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O ANO (DA MORTE) DE ROBERTO BOLAÑO

Acaba o ano da morte de Bolaño e desponta, canonização laica, com ajuda do Estado nacional, na verdade mononacional, o do (segundo) nascimento de Neruda; em relação ao lapso, ou colapso, de Arturo Belano, alterego ou heterônimo [alterónimo] de Roberto Bolaño, as notícias são ainda incertas – as últimas afirmam que ele está morando na África. Há que se esperar, talvez, a publicação de 2666, o arquiromance inconcluso e pendente, da mão editorial do crítico de El País (da Espanha), Ignacio Echeverría, que neste fim de ano andou ele também investigando(?) umas últimas anotações em Santiago. E ainda continua.

Ano de morte, fim de ano com meio ano no hospital Vall d’Hebrón, em Barcelona; porém também o ano de El gaucho insufrible (que inclui um ensaio-relato mais que singular, “Literatura + enfermedad = enfermedad”, sobre o qual voltarei mais adiante) e ano, por fim, do clímax(?) de uma polêmica local de bolañomania tão desbocada quanto sofrível. Esta última, manobra de identificação simples: identifique-se, inicialmente, alguma literatura “nossa” (“chilena”, neste acaso), identifique logo Bolaño como epítome ou expoente [cumbre] daquela, não sem antes identificá-lo com alguma plêiade [cima] de um conjunto literário mais amplo, literatura latino-americana e/ou em língua espanhola (“Bolaño será nosso Borges”, anuncia um eventual colunista[a();2]); tire suas conclusões. Sem falar em alguma resistente pulsão, ou melhor, compulsão de inferioridade/superioridade que sobrepuja tais provincianos fazedores de rankings. Quem se dá bem com esse tipo de exercícios – certamente narcisistas – é, literalmente, o crítico mercurial Camilo Marks: pouco antes de sua morte (de Bolaño) proclamou-o como “o melhor escritor vivo” em “nosso” idioma (espanhol): ou seja, “há muitos escritores inferiores a Bolaño, e nenhum, entre tantos que praticam o ofício literário em nosso idioma, supera-o na atualidade” (sic)[a();3]. E ainda que o Marks’ ranking abranja, ou pretenda abranger, tanto narradores como poetas “vivos” (a exclusão de ensaístas seria um mistério se não reparássemos em sua própria condição como tal, para não falar, por ora, de cronistas nem de outras criaturas identificáveis), o sujeito omite, de início, qualquer análise da obra de Bolaño em relação à escritura poética em nosso idioma, porque na atualidade – segurem-se – “não há poetas excepcionais em língua castelhana”, mas somente “versificadores ou aspirantes a tal” (sic). E continua! (Outro sintoma da decomposição do corpus (jurídico) crítico – seu desaparecimento?) O próprio Bolaño, cáustico até a medula e tão dado a juízos peremptórios (Kafka, o maior escritor do século xx; para poetas, os da França; o Solilóquio do Indivíduo marca um antes e um depois na poesia de língua espanhola; Wittgenstein é o maior filósofo do século xx etc.), não é menos peremptório, nesse ponto, ao se colocar como aprendiz de Parra. E que dizer, para não exceder por ora a castelhana comarca, de nosso último [Prêmio] Cervantes [2003]?

II

 Despierte, don Tomás, le decía, ya va a amanecer, tiene que irse. (Como si De Quincey fuera un vampiro). Pero nadie me escuchaba y volvía a salir a las calles oscuras de México DF.
Roberto Bolaño, “Un paseo por la literatura”

Nach
Dem Unwiederholbaren, nach
Ihm, nach
allem[a();4]
Paul Celan, “À la pointe acérée”[a();5]

