo do horror dessa pastosa gosma prosaica, travestida de poesia pelo hiperultramegablaster banal recurso da tecla enter, ou do margeamento mais do que ridiculamente arbitrário à esquerda. Em todo caso, não faz muitos anos, a poesia norte-americana dizia coisas assim: “Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, famélicos histéricos nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer na fissura de um pico”.[3] “Como todo mundo tenho meus sonhos”?!
Sim: tudo como todo mundo (incluindo multidões de poetas heterocisgênero ou algo assim, sem distinção de gênero, raça, idade, religião, classe e o que mais seja). Daí, como todo mundo, ela produzir tal poesia. Zygmunt Bauman está errado. Não vivemos em uma modernidade líquida, mas em uma cultura rasa. No máximo, com a liquidez de uma poça d’água. Tudo exposto, tudo à superfície, tudo somente superfície. O mundo como um big-data de selfies. E de poemas-selfies. A poesia como propaganda amena do poeta idem, como um post no Face. Poesia para receber likes. Poesia, portanto, com tutorial. Com tutoriais: encontros, cursos, casas de cultura, feiras, workshops: o grande e ubíquo shopping lítero-poético onde se alinha e se nivela a escrita “criativa” – mas não muito. Pois muita criatividade é igual a grande individualidade. E este é um tempo de pequenas individualidades. De individualidade apequenada. Porque bidimensional. Porque rala. Porque compartilhável. Não se compartilha facilmente a profunda aspereza da complexidade. E tudo que não se compartilha com facilidade não existe – ou não deve existir.
4.
O desvio militante para a banalidade idem do Nobel de Literatura também se deve a ele ter-se tornado, ao longo dos anos, um prêmio de consolação. De consolação para os países impossibilitados de receber qualquer Nobel científico. Porque para isto é necessário produzir ciência de ponta. E inúmeros países são incapazes de produzir qualquer ciência, ou, então, qualquer ciência importante.[4] Por isso os países que recebem os prêmios científicos são sempre, e necessariamente, uns poucos e os mesmos. Por isso o prêmio de literatura foi conscientemente transformado em um prêmio itinerante. Ele percorre o mundo, as línguas, as regiões, as religiões, os gêneros, as latitudes, as culturas, levando a consolação de um prêmio Nobel, o literário, para aqueles que jamais ganharam ou ganhariam os demais prêmios, os científicos. Mas se isso pode explicar a inocuidade atual do Nobel literário (no caso da poesia, com suas “vozes inequivocamente poéticas”, pois o objetivo não é reconhecer qualquer potência criativa, o que atrapalharia sua itinerância), nada pode justificá-la. Incluindo a banalidade poética do bem, ou a poética da banalidade do bem, como perfeita “companheira de viagem” da itinerância consolatória.
Observação adicional: o quadro geral
A queda da poesia na irrelevância cultural satisfeita, de que o Nobel 2020 é mais uma confirmação, é um fenômeno histórico recente com vários inícios (ver, por exemplo, a obra clássica de C.P. Snow, As duas culturas, as conferências de João Cabral de 1952 e 1954 e o quadro devastador da produção artística contemporânea descrito por William Deresiewicz em seu último livro, The Death of the Artist).[5] Um desses inícios aconteceu no final do século XX, com o fim das vanguardas artísticas junto ao fim das utopias políticas (a morte – autonegada – da esquerda com a morte da URSS). A poesia operou, então, um grande “retorno à ordem”, de que a obra de Louise Glück é um exemplo cabal. Além disso, desde então cresceu, descomedidamente, no vácuo da morte da esquerda histórica, a pós-esquerda identitária e grupalista, cujas pertinentes demandas políticas pontuais originais logo se transmutaram em uma grande geleia ideológica, com seu patrulhamento agressivo de toda produção artística e cultural, cujo verdadeiro alvo é hoje a cultura moderna. A poesia, portanto, está emparedada entre uma poética retaguardista e inócua à la Glück e as exigências temático-ideológicas pós-esquerdistamente corretas.
Este texto pode dar a entender que as ciências naturais, ao contrário da produção artístico-cultural em geral e da poesia em particular, estão a salvo. Mas não estão. Se na poesia e nas artes tudo se dá à luz midiática da produção e do consumo culturais, no caso das ciências naturais o ataque ideológico mais sério é realizado, intramuros, na própria academia, pelas ciências humanas.
O afastamento entre as ciências naturais e as ciências humanas é hoje abissal, e jamais, na história moderna, foi maior (sequer no Romantismo, provavelmente pelo pouco desenvolvimento, então, das ciências). O nome não-oficial do fenômeno é “discursionismo”. Trata-se de um relativismo arrogante (além de um irracionalismo e de um neorromantismo), enraizado em Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein e outros menos cotados, com o fim de negar e renegar a existência e a possibilidade da existência de qualquer conhecimento. O leitor não leu errado. Não existe conhecimento, apenas formas de discurso. E todas as formas de discurso são somente discursos (portanto, essencialmente equivalentes, incluindo os das crenças religiosas e dos “saberes tradicionais”, entre tantos outros). Seus defensores menos inconspícuos incluem Hans-Georg Gadamer, Richard Rorty, Gianni Vattimo e Bruno Latour – autor da pitoresca tese de que o bacilo da tuberculose foi “construído” por Robert Koch em 1882 (portanto, a tuberculose não existia antes de 1882), pois em ciência nada se descobre, tudo se constrói (a “realidade” é a Grande Construção Cultural – daí não haver conhecimento possível); Bruno Latour é um dos atuais heróis intelectuais da sociologia.
No caso particular da academia brasileira, deve-se citar o pós-antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, com seu “perspectivismo ameríndio”, uma tentativa séria de afirmar o pensamento mágico de indígenas brasileiros como uma “filosofia amazônica”, oferecida (e comprada) no vasto mercado das pós-ideias como alternativa à filosofia ocidental e, por extensão e contaminação, à epistemologia e à ciência.
Subestimar o avanço do relativismo em geral e do “discursionismo” em particular nas próximas décadas é mais do que um erro. A pandemia obrigou os anticientificistas da academia e de fora dela a se retraírem (mas não a se calarem, “denunciando” a origem do vírus – provavelmente práticas alimentares chinesas tradicionais – no “modo de vida moderno”), pois não há salvação fora da ciência. Mas a pandemia passará. O neorromantismo ou irracionalismo militante (vide Bruno Latour) e o ideologismo cultural da pós-esquerda, que alimentam e movem a luta ideológica contra a cultura moderna, não. A poesia, a ciência da estética da linguagem verbal, irá de roldão, com o perdão da rima pobre.
[1] The Nobel Prize – Press reelase. Acessível em <https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2020/press-release/>.
[2] O poema tem um título poderosíssimo: “Confissão” (trad. Camila Assad; acessível em https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/10/08/leia-poemas-traduzidos-de-louise-gluck-vencedora-do-premio-nobel-de-literatura-2020.ghtml).
[3] Allen Ginsberg, Uivo, trad. Luis Dolhnikoff. São Paulo, Globo, 2012, pp. 18-19.
[4] Brasil incluído, com seu nenhum Nobel. A culpa é do Bolsonaro – e de toda a história brasileira antes dele.
[5] Ver “O artista amador ou a arte como hobby”, in Sibila.