Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do não fazer.
João Cabral, adulterado, “O artista
inconfessável”, em Museu de tudo, 1975
1. Ao contrário do que usualmente se supõe, a passagem dos anos não tem obrigação nenhuma de revelar algum grande autor ou mesmo um autor apenas razoavelmente bom. A regra estava valendo para o passado, que revelou tantos autores extraordinários, quanto vale para os próximos cem ou mil anos, que talvez nunca vejam nenhum outro, assim como podem ver centenas deles. Se grandes autores apareceram com regularidade, ou aparecerão da mesma forma, isso são contingências, não necessidade ou decorrência lógica de um conjunto quantitativo sempre crescente de escritos.
2. Antologias de autores promissores ou novos lançamentos de escritores contemporâneos não cessam de aparecer, por piores que sejam. Alguns são jovens, outros são célebres, outros são simples amigos do editor: qualquer coisa basta. Por isso mesmo, nada é suficiente como critério de edição, e o publicado basicamente ajuda a encobrir a percepção evidente de que não há nada de relevante sendo escrito, nem mesmo há indícios de que essa relevância possa ser descoberta outra vez no domínio da literatura.
3. Não parece haver nada relevante sendo escrito, essa é a mais provável razão desse poço, desse mar de coisa escrita.
4. A suposta necessidade de aparecimento de novos grandes autores é, no melhor dos casos, apenas uma reação à situação de contingência radical em que vivemos. Nada garante, entretanto, que, no futuro, leremos algum novo grande autor, a despeito de todos os grandes que existiram antes. A despeito mesmo da probabilidade amigável de que, em um mundo sem fim, algum escritor decente se ponha de pé, e ande, assim como em um mundo de macacos há boa probabilidade de que um deles possa tomar um desvio inesperado em sua evolução e virar homem.
5. Probabilidade, mesmo uma boa probabilidade, não é necessidade, mas apenas média projetada de eventos. Conclui-se que um grande autor é o resultado imponderável de um conjunto de circunstâncias e ocorrências inesperadas, sem qualquer garantia de repetição de seus termos de existência.
6. A suposta necessidade, já agora como hipótese medianamente ruim, se apresenta como um efeito psicológico primário associado a uma estratégia usual de mercado que finge lançar novos produtos “definitivos” a cada dia. Isso posto, é certo que nenhum crime contra natura foi cometido, quando se percebe como são poucos os escritores brasileiros surgidos nos últimos trinta anos a que se poderia aplicar a categoria de autor a sério.
7. Agora, na pior das hipóteses possíveis, as publicações de novos, bem como as novas publicações, salvo raríssimas e imponderáveis exceções, nascem da crença efetiva de que eles tenham realmente qualidades de grande autor. Evidentemente, há pouco a fazer em casos assim. Pode-se, por exemplo, tentar falar mal da antologia ou dos autores em questão, mas não há a menor chance de que eles não se julguem perseguidos pessoalmente por um crítico desonesto e mau-caráter. Um ou outro (os melhores deles), com muita sorte, deixará de escrever, mas a maioria absoluta – ao menos enquanto continuar sem sucesso – tratará apenas de aumentar a cumplicidade e a camaradagem que guarda entre si (cf. Leopardi, Pensieri: il mondo è una lega di birbanti contro gli uomini da bene).
8. Se me perguntarem o que imagino para definir a seriedade de um escritor, o que me vem primeiro à cabeça é justamente a ideia de alguém que busca resistir à vulgarização do escrito. Isto é, penso em alguém que admite, mesmo contra seu mais íntimo desejo e sua mais teimosa vontade, que absolutamente nada o obriga a escrever, a não ser uma falácia lógica tomada como falso imperativo de cultura.
9. Uma vez que seja assim, o escritor sério deve pensar mil vezes antes de se pôr a escrever. De preferência, como efeito de ter pensado seriamente no assunto, deve inclinar-se a não fazê-lo. Não admira, desse ponto de vista, que um pensador sério como Giorgio Agamben imagine que Bartleby, o escrivão que se recusa a escrever, seja o melhor exemplo de um escritor que conhece sua contingência e não abusa de sua condição, fazendo o que faria melhor desde que não o fizesse. Quer dizer, quanto melhor fosse potencialmente o escritor, menos poderia sê-lo em ato, por absoluto pudor de tornar-se apenas um cotejador e copiador de uma montanha de outros escritos, já produzidos, sem senso nem motivo, a não ser o de girar a própria engrenagem burocrática de escrever.
10. Mas não precisamos chegar à inteligência superior de Bartleby ou àquela que o criou, ele mesmo personagem de uma obra-prima altamente improvável. Se escrever não é preciso, alguma autocrítica não faria mal ao aspirante de escritor ou ao escritor de ofício. Ao contrário, faria um bem enorme, a ele e a nós. Luís António Verney, homem de não poucas luzes, insistia em que o pretendente talvez fosse mais útil, ou menos irrelevante, trabalhando com rigor em alguma outra coisa mais à medida de seu talento, que fosse igualmente mais útil à república.
11. Se escrever não é preciso, devemos absolutamente concordar com Horácio quando nos diz que não é razoável retirar do poço os escritores que tiverem o bom senso de se atirar lá, fingindo inspiração ou loucura. Simplesmente não é civil salvar escritores da morte prematura.
12. Pessoalmente, por incorrigível vezo de criação católica, sugeriria aos jovens pretendentes que, se não têm um poço por perto, tentassem antes a vida como copy desk, ou como tradutor de algum texto de escritor reconhecidamente superior de outros tempos e lugares (se bem que, muito provavelmente, nesse caso, eles acabariam por arrastá-lo para a mediocridade em que vivem), ou mesmo, em último caso – mas último caso mesmo –, que puxassem o saco de alguém que lhes descolasse alguns trabalhinhos freelance em uma página de cultura ou em uma editora mainstream.
13. Quaisquer dessas atividades modestas – mas não baixas, pois apenas puxar o saco é verdadeiramente baixo, embora não tanto quanto escrever porcamente (cf. Bernardo Soares e o horror dos aleijões da página mal escrita) –, além de tantas outras atividades verdadeiramente medíocres que podemos imaginar, valem muito mais a pena do que escrever, tanto em termos públicos quanto pessoais. Ao menos, são atividades seguramente menos irritantes para os outros, obrigados (por educação ou por sentimento cristão) a ler tanta irrelevância escrita. Mas deixar de escrever, sobretudo, será (seria) um enorme alívio para o próprio pretendente a escritor, que se livraria do fardo de afetar um talento que não possui e de ter de se expor continuamente à crítica de algum detrator malvado.
14. Enfim, não adianta disfarçar; escrever, em geral, é apenas deixar-se arrastar pela maré dos lugares-comuns subletrados. É anunciar mais cedo a própria inexistência, a própria morte irreparável como autor. Publish and Perish, disse muito propriamente Marjorie Perloff.
15. Paradoxalmente, uma maneira de adiar a compreensão simples da absoluta não necessidade de escrever é pretender humildemente que escrever seja justamente apenas mais uma atividade entre outras, e o escritor, alma singela, apenas mais um homem comum, por mais coquette que se apresente em seus gestos e maneiras.
16. Chamo a isso especificamente “pretensão”, e não, por exemplo, “desejo”, porque não há um só sujeito que afirme que escrever seja uma coisa qualquer, que saiba também tirar a consequência óbvia dessa afirmação: a de que seja uma atividade tonta, indiferente e desprovida de valor pessoal ou público, como a maioria absoluta de todas as outras atividades comuns e quaisquer.
17. Se não se tratasse de pura afetação arrivista, o escritor pretendente a gente comum teria de concluir que a inserção da literatura no patamar da vida média se traduz como uma simples rotina, um automatismo, cujo pressuposto (necessário, portanto) é apenas a adesão ao lugar-comum. Enquanto tal, é basicamente forma de alienação da vontade própria em favor, digamos, do ganha-pão, o que definitivamente nada tem a ver com um projeto de criação artística, autocriação pessoal ou intervenção pública por meio da literatura produzida.
18. O resultado, pois, da pretensão da escrita como atividade ordinária é a de que escrever não apenas não constitui autores, enquanto criadores, como, ao contrário, submete-os rapidamente ao movimento da prática tosca e maquinal de reprodução do mundo no estado de merda no qual existe.
19. Esse maquinismo fabril-escriturário tem como desfecho infeliz um mar de escritos. Nessas circunstâncias, que papel feio não fazem os escritores! Para fazer deles uma imagem apenas ruim, e não odiosa, teríamos de vê-los como um amontoado de corpos devolvidos à praia, pois, como alertava o quinhentista Bernardim Ribeiro, o mar não sofre coisa morta.
20. Na praia inglória, findam sobretudo jovens escritores, novas promessas, futuros talentos. De modo algum, entretanto, devemos nos comover, pelo mesmo motivo que repreendia Virgílio a Dante, enquanto observavam os sofrimentos dos precitos: é simplesmente justo. Ademais, não faz a menor diferença para nós: juventude, novidade e futuro são apenas faces simpáticas do mesmo engano que dissolve a qualificação ou a excelência do autor na banalidade do escrito.
21. Exatamente porque escrever não é preciso, escrever pode ser tudo menos uma atividade entre outras quaisquer. Escrever é um ato que, de saída, já deve uma explicação: ele tem de reinventar sua própria relevância, a cada vez, ou então se condenar a ser apenas uma ideia torta de novidade: o retorno do mesmo, piorado.
22. Cada escritor, conformado com a condição de exercer uma atividade ordinária, dissolve sua vida em uma linha que enuncia inexoravelmente o mesmo: o escrito é apenas uma forma de morte vil.
23. Isto é o que se pode dizer dos autores e da literatura mediana, que é o único ofício que não admite mediania virtuosa: Horácio revém. Ou seja, em matéria literária, ou se é radicalmente bom, ou se é radicalmente imprestável.
24. Da crítica, entretanto, não se pode dizer o mesmo. Longe de se atirar com a força e a ingenuidade estúpida da juventude contra o mar de quantidade que a devora e contra o qual nada pode (a não ser acreditar baixamente que a banalidade é a destinação universal da escrita), a crítica foi sendo morta na cama, enquanto dormia, e seu corpo paulatinamente sendo substituído por simulacros que Foucault chamou certa vez de meninos bonitos da cultura.
25. A especialidade dos meninos bonitos, na perfeita inversão que caracteriza a atividade dos invasores de corpos, não é evidentemente a crítica, mas seu contrário: o colunismo social.
26. A crise aqui é a total falta de crise. A desistência da crise é a matéria básica de que se formam os bodysnatchers durante o sono da crítica. Eles são sempre gente boa, simpática, quase variantes sem mandato de vereadores e deputados, cuja habilidade profissional se mede pelo coeficiente de agilidade com que barganham os votos dos leitores pelo tráfego entre os agentes institucionais da literatura, vale dizer, grupos universitários de poder, lobbies de editoras, cadernos culturais da grande mídia, revistas literárias com algum público ou prestígio etc. O coeficiente de barganha se nutre da capacidade de estabelecimento de um círculo de cumplicidade, autoproteção e confirmação mútua entre todos os participantes do sistema de tráfego em questão.
27. Claro que isso tudo pressupõe a adesão, mesmo inconsciente, a lugares-comuns e paradigmas teóricos conhecidos e transformados já em imperativos políticos e institucionais de circunstância, os quais são, por definição, conservadores – o que nos traz de volta ao autor enquanto prático de uma atividade ordinária. Nesse aspecto, o diferencial do dublê de crítico é a faculdade de se manter completamente cego diante de tudo que possa revelar o profundo desinteresse, o imenso tédio das práticas literárias contemporâneas.
28. Os meninos bonitos estão lá, no meio da névoa cerrada do presente sem futuro, pintando freneticamente de luz as sombras de sono e banalidade de que são feitos. Com seu farol tingido, asseguram aos passantes que tudo vai bem, que aquele mar não é abismo, que aquele poço tem fundo, que novos grandes autores estão surgindo naturalmente, que novas obras-primas continuam a ser geradas e até que a literatura de “nosso país” é fecunda e pujante.
29. Quando se chega a esse anúncio maravilhoso, o sistema de tráfego de banalidades está completo. O escritor qualquer coisa encontra seu crítico sem crise. Admiram-se, respeitam-se, amam-se.
30. Se os meninos bonitos fossem mais que invasores de corpos, os quais despossuíram de crítica, tudo o que deveriam ou poderiam fazer era iluminar as trevas da própria cegueira, a obnubilação do sono, o cerco implacável do nevoeiro feito de tédio, ignorância, arrivismo e inconsequência a que estamos submetidos quando escrevemos.
31. Escrever como atividade média é o grau zero da necessidade e da utilidade.
32. Nesse cenário de horror banal, mas que curiosamente se representa como euforia de criação, pouquíssima gente destoa. Isso ocorre porque quase toda gente acha, com razão, que pode fazer parte do elenco de “grandes autores”, ultimamente identificado com a mediania das atividades quaisquer. Claro que, nessas circunstâncias, muito mais difícil e desejável é, por exemplo, obter um bom emprego.
33. Os poucos e raros que desacreditam de escrever, isto é, que não entendem a escrita como atividade necessária e mediana, entendem também que praticá-la é apenas confirmá-la moribunda ou já defunta, mas não enterrá-la de vez. Escrever, frequentemente, é apenas um cadáver que passeia, um defunto que procria e multiplica, como o homem; ou que faz cento por um, como o sêmen de Deus, mas cujos frutos apenas proliferam a secura e o vazio.
34. Se escrever é prática vulgar e inútil, melhor é não fazer (ao contrário do que pensava Cabral, que tinha, entretanto, razão, enquanto era ele a fazê-lo).
35. Nenhum motivo é bastante para escrever. Não precisamos de entretenimentos. Precisamos ainda menos de ficção, de estética, de fazer de conta que não estamos saturados de ficção no campo comum da atividade medíocre. Não precisamos de mais atividade na roda.
36. A condição do escrever é a crise. A literatura que vale a pena que escreve, responde pela destruição do escrito ou simplesmente já não responde a nada.
37. O mar não sofre coisa morta.