Entre um morto (Bolaño) e outro (Neruda), a quem se quer fazer renascer, reitero: o lugar e a situação de Belano permanecem ainda incertos, entreabertos. Belano aparece e desaparece no corpus de Bolaño, como no jogo de fort-da freudiano ou no movimento de aletheia grego-heideggeriano, velo e desvelo ao mesmo tempo. Aparece, a princípio, como co-protagonista de Os detetives selvagens (1998), como franco combatente depois em “Fotos” (Putas assassinas, 2001) e em outros relatos breves, e ainda “antes”, como narrador (o narrador intradiegético, em gíria crítica), de Estrella distante (1996). Em Os detetives selvagens, comparece como um jovem poeta (chileno) estabelecido no México, que, junto com seu chapa de des/venturas tardovanguardistas, Ulises Lima (primeiros nas filas do grupo realvisceralista), segue a pista de algo como a cena edênica ou a Pedra de Roseta da vanguarda latino-americana, na figura da poeta velada, Cesárea Tinajero, e tudo isso nos labirintos do deserto de Sonora. Quando finalmente encontram a poeta original e originadora (vivendo, não por acaso, na rua Rubén Darío, numa fantasmagórica cidadezinha do norte do México, e tal Mistral é professora de púberes de província), um incidente absurdo acaba com ela: cai morta, vítima de uma bala perdida, na página 604 da edição de Compactos da Anagrama[a();6].

Mais tarde, percebemos que, após uma série de peripécias européias – entre elas, a publicação de algumas novelas exemplares –, Belano está na África, no meio de um fogo cruzado de frações contrapostas, na Libéria, não demasiadamente distante do deserto de Ogaden, como o tardo Rimbaud sudaca[a();7] (a referência a Rimbaud, como a uma espécie de Cesárea Tinajero do conjunto da poesia moderna, é constante em Bolaño, não apenas em Os detetives selvagens, no qual explicitamente o aprendiz de poeta que abre e fecha o relato, García Madero, confidencia: “Lima e Belano conhecem muito bem essa história. Falam de Rimbaud”).

Com Belano narrador e co-protagonista de Estrella distante, a vanguarda enfrenta outro mortal (não-)desenlace. Morre pela segunda vez a vanguarda, e agora em seu lado mais sombrio, em seu lado Céline, Pound e/ou Saenz, e, mais precisamente, em seu lado La literatura nazi en América (Estrella distante começa justamente no “não-desenlace” desta última), assassinada a um passo da casa de Belano, em Blanes, Catalunha,

por uma espécie de repetição tardo-vanguardista de On murder considered as one of the fine arts, de De Quincey (1827). Repetindo: não por acaso a figura que figura em Estrella distante, o sombrio – e amiúde horrendo e abjeto, ainda que infigurável – da arte moderna, tem por sobrenome Wieder.

Essa dupla morte, por “justiçamento” e por absurdez (ainda que a morte da poeta/vanguarda excêntrica não fosse deveras totalmente absurda; o disparo que confusamente a alcança, o faz ao entrar na refrega que os jovens tardo-vanguardistas sustentam com a latino-americana violência machista), revela-se, contudo, insuficiente para terminar de dar morte à moderna poesia latino-americana. Não só pela mencionada incerteza em torno das últimas ou mais recentes vicissitudes do já não tão jovem poeta Belano (terá voltado à Cidade do México ou a Concepción, como seu xará Rimbaud voltou a Charleville antes de ir a Marselha e esticar a última perna que lhe restava, a esquerda?); também pela publicação dos textos poéticos assinados por Bolaño (Los perros románticos, Tres e outros poemas e poemários de seu precoce período infrarrealista), dos quais, em pelo menos um, o “sujeito lírico” (na verdade, “dramático”; Bolaño anda mais próximo do drama em personagens pessoano que do poeta uni-versal nerudiano) é – aposto! – Belano: Prosa del otoño en Gerona.

Esse corpus que não acaba de desaparecer (Belano), nem de morrer (a moderna poesia latino ou hispano-americana), palpita ainda quando Bolaño reexamina a cena original das cenas originais da poesia moderna – segundo ele, a poesia francesa do século xix – e conclui que seu decalque perdura até hoje (uma modernidade quase habermasiana, tal inacabado trajeto): “A poesia francesa, como bem sabem os franceses, é a mais alta poesia do século xix e, de alguma maneira, em suas páginas e em seus versos se prefiguram os grande problemas que iriam afrontar a Europa e a nossa cultura ocidental durante o século xx e que ainda estão sem resolver (“Literatura + enfermedad = enfermedad”).

III

En estas desolaciones, padre, donde de tu risa sólo quedaban restos arqueológicos.
Roberto Bolaño, “Un paseo por la literatura”

Fait couler le rocher et fleurir le désert
Devant ces voyageurs, pour lesquels est ouvert
L’empire familier des ténèbres futures.
Charles Baudelaire, “Bohémiens en voyage”

Que a franca poesia do século xix (Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, na lista de Bolaño) constitua, sem mais, a cena originária da poesia moderna é, a todas as luzes e sombras, matéria mais que discutível (e não somente há que se sublinhar a importância de Poe e do romantismo alemão na configuração dessa cena). Contudo, é essa a tradição à qual Bolaño responde de forma mais insistente e na qual tanto sua “narrativa” como sua “poesia” – e nisso está implícito esse monstro de ensaio-relato e de “conferência”, que jamais terá lugar, a meio caminho entre a vida e a morte pelos corredores do Vall d’Hebrón, que é “Literatura + enfermedad = enfermedad” – se empapam, se inscrevem, se medem e se pensam.

Tudo partiu, parte de Bolaño, com o apelo de Baudelaire à “viagem” como resposta ao Ennui – a arenga infinita, o fastio, mas antes: o abatimento ou mal-estar radical perante uma perda irremediável – da vida moderna (Bolaño associará a arenga, ou tédio, à “solidão” e à “loucura”, em Monsieur Pain e em Dias de 1978, respectivamente). Rimbaud, que junto a Lautremont, alcança o ponto de “máxima tensão” moderna, segundo Bolaño, terá levado até as últimas conseqüências o dictum baudelaireano (nas primeiras de suas Cartas del vidente, o aspirante ao “absolutamente moderno” fala de Baudelaire como de un vrai Dieu), desembocando ao cabo, porém, no maldito deserto, nos espelhismos do absurdo e do consumado niilismo do fortuito e/ou banal comércio literário, ou nem tanto. Bolaño, seguindo outra indicação de “Le voyage”, de Baudelaire, sublinha que a moderna incansável transumância acaba, mais que amiúde, também nos “oásis de horror” que de tanto em tanto irrompem e/ou ritmam nas modernas terras baldias; guerras (“guerra sola igiene del mondo”, Marinetti), desaparecimentos (Carlos Wieder e cia.), holocaustos, atômicas hecatombes e um longo et cetera.

Entre um e outro (não-)desenlace, ou entre esses e uma combinação de ambos os becos sem saída, Bolaño parece optar por uma espécie de “ligeira força messiânica” (Benjamin) na busca “do novo” (nouveau baudelaireano) nos corredores do Vall d’Hebrón – o novo como o inadvertido, como o encontro do sujeito consigo mesmo ou com algum inesperado objet trouvable:

Entre os imensos desertos do aborrecimento e os não tão escassos oásis do horror, existe uma terceira opção […] encontrar o novo, é a pobre bandeira da arte que se opõe ao horror que se soma ao horror […]. Batalha perdida de antemão […] as viagens, o sexo e os livros são caminhos que não levam a nenhuma parte e que, porém, são caminhos pelos quais há que se internar e se perder para voltar a se encontrar ou para encontrar algo […] com sorte: o novo, o que sempre esteve ali.
(“Literatura + enfermedad = enfermedad”)[a();8]

A opção pelo “novo” como inesperado em si (mesmo), ou inopinado “algo”, entrelaça irredutivelmente Bolaño à órbita moderna, como enorme vertente na qual confluem desde o romantismo ao pós-modernismo, passando, certamente, pelas vanguardas (Los perros románticos, livro que retoma o título de um poema “de quando eu tinha vinte anos e deixei o Chile pela ultima vez”[a();9] é outra marca afiada, bolañiana de tal montagem), originariamente com Baudelaire. Para Baudelaire, contudo, o horror (moderno) não apenas se encontra no meio ou no fim da viagem, senão que, desde sempre, está alojado em sua origem, é nativo ou “de berço”, diz uma passagem de El viaje colocada de modo inadvertido por Bolaño (“l’horreur de leurs berceaux”), o mais próprio assim como o mais inquietante e/ou estranho – tal Unheimliche freudiano-heideggeriano, como um “horroroso Chile” lihninista perante o qual não há um neochilenismo (como Bolaño sugere em outros poemas), nem neotestamentarismo que valha. Que pode fazer uma escritura que pretende confrontar o horror (próprio) de novo, porém não como repetição, se, de antemão, não tem desentrelaçado a oposição e mútua exclusão entre o próprio e o alheio e/ou distinto – e, digamos, entre lar e viagem, aparição e desaparição, e, ainda, entre “poesia” e “narrativa”? Matiz matriz: se há, nesse ponto, algo interessante em Bolaño, apesar de todos os pesares expostos, é a embriagante porosidade entre poesia e narrativa já na “trama”, já na “forma”, já no “relato”, já na “poesia” – não há, pois, “pastelero a tus pasteles”[a();10], entre poeta e narrador/a, nem vice-versa. Não é gratuita a cena da iniciação poética (e mais amplamente, de escritura) que percorre a maioria de seus textos e, singularmente, sob o modo desencadeante de “oficina de poesia”, em duas de suas tramas mais finas: Estrella distante e Os detetives selvagens[a();11]. Não há construção Bildungsroman em Bolaño, mas só errância e cáustica pentelhação; a guerra ao “pai” e/ou modelo, a sujeição à lei ainda que por transgressão ou dissolvente demolidor desacato, o desejo mesmo do sujeito (moderno), outra vez (wieder!) como o tardo Rimbaud, persistem até a última página do El gaucho insufrible, seu último livro publicado em vida. Outro matiz: que o horror esteja na origem, que a origem seja, inclusive, o horror, e não a simples aventura da viagem moderna, Bolaño também parece intuí-lo em outro parágrafo (com o qual estamos perante um escritor não pouco equívoco, salvo que o não pouco equívoco aqui seja francamente “eu” mesmo): numa passagem de Os detetives selvagens em que Ernesto (Cardenal) San Epifanio expõe sua teoria da poesia como luta subterrânea entre “poetas maricas” e “poetas viados” (Neruda e Paz entre os primeiros, Whitman e Blake entre os segundos), Cesárea Tinajero, a poeta do moderno latino-americano origem, transcende tal classificação, pois ela “é o horror” mesmo ou, o que é o mesmo, do Mesmo (p. 85). O Mesmo? Não tanto como o outro do Outro, mas, para dizê-lo já em bom romance, como o (compulsivo) cancelamento das diferenças: “O/ Mesmo/ nos / perdeu, o/ Mesmo/ nos/ esqueceu”(Paul Celan, “À la pointe acérée”).

Em seu errar pela constelação originária da poesia moderna, ou seja, francesa, Bolaño erra[a();12] também e sobre tudo perante e/ou com Mallarmé. Este, diferentemente do sugerido pelo narrador-ensaísta de “Literatura + enfermedad = enfermedad” (“Mallarmé nos diz que há que viajar, que há de se voltar a viajar”), não atende de imediato ao chamado à viagem nem sequer em “Brise marine” (1865), o poema evocado por Bolaño no célebre texto. Se há resposta a Baudelaire por parte de Mallarmé em “Brise marine”,e é evidente que há, ela não só é francamente ambígua, mas, como seus textos ulteriores o confirmam, de modo cortês vai de negativa: sem preconceito de pôr reparos aos cantos dos viajantes-sereias (“ô mon coeur, entends les chant des matelots!”), a “viajem”, como tal, é ainda crença ingênua, fruto da própria prostração moderna, ainda cruel esperança:

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs![a();13]

A resposta de Mallarmé ao mal (moderno), em deux mots, se chama “Un coup de dés”, conhecido como “O golpe”: o desastre, o naufrágio cósmico, começando pelo do próprio tropo do naufrágio; desconjunte próprio e do “próprio” ocorrera já, é o –sein mesmo de Dasein, diria (talvez não desse modo) um Meister da Alemanha. Não resta mais que lançar o(s) dado(s), “escrever”, pois, franquear/se um passo no instável entreaberto: “autour du gouffre/ sans le joncher/ ni fuir” – sem ganhos nem esperança messiânica presumidos[a();14]. Que uma escrita tal do après coup, ou do desastre, segundo a expressão de Blanchot, não deixe de abrir velhanovas perguntas, e não somente ético-morais a ponto de que o mesmo Mallarmé acabe roçando uma espécie de religião da Arte e da Literatura, hoje diríamos, da “Cultura” (laica), não é coisa menos inquietante[a();15]. Bem o saberá Celan ao ler El meridiano, na Alemanha do pós-guerra e/ou do pós-Auschwitz (1961) ou, mais entre “nós”, se se quer, Patricio Marchant, ao dar à imprensa Sobre árboles y madres, no Santiago do pós-golpe (1983).

Se Belano/Bolaño se identifica antes de mais nada com Rimbaud, o filho perdido nos desertos do “Terceiro Mundo” do pai generoso e gerador parteiro da “modernidade”, Baudelaire, un vrai Dieu!, é que, em um reiterado freudo-bolañeano aperto de parafuso, o poeta (moderno) por antonomásia vem a ser, de novo (wieder!), Édipo dando morte a Laio – e por conseqüência: moderno(a) poeta é quem se torna órfão(ã) por sua própria mão: “há que matar os pais, o poeta é um órfão nato” (Carnet de Baile) e antes:

é Rimbaud, ou seja, é o órfão (“Días de 1978”). A. Rimbaud, sabe-se, não somente se opera de Baudelaire, também se amputa, Merde, La poésie! da (quase) totalidade da literatura (e sobre a importância de tal “quase”, ora para eventuais novas vicissitudes da tradição moderna, ora para a Literatura (ocidental) tout court, dessa vez não retorno.[a();16]

A pequena encrenca de tudo isso é que, como bem soube Shakespeare, Doktor Freud e outros tantos, quanto mais radical é o parricídio (poético, antipoético ou nem tanto), mais radical é o retorno do pai como fantasma ou aparição. Se Parra tivesse sabido – no ano de Neruda!

Talvez Bolaño tenha muito mais parentesco com Lautréamont do que o que as escassas referências ao montevideano, em seu corpus, possam fazer crer. Lautréamont, mais o de Os cantos de Maldoror que o de Poesias i e ii, isto é, o do momento demolidor, mas ao mesmo tempo do bilíngüe franco-castelhano que, quando ainda não desvanecia o horror do sítio a Montevidéu pelo exército de Rosas, aprendia literatura nos manuais espanhóis da época[a();17]. Lautréamont, por fim, “cuja viagem é a da periferia à metrópole e cuja forma de viajar e de ver permanece ainda revestida no mistério mais absoluto, a tal ponto de não sabermos se se trata de um niilista militante ou de um otimista desmesurado” (Cf. “Literatura + enfermedad = enfermedad”).

 

Entre passo e passo

Nuestra situación (según me pareció entender) es insostenible, entre el imperio de Octavio Paz y el imperio de Pablo Neruda. Es decir: entre la espada y la pared.
Roberto Bolaño

Dizem que disse um crítico
Que tenho dois vícios poéticos:
a repetição e a repetição.
Glauco Mattoso

Minha mãe nos lia Neruda em Quilpué, em Los Angeles. Um livro único: Veinte poemas de amor y una canción desesperada, Buenos Aires, Losada, 1961. Assim começa “Carnê de baile” (Putas assassinas, 2001). Entre um passo e outro, Bolaño faz ou acerta suas contas com o campeão dos pesos pesados da literatura chilena (assim, em itálico, vem inscrita a expressão nos confins do breve e erótico incestuoso relato), não sem antes nos informar que seu próprio pai foi campeão de boxe “no sul do Chile”, precisamente na categoria dos pesos pesados: “sempre houve um par de luvas de boxe em minha casa, já fora do Chile ou no México” (grifos nossos). O Neruda dos Vinte sonetos: o legado materno e por sua vez o amor de(da) mãe, o personagem Édipo de novo (wieder!), porém antes: o presente grego (a Literatura), dom e dose, e, como todo legado, dívida impagável e presente envenenado. Jallalla haverá exclamado “le vieux poète aïmara”, transalucinado em Huidobro (cf. Manifestes, 1926); desnecessária volta a Itaca – remédio e veneno, em casa, também se pronunciam da mesma forma em (língua) aimará…

Se há algo que, a essa altura, ainda gruda com cola Neruda (e Paz) com Bolaño é sua comum, se bem que distinta, identificação com Rimbaud. Em seu discurso de Estocolmo (1971), o único poeta que Neruda nomeia e cita (Huidobro é apenas citado), é o (pentelho) moderno por antonomásia, o de Uma temporada no inferno:
Et à l’aurore… ao horror, quase. (Quantoa Paz, este inscreve sua própria poesia (crítica) naquele mesmo envio: “a partir de Uma temporada no inferno nossos grandes poetas fizeram da negação da poesia a forma mais alta de poesia: seus poemas são críticas da experiência poética, crítica da linguagem e do significado, crítica do poema mesmo”. (Cf. O arco e a lira).

*

Quando Neruda morreu, eu tinha onze anos, vivia em Concepción e versopentelhava em língua francesa (minha mãe continua sendo nerudiana, meu pai, como não, rokhiano). Bolaño então andava ainda na casa dos vinte (nasceu em 1953), um pouco mais ao sul, em Mulchén, na casa de uns tios; a caminho de Concepción, a poucas semanas (da morte de Neruda), uns recos o detiveram em um posto policial e o prenderam como “terrorista” e, mais chateação, “estrangeiro” (o ardido sotaque de pimenta chipotle da Cidade do México “mostrou” que “verás como querem, no Chile, ao amigo quando es forasteiro” não é senão, como no conjunto da chilena mitologia, literária inclusive, apenas huachi para os tontos). Quando Bolaño morreu, trinta anos depois, faz meio ano, eu estava em Córdoba junto com Matias, meu filho (argentino) de três anos; folhando um puído exemplar de La voz interior, El Mercurio e La tercera de la docta, encontrei, de supetão, uma velhanova entrevista de Bolaño.

JORNALISTA: Em Putas assassinas, encontramo-nos mais uma vez com sua própria vida. Nesse trabalho com a autobiografia existe uma intenção de diálogo com seu destino?
BOLAÑO: Nunca me coloquei “trabalhar” com minha autobiografia […].

JORNALISTA: Apesar das viagens e das mudanças de cenários, há um não-sei-quê de claustrofóbico nesses relatos.
BOLAÑO: Sobre a claustrofobia, eu não sei o que dizer. Gostaria de viver em outro planeta. Porém me agüento.

JORNALISTA: Neste livro quem ganha as palmas de sua ironia é Neruda. Você não gosta dele como poeta ou o mal-estar tem mais a ver com a influência dele no sistema literário chileno?
BOLAÑO: Eu gosto bastante de Neruda, tal como digo nesse continho. Um grande poeta americano. Embora Neruda, em algum momento de sua vida, pensasse que ele era o paradigma do poeta, e ele errou. Mas a verdade é que todos os poetas, em algum momento de sua vida, acreditam ser a morte.

 

. . . . . . . . . .

[1] Texto aparecido inicialmente em dezembro de 2003 em um desaparecido jornal eletrônico chileno, nas vésperas do centenário de nascimento de Pablo Neruda.

[2] Marco Antonio Coloma, cf. El Periodista, Santiago, jul. 2003.

[3] “Roberto Bolaño, el explendor narrativo finisecular”, em Patricia Espinosa (org.), Territorios en fuga: Estudios críticos sobre la obra de Roberto Bolaño, Santiago, Frasis, 2003 (grifos nossos).

[4] “Sobre/ o irrepetível, para/ isso, fazia/ tudo”. (N. T.)

[5] Cf. El Espíritu del Valle, Santiago, n. 4/5, 1998. A confrontação do texto alemão, inserido em Die Niemandsrose, de 1963, demarca, a sua maneira, o naufrágio na tradução, isto é, o não repetível. Quanto ao título em francês do poema de Celan, este retoma e reelabora uma passagem de um poema em prosa de Baudelaire, “Le confiteor de l’artiste”, em Le Spleen de Paris.

[6] Los detectives salvajes, 4. ed., Barcelona, Anagrama, 2003. A primeira edição apareceu em novembro de 1998 na coleção Narrativas Hispânicas.

[7] “Sudaca” é um termo europeu para designar latino-americanos, com forte valor pejorativo. (N. T.)

[8] Ignoro se Bolaño leu Celan (até onde minhas leituras alcançam, não o nomeia em nenhum de seus escritos, ainda que seja mais do que improvável que não tenha tido notícias de sua obra, dada sua própria condição de poeta, e dada também a ampla “recepção” da poesia de Celan na Espanha); mas esta passagem de “Literatura + enfermedad = enfermedad”, coincidência ou não, se parece muito com uma do El meridiano: “Anda-se, então, quando se pensa em poemas, se anda com poemas por tais caminhos? São estes caminhos somente caminhos em círculos, rodeios de ti a ti? São também, ao mesmo tempo, entre tantos outros caminhos, caminhos pelos quais a linguagem adquire voz, são encontros, caminhos de uma voz a um tu que percebe, caminhos criaturais, projetos de existência acaso, um antecipado enviar-se para si mesmo, em busca de si mesmo. Um tipo de regresso à casa (trad. de P. Oyarzún, Intemperie, Santiago, 1997, ligeiramente mudada). E, se há encontro na escritura como caminho e caminho a si (mesmo), há também bifurcação de caminhos; onde em Bolaño há “algo” em Celan há “alguém”/ “tu” – dois modos da alteridade (em latim aliquod e aliquem) finamente divergentes.

[9] Roberto Bolaño, “Esta vez iré con las manos en la nuca”, entrevista a Melanie Jösch, La Tercera, Santiago, 25 fev. 2000.

[10] Versão livre do ditado popular “Zapatero a su zapato”, que quer dizer: cada qual faça o que melhor sabe fazer. (N. T.)

[11] Grinor Rojo analisa acertadamente essa dimensão iniciática e, no fim das contas, de constituição do sujeito de Os detetives selvagens (cf, “Sobre Los detectives salvajes”, em Patricia Espinosa (org.), op. cit., pp. 65-75), ainda que não deixe de sucumbir in extremis – é sua última frase – ao esporte local de ranquear: Bolaño, “um narrador de dotes excepcionais e que, tal como se apresenta, poderia ser o quarto mais importante na história da literatura de nosso país”. A hipótese do “corpus fantasmal” da poesia chilena, sugerida por Marcelo Novoa mais adiante (“Roberto Bolaño o retrato del poeta perro”, pp. 241-8) é outro indubitável acerto do mencionado volume compilado.

[12] No original: “y/erra”, jogo com a própria forma equivocada de grafar o verbo “errar” na 3a pessoa do singular, que comumente aparece sem o “y” inicial. (N. T.)

[13] Se for possível distinguir um “primeiro Mallarmé”, ainda marcado pela herança baudelaireana (do qual formaria parte justamente “Brise marine”, de 1865), de um “segundo” e mais liberado dela (caso, entre outros, de “Coup de dês”, de 1897), o primeiro prenuncia já as marcas do segundo.

[14] No original: “presupuestables”, trocadilho entre “supuesto” (suposto) y “presupuesto” (orçamento). Daí, uma relação com “sem ganhos”, que a tradução para o português dissolve. (N. T.)

[15] Muitas das velhanovas perguntas que suscita a “resposta” mallarmeana são também, e especialmente, permeadas na breve mas fulminante escrita de Juan Luis Martínez.

[16] Cf. Rimbaud, La (mi) última carta, Chile, Intemperie, 1996.

[17] Leyla Perrone-Moisés, em seu sugestivo Lautréamont austral, Montevidéu, Brecha, 1995, escrito em colaboração com Emir Rodríguez Monegal, mostra claramente não apenas a influência decisiva em Lautréamont de El arte de hablar, do retórico espanhol José Gómez de Hermosilla, mas também uma série de in/conscientes espanholismos entravados em Os cantos.