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O que é isso Gabeira?

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Uma pergunta dá título ao livro: O que é isso, companheiro?, recém reeditado em formato de bolso (SP, Cia das Letras, 2009). A resposta, o próprio livro de Fernando Gabeira, que completa agora 30 anos, é porém por demais conhecida para merecer mais uma resenha. Merecerá, ao menos, uma releitura? Compro afinal o livro, apesar de já tê-lo possuído, e apesar mesmo de talvez ainda possuí-lo em minha biblioteca por ora encaixotada. E logo me ocorre uma pergunta: o que é isso, companheiro? O que é esse livro, afinal? Um “romance-depoimento”, como afirma a contracapa, “em que [o autor] busca compreender o sentido de suas experiências ― a luta armada, a militância numa organização clandestina, o seqüestro do embaixador americano, a prisão, a tortura, o exílio”? Será isso? “Compreender o sentido de suas experiências”? Mas, afinal, trata-se de uma viagem ao Nepal ou de militância política? Acrescenta, em todo caso, a contracapa: “[O livro] elabora, para a sua e para as gerações futuras, um retrato autêntico e vertiginoso do Brasil dos anos 60 e 70”. Não é o Nepal, afinal, mas ainda não é a atividade política definida (a lista de “experiências” enumera, na verdade, apenas circunstâncias). “Retrato autêntico e vertiginoso”? Deve ser por isso que o texto termina falando de cinema: “Relato lúcido, irônico e comovente, o livro se transformou num verdadeiro clássico do romance-depoimento brasileiro, e foi filmado pelo diretor Bruno Barreto”. Textos de capa, naturalmente, devem ter algum apelo mercadológico, pois o capitalismo não foi afinal vencido, e livros são também produtos. Ainda assim… Há algo de muitíssimo errado nesse texto de contracapa. E o que há de errado é sua leveza, em primeiro lugar, e seu silêncio, em segundo lugar. “A luta armada, a militância numa organização clandestina, o seqüestro do embaixador americano, a prisão, a tortura, o exílio”: para que mesmo? Em nome da heróica luta contra a ditadura, naturalmente. Contra a ditadura… Logo, pela democracia? Não. Inequivocamente não. Neste caso, por que mesmo lutar contra a ditadura? O texto da contracapa é incapaz de sequer começar a responder.

Responde mais diretamente o próprio autor, no último parágrafo do prefácio: “Gostaria de ter dado uma visão mais clara do papel e do valor de cada um dos integrantes da luta armada. Meu livro não tinha, porém, esse objetivo. Se há cem maneiras de fazer uma só biografia, há, certamente, milhares de caminhos para contar a aventura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil” (p. 9). “Uma visão mais clara”: logo, é apesar de tudo uma visão, ainda que indireta e parcial, “do papel e do valor de cada um dos integrantes da luta armada”. Trata-se, em todo caso, de um desses “milhares de caminhos para contar a aventura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil”. Aventura coletiva da resistência à ditadura militar…  Portanto, pela democracia? Não pode ser, se mais não fora porque a palavra democracia aparece apenas uma vez ao longo de suas 217 páginas. A palavra ditadura, porém, é comum, já desde o prefácio. Luta armada contra a ditadura militar, mas completamente ao largo da democracia… Não porque ela não existisse então no Brasil, e sim porque ela não existia na própria oposição de esquerda à ditadura. Daí sua virtual ausência do livro. Mas, então, contra a ditadura e a favor do quê? É isso, afinal, o que a contracapa omite, e é isso o que omite o prefácio. Mas não o livro: eles lutavam… pela ditadura.

Pela “boa” ditadura, naturalmente, mas ditadura. Dizer, portanto, que se tratava da luta contra a ditadura militar é uma meia verdade, que se torna uma mentira inteira. Não se luta contra a ditadura, seja ela qual for, a não ser que se lute pela democracia. Pois lutar por outra ditadura não é, na verdade, o mesmo que lutar contra a ditadura, como esse tipo de afirmação quer fazer crer. Por que, afinal, não dizer diretamente que lutavam pela “ditadura do proletariado”?

Gabeira o diz, e inúmeras vezes, ao longo do livro. Mas o diz sempre enfatizando a luta contra a ditadura militar (e ainda que, contraditoriamente, afirme às vezes coisas como: “O Vietnã era o caminho. De que, não sabíamos bem” ― p. 61). O movimento é claro: trata-se de convencer o leitor de que a luta pela “ditadura do proletariado” era afinal uma coisa positiva, pois passava pela luta contra a ditadura militar, uma coisa a priori negativa. Com isso, afinal não se questiona a luta a favor de uma ditadura. Esperar que Gabeira o fizesse à época seria absurdo, pois ele lutava por essa ditadura, assim como seus pares. Mas num livro escrito em 1979 não é nada absurdo.

O livro, portanto, serve como um instrumento de mitificação política da esquerda da época, tanto mais eficiente quanto foi sempre vendido como antidogmático, o que explica inclusive seu título, que incorpora uma crítica de um militante dogmático ao próprio autor. Acontece que seu antidogmatismo é, numa palavra, pífio, pois praticamente limitado a questionamentos comportamentais, mantendo um absoluto silêncio, por exemplo, quanto à realidade da “via socialista”, que era o totalitarismo, fosse na versão soviética ou chinesa (ou mesmo no autoproclamado “trotskismo” de alguns grupos). Lutava-se, enfim, pelo totalitarismo em sua versão vermelha. Pergunto-me portanto em 2009: era essa, afinal, uma luta de fato louvável, ou sequer defensável?

Se a palavra democracia aparece apenas uma vez no livro, a mesma sorte tem stalinismo. Gabeira, porém, não é tão comedido em relação ao adjetivo leninista ― que em sua primeira aparição, à falta de maiores esclarecimentos, e pelo duplo contexto de se tratar de um grupo revolucionário e de este ser ligado ao PCB, deve forçosamente ser entendido nos dois sentidos, isto é, leninista no método, o do voluntarismo vanguardista, e na ideologia. No mesmo parágrafo em que a palavra faz sua sincera e realista estréia, porém, o ritual de entrada em tal grupo leninista é descrito em tom de leveza e mesmo derrisão:

Oficialmente, entrei para uma organização leninista na praça Antero de Quental numa tarde muito bonita. A organização era a Dissidência Comunista, uma cisão do PC brasileiro, surgida no meio da década de 60. O companheiro encarregado de me comunicar que eu tinha sido aceito fez uma ligeira preleção sobre minhas qualidades, meus defeitos e as novas tarefas que me esperavam. De agora em diante, como no poema de Lorca, meu nome não era mais meu nome, nem minha casa era mais minha casa. Alguns adjetivos altissonantes, menções à inevitável vitória final, ao inexorável curso da História rumo ao progresso, encerravam aquele curto ritual de iniciação. O que nos salvou do ridículo total era o fato de que, tanto ele como eu, éramos péssimos atores e deixávamos escapar mil sorrisos fora do lugar, ao longo daquela conversa solene. (p. 66)

Fica portanto difícil acreditar que Gabeira e os seus pudessem de fato tomar o poder. Mas isto não importa. Em primeiro lugar, porque eles acreditavam que poderiam tomá-lo ― a ponto de apostarem a própria vida, pois afinal não se tratava de suicidas. Em segundo lugar, porque essa imagem de derrisão e leveza (explicitada já pela contracapa: “irônico e comovente”), serve para escamotear o que importa, e nada tem de leve ou derrisório: se eles lutavam por uma ditadura, o que teria acontecido se fossem vitoriosos?

Eis é a verdadeira pergunta, escamoteada pelo livro já a partir de sua pergunta-título: o que é isso, companheiro, que vocês pretendiam fazer ao chegar ao poder?

Pois se tratava de uma luta pelo poder. A luta da esquerda contra a ditadura, não sendo de fato pela democracia (essa excrescência histórica burguesa), via a luta contra a ditadura como primeiro passo para a “Revolução”. Isto é explicitado e sintetizado mais de uma de vez pelo próprio Gabeira. Mas o que é, afinal, a “Revolução”?

A única resposta historicamente verdadeira, apesar de sua virtual ausência no livro, atende pelo nome de stalinismo. Eles lutavam pelo totalitarismo de esquerda, como parte do processo de luta mundial contra o capitalismo. Eles lutavam pelo totalitarismo. Totalitaristas derrotados são heróis?

 

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Eles lutavam, arriscando a própria vida, contra uma ditadura ― e ambas as coisas parecem justificar, digamos, na essência, a sua atuação. Passível então de crítica em muitos aspectos, mas não em si. É, portanto, o que Gabeira faz, sempre en passant, e sempre na forma de um rápido questionamento de tais aspectos criticáveis. Eis o resumo político do livro. E eis o motivo pelo qual o julgo um engodo e uma falácia.

Seu pressuposto é falso. Mais ainda: impregna seus objetivos políticos reais, hoje indefensáveis, com a aura da positividade.

Lutar contra uma ditadura e arriscar a vida não são positivos ou respeitáveis em si, como o livro pretende (“uma visão do papel e do valor de cada um dos integrantes da luta armada”). Pois em se tratando de política, não podem ser separados dos objetivos finais dessa luta. O que há aqui é um sofisma. Pois a luta contra a ditadura é respeitável a priori apenas para quem é a priori contra as ditaduras ― ou seja, para quem defende a democracia e as liberdades civis. Assim, os combatentes de esquerda conta a ditadura militar acabam adquirindo, implicitamente, a condição de defensores da liberdade, que está na base de sua aura positiva. Porém tal condição é, numa palavra, falsa.

Quem combate uma ditadura não luta necessariamente pela liberdade. No mesmo ano em que Gabeira escrevia seu livro, 1979, isso seria demonstrado de maneira cabal pela Revolução Iraniana, que derrubou o governo autocrático do xá, e por isso foi aplaudida nos quatro cantos do mundo. Aplauso estúpido. Porque lutar contra o xá não garante nada. Pois não garante aquilo pelo qual afinal se justificaria lutar contra o xá. No caso da retrovolução iraniana, liderada por religiosos, tratava-se de derrubar o xá para instalar o fascismo islâmico, ou seja, de trocar seu regime autocrático pela ditadura religiosa. Deve-se, neste caso, apoiar os que combatem o regime o xá? Mas por quê? Se o regime do xá é condenável porque opressivo, não faz sentido apoiar sua derrubada para que seja substituído por um regime ainda mais opressivo. Ë fundamental, portanto, para julgar com um mínimo de realismo, justiça e lucidez as ações contra um governo ou um regime, saber por que e pelo que se age. Os aiatolás não combatiam o xá porque era opressivo, pois não combatiam pela liberdade. Combatiam-no porque era a opressão errada, que deveria então ser substituída pela opressão certa, a dos próprios aiatolás. Jamais a autodeterminação, a sociedade aberta, o livre arbítrio político da população esteve no horizonte dos aiatolás.

É fundamentalmente idêntico ao caso brasileiro. Os militantes de esquerda também lutavam contra a ditadura militar e arriscavam suas vidas para instaurar outra ditadura, a do “proletariado”. Fascismo islâmico ali, stalinismo, ou fascismo de esquerda, aqui.

Se Khomeini tivesse sido derrotado, preso e torturado pelo xá, e se depois o regime do xá passasse por uma “abertura democrática”, como se dizia à época, e como de fato aconteceu com regimes semelhantes, incluindo a própria ditadura brasileira, além da chilena e da argentina, deveríamos a posteriori louvar ou sequer respeitar a luta de Khomeini nos “anos duros”? Absolutamente, não. Nada pode justificar o fascismo islâmico. Pois nada pode justificar o fascismo.

O certo e o errado, em política, têm uma geometria mais complexa do que pretendem os maniqueístas. Não se trata de um retângulo com duas metades, uma boa, a outra má, restando portanto escolher a metade certa. Trata-se na verdade de um polígono, com bem mais de uma face no lado errado. O xá era tão condenável quanto (senão menos do que) Khomeini. A ditadura militar era tão condenável quanto (senão menos do que) o stalinismo, o fascismo de esquerda. Gabeira porém o justifica, indiretamente, ao não rejeitar a luta de fascistas de esquerda contra a ditadura militar brasileira, que na verdade era a luta pelo fascismo de esquerda.

No caso de Khomeini, sua rejeição, apesar da luta contra o xá, seria facilitada pelo fato de a oposição àquele ter sido polimorfa. Havia desde fascistas islâmicos até fascistas de esquerda, passando por setores democráticos da classe média. Logo, era claro que a luta contra o xá não era suficiente para definir quem lutava, e por quê. No caso brasileiro, também havia setores democráticos, principalmente ligados a velhas lideranças políticas no exílio. Mas, internamente, a luta acabou monopolizada pela esquerda, que se serviu da lógica da Guerra Fria. A ditadura era coisa dos EUA, visando defender o capitalismo, ameaçado pelas “forças populares”, das quais Jango era um “companheiro de viagem”. Logo, lutar contra a ditadura era lutar contra os EUA (Gabeira não seqüestrou o embaixador americano por acaso), que era lutar contra o capitalismo. Logo, lutar contra a ditadura era lutar pelo socialismo. Tal lógica foi tão vitoriosa que se impôs mesmo aos grupos de origem católica, ideologicamente próximos, de início, à democracia cristã, mas que logo estavam abraçando a luta contra o capitalismo. O problema é que socialismo, em termos práticos, jamais foi outra coisa além de um rótulo mais palatável para o bom e velho stalinismo.

A conseqüência é não apenas o falseamento dos fatos pela omissão da verdade, ou seja, a verdade de que quem luta contra uma ditadura para implementar outra nada tem de louvável, mas também uma completa inversão da verdade, pois o resultado final de tal operação é a impregnação de seus objetivos políticos reais, hoje indefensáveis, com a aura da positividade. Em outras palavras: no livro de Gabeira o fascismo de esquerda aparece afinal muito bem na foto, apesar de uns poucos retoques. Fascistas de esquerda derrotados são heróis? Fascistas de esquerda são fascistas?

Gabeira, evidentemente, não é fascista. Por outro lado, é ainda mais evidente que o stalinismo, pelo qual ele na verdade lutou, tem muito de fascismo (ambos são formas de totalitarismo ― daí, aliás, não fazer diferença, num certo nível, falar em stalinismo, leninismo, maoísmo, trotskismo etc., variações do totalitarismo de esquerda). Como se explica tal contradição? Se pensarmos nas organizações fascistas, os camisas-negras, camisas-marrons, camisas-verdes etc., seus membros são obviamente fascistas: vestem-se como fascistas, falam como fascistas, comportam-se, enfim, como fascistas. Assim como stalinistas, ora, comportam-se como stalinistas. Suas organizações militantes possuíam códigos estritos e dogmatismo de idéias, de vocabulário e de comportamento. A diferença é que não havia um uniforme stalinista. Ao menos quanto às camisas. Quanto ao resto, porém, não faltava uniformidade. E apenas enquanto não estivessem no poder. Uma vez lá, mesmo as camisas eram uniformizadas. Basta pensar no estilo Mao.

Resta porém o problema de Fernando Gabeira parecer de fato a mais antifascista das pessoas. Em primeiro lugar, há a questão do tempo. Tanto Vinicius de Moraes quanto D. Helder Câmara, para citar dois exemplos, a certa altura de suas vidas flertaram com o integralismo, o fascismo tupiniquim. Se as pessoas, fundamentalmente, não mudam, podem mudar suas fidelidades, suas idéias e seu comportamento. Com certeza, o Vinicius dos anos 30, que escrevia poemas católicos, não se parecia muito com o Vinicius dos anos 60. Em segundo lugar, pessoas podem se enganar. Podem mesmo ser enganadas.

Eu próprio já fui stalinista. Ainda que, como Gabeira, jamais aceitasse o rótulo, e ainda que também não soubesse me comportar muito corretamente. Fui um péssimo stalinista. Para piorar, fui um stalinista passivo, um stalinista de nascença, pois minha família era dogmaticamente “de esquerda”. Cresci, assim, em plenos anos 60, acreditando no paraíso socialista, lendo os livros canônicos e execrando os EUA, o capitalismo e a democracia burguesa, em nome da salvação dos povos pela ditadura do proletariado. O fato de eu ter sido um stalinista-mirim de merda não me tornava, porém, um democrata. Nem podia alegar ignorância. As discussões sobre o massacre dos marinheiros de Kronsdat por Trotsky, a relação genealógica entre o stalinismo e o leninismo, a necessidade histórica da ditadura do proletariado (na prática, do Partido), as razões das prisões em massas dos pequenos camponeses por Stálin, a esperteza do pacto germano-soviético, a glorificação das conquistas tecnológicas soviéticas, o desdém pela liberdade burguesa, mas não a crítica à opressão do Estado socialista (no máximo, a justificação pela conjuntura histórica de luta contra o capitalismo agressivo, mesmo depois das denúncias de Kruschev, mesmo depois da invasão da Tchecoslováquia, mesmo depois do Arquipélago Gulag), para não falar das louvações subsidiárias a Mao e Fidel, faziam parte do cardápio do jantar. Sabíamos de tudo. Dos processos de Moscou, dos campos de trabalho forçado, da KGB. Stálin, o PCUS e a URSS, porém, não eram verdadeiramente execrados, mas questionados e eventualmente desdenhados, pois prestaram afinal um desserviço. Talvez nem tudo tivesse sido necessário, mesmo nas duras circunstâncias da contra-revolução, da herança czarista e da ameaça capitalista. Kruschev, aquele bronco, não poderia ter sido um pouco mais sutil no 20º. Congresso? Eu simplesmente acreditava na descrição de um mundo em branco e preto, e, mais ainda, que sabia qual era o lado branco e qual o preto. Assim como um fascista. Assim como Gabeira. E como meus familiares. Minha família, então, era fascista?

 

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Não se trata, em todo caso, de ser como o nazista educado, que ouve Bach depois de torturar crianças judias. Em primeiro lugar, ninguém em minha família (aliás judia) jamais seria um torturador. Em segundo lugar, o nazismo é intrinsecamente mau, pois inclui a demonização e a negação de uma parte da humanidade, ou seja, inclui o ódio. Esta é a grande e verdadeira diferença entre o nazismo e o stalinismo, que muitos pensadores obtusos da direita insistem em ignorar: o stalinismo não é igualmente mau, pois não inclui o ódio. Seu inimigo não são pessoas, como os judeus para os nazistas, mas um sistema econômico e político. Daí pessoas intrinsecamente boas, como meus familiares, não poderem ser nazistas, mas poderem ser stalinistas.

Mas como, então, se explica a adesão de pessoas intrinsecamente boas a uma causa essencialmente má, apesar de não má como o nazismo, porém no mínimo tão má quanto o regime que (como no caso de Gabeira) combatiam, pois combatiam uma ditadura em nome de outra?
Nenhum nazista jamais pretenderia que o nazismo fosse bom: ele o julgaria necessário, correto (no sentido de permitir à raça superior exercer sua “superioridade natural”), mas não bom. A esquerda, porém, sempre se acreditou o lado bom da história.

A resposta está na visão ideológica do mundo. Adotar uma ideologia é adotar um sistema de crenças. Crenças políticas. A crítica ao capitalismo que está na base do socialismo não é . O problema é que não é necessariamente boa, como crê a esquerda. Ela é ou correta ou equivocada. Ser for correta, é uma boa crítica, se for equivocada, é uma crítica ruim. Mas a análise degenerou, desde o início, em crença (Manifesto de 1848).

Minha família, Gabeira e seus “companheiros” estão afinal mais próximos dos homens da Inquisição. Eles acreditavam agir pelo bem, e mais especificamente, por um bem maior, a salvação dos indivíduos, de suas almas, e do próprio mundo, pela evangelização. Também os stalinistas. Para uns, o Paraíso justificava tudo, para outros, a “Revolução” tudo justificava. Crentes são sempre potencialmente perigosos, pois se movem por certezas, e mais ainda, pela certeza de fazer o bem. Crentes jamais deveriam deter o poder. E o que é a “Revolução” senão a luta para entregar o poder aos crentes? Aos crentes na própria “Revolução”, o que os torna então mais perigosos do que a Igreja no poder. Pois a Igreja ainda serve a um outro, Cristo. Os revolucionários respondem apenas a si mesmos, pois são, afinal, a própria encarnação da “Revolução”. Se isto ainda não nos torna iguais aos nazistas, pois nada é igual ao nazismo a não ser ele mesmo, tampouco significa que a causa da “Revolução” seja inocente. Ela é inocente apenas no sentido doloso.

Gabeira, porém, pretende que não haver crime doloso é o mesmo que não haver crime algum. Eu, do meu lado, creio que a luta para a implantação de uma ditadura é, mais do que um erro, um crime. O livro é, neste sentido, a saga, perfeitamente edulcorada, de perfeitos criminosos políticos.

Não creio, contra os historiadores, que a Inquisição deva ser escusada de seus crimes em função do risco de anacronismo. Pois havia, à época, e no mesmo lugar, ou seja, a Europa mediterrânea, experiências de aceitação (ainda que relativa) do judaísmo. Refiro-me ao mundo muçulmano. Se havia, defender a tolerância nesse tempo e nesse lugar não é meramente anacrônico. A tolerância era uma possibilidade real, logo, a intolerância era uma opção, não uma inevitabilidade histórica. O mesmo vale para os stalinistas em sua recusa da democracia e da sociedade aberta. Devem, portanto, ser julgados por sua própria opção ideológica.

Tenho, porém, dificuldade de fazê-lo quando passo do teórico para o real, do geral para o particular. Como fica meu querido avô materno? Devo então julgá-lo um criminoso, um errado, ou no mínimo um ingênuo, neste caso, por ignorar a verdadeira natureza do stalinismo?

Não há responsabilidades automáticas. Meu avô não foi um militante, mas um simpatizante. Posso perfeitamente pensar nele, mantendo a analogia, como um bom crente que, durante a Inquisição, acreditando piamente na necessidade de salvar as almas dos cristãos-novos, conseguia abstrair as torturas e as execuções públicas em nome dessa mesma salvação, e então apoiá-las. Esse homem não é um criminoso, é simplesmente cego. Cego para a barbárie e a dor por não ter olhos para a realidade, pois os seus estão inteiramente ocupados em observar uma idéia. A idéia de salvação. A mesma, mutatis mutandis, dos homens e mulheres de esquerda.

Assim, Gabeira só junta o pronome nós e o adjetivo violento para falar da população brasileira em geral ― logo, para repetir um velho clichê ―, não para se referir ao seu grupo, à esquerda ou aos regimes de esquerda: “Os marginais eram desclassificados: fogo neles. Pois é: não é a polícia brasileira que é violenta. Nós somos violentos. Há uma parte nossa que espera lugar no museu de horrores da humanidade” (p. 192; fico pensando em quanto essa parte não aumentaria se a esquerda tivesse tomado o poder). Por outro lado, na única e rápida aparição da palavra stalinismo ao longo do livro, o adjetivo para censurá-lo é agonizante: “Até que ponto não éramos modelos de um stalinismo agonizante em tantos pontos do mundo?” (p. 158).

Stalinistas devem, enfim, ser considerados, na melhor das hipóteses, cegos, na pior, criminosos. Meu avô materno era um homem bom cegado pela ideologia. Os “companheiros” de Gabeira eram, então, uma mistura de cegos e de criminosos (no sentido de a luta pela ditadura ser não um mero erro, mas um crime, ainda que culposo). Ou isso, ou trate-se de ainda justificar a ditadura, ou melhor, o totalitarismo pelo qual, de fato, lutavam.

É afinal o que tenta fazer Gabeira, pela via indireta da “leveza” e da ocultação. O que é isso, companheiro, que vocês pretendiam mesmo fazer ao chegar ao poder?

 

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Se lendo o livro de Gabeira fica difícil acreditar que ele e seus “companheiros” pudessem um dia chegar o poder, isto é, como dito, apenas mais uma ilusão. Pessoas sem mais qualidades do que a ousadia chegaram a tomá-lo mais de uma vez ao longo da história. Em todo caso, Gabeira é perfeitamente honesto ao descrever o tipo de militante que ele e seus “companheiros” eram:

As organizações estavam completamente despreparadas para indicar um conjunto de tarefas teóricas necessárias. As tarefas teóricas praticamente não existiam o horizonte das ocupações cotidianas. Eram vistas com desconfiança, apesar do nível geral ser muito baixo. Nenhum de nós havia lido O capital, nenhum de nós conhecia profundamente a experