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MAIAKÓVSKI NA AMÉRICA

A União Soviética se extinguiu em dezembro de 1991 e a Geórgia, onde Vladímir Maiakóvski nasceu em 1893, tornou-se independente dela, um pouco antes, em abril daquele ano. O socialismo real desapareceu, inclusive, dos países autodenominados comunistas, como a China. Mikhail Gorbatchov, último presidente soviético (1985-91), mentor da glasnost (abertura) e da perestroika (reestruturação) – que a levou, na verdade, ao fim –, agora é garoto propaganda de maletas executivas da Louis Vuitton. A poesia engajada de Maiakóvski envelheceu com seu lema: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”. Mas sua lírica e sua poética, não. O poeta russo, de São Petersburgo, Arkadii Dragomoshchenko, que esteve no Brasil há pouco, para o seminário “Poesia em tempo de guerra e banalidade” (Espaço Cultural cpfl, Campinas, 2006), discorreu sobre a atualidade da lírica de Maiakóvski, “uma das melhores do mundo até hoje”.

Minha descoberta da América é o relato de viagem de Maiakóvski (que se matou em Moscou em 1930, por não se enquadrar no regime imposto por Josef Stálin) à América, escrito em 1925, quando ainda dirigia a revista lef. lef traduzia o espírito revolucionário de 1917 – fundir arte e vida – e, em suas páginas, colaboraram todos os cubofuturistas, que ajudaram a inventar a arte do século xx: Alexander Rodtchenko, Dziga Viertov, Bóris Pasternak etc.

O livro começa trepidante, revelando-se uma poética: “Precisava ir. Para mim a convivência com coisas vivas quase supre a leitura […]”. Cabe acentuar que, para ele – o que permanece válido –, a arte não é dedutível de uma “tradição”, mas, invenção em diálogo com ela (leituras). Maiakóvski designa o oceano como “calmo” e “entediante”, e passa a examinar politicamente as três classes que viajam no navio, o vapor Espagne: “O vapor é pequeno […]. Três classes […] bem demarcadas. Na primeira – comerciantes, fabricantes de chapéus e colarinhos, figurões da arte e freiras. […] São esses os colonizadores contemporâneos […]. Assim como antes, em troca de reles bugigangas, os companheiros e descendentes de Colombo extorquiam os indígenas, também agora, em troca de uma gravata vermelha que familiariza o negro com a civilização européia, fazem os peles-vermelhas dobrarem as espinhas nas plantações havanesas”.

Há um episódio antológico e premonitório em Havana, de onde o Espagne partiria para Veracruz, no México: “Antes da saída do vapor desci correndo para comprar revistas. Na praça, um mendigo me abordou. […] O mendigo ficou surpreso: ‘Do you speak English? Parlata espanhola? Parlez-vous français?’. Fiquei calado e apenas no fim disse macarronicamente [Maiakóvski era monolíngue], para me safar: ‘I am rrãchã!’ […]. O mendigo apertou minha mão entre as suas e pôs-se a vociferar: ‘Viva o bolchevique! I am bolchevique!’”. Maiakóvski conclui a cena com ironia: “Esquivei-me dos olhares transtornados e temerosos dos transeuntes”, o que implica que eles sabiam o que era ser um “bolchevique”.

Depois de permanecer dias lidando com a burocracia mexicana em Veracruz, recebe autorização para viajar para a capital e lá o esperava o lendário Diego Rivera. Expõe Maiakóvski a respeito do companheiro comunista: “Diego quer casar a característica da antigüidade rústica [a arte indígena] com os últimos dias da pintura modernista […]”. Maiakóvski impressiona-se com a instabilidade política e o banditismo do país, critica a feiúra de suas casinhas: “pequenas casinhas com jardins, cidade de enorme extensão, mas 600 mil habitantes ao todo”. Repassa as artes e  lamenta a fragilidade dos comunistas no México: dois mil! Critica violentamente as corridas de touros e se extasia com o nopal, um cacto. Menciona o Zócalo, registra o catolicismo intenso e lamenta a morte do deputado comunista Moreno, de Veracruz, antes de seguir para os Estados Unidos.

Chega em Nova York e escreve: “Isso foi um arroubo, para que eu não me deslumbrasse com Nova York. Ainda mais surpreendente do que a natureza retorcida do México com plantas e pessoas, Nova York estonteia com suas construções e técnicas empilhadas surgindo à tona do oceano”. A relação com o que conhece nos Estados Unidos é conflituada, ao mesmo tempo em que se deslumbra com a Broadway, percebe o nascimento do “imperialismo norte-americano”: “O lugar para onde a maioria dos operários e trabalhadores é mandada, os pobres quarteirões de judeus, negros, italianos […] é incrivelmente […] sujo […]”. Alarma-se com o tamanho da cidade de 4,5 milhões de habitantes. E anota que sua cultura é movida exclusivamente pelo make money. Faz observações atualíssimas, como o vínculo entre as empresas e a mídia: “Não há dinheiro que possa recomprar um jornalista já vendido”. Vai para Chicago, onde há mais comunistas. Não deixa de anotar a presença da Ku Klux Klan, assassina dos negros, que “se tornou um fenômeno da vida corrente”. E, como poeta, anota a diferença do inglês britânico para o norte-americano, ainda em Nova York, ao observar uma inscrição numa loja chinesa: “Aqui fala-se inglês e entende-se americano”. Prefere Chicago à Nova York, esta uma cidade decorativa, aquela uma cidade com energia singular. Relata o episódio da greve de 1886 em 1o de maio, que levou “cinco camaradas” à forca. Passa por Detroit, a cidade dos automóveis, aproveitando para criticar a ideologia fordista: “Na fábrica levam grupos de cinqüenta pessoas. A direção é uma só […]”. E ironiza: “Em Detroit há a maior taxa de divórcios. O sistema Ford torna os operários impotentes”.

Retorna meio desiludido à União Soviética, anotando: “Diante dos operários da arte desponta a tarefa da lef: não decantar a técnica, mas refreá-la em prol dos interesses da humanidade”. Depois, acrescenta que: “A divisão do trabalho aniquila a qualificação humana. […] O capitalista […] trata […] [a] massa operária como um bem de consumo inesgotável”. Então, posso concluir, voltou como foi, convictamente comunista, justificando-se, entre clichês e verdades, mas nos legou um relato de primeira linha, de um bolchevique de primeira hora e um dos maiores poetas de todos os tempos em choque com a América.

Minha descoberta da América
Valdímir Maiakóvski
Tradução de Graziela Schneider, com supervisão de Elena Vássina
São Paulo, Martins, 2007, 119 p.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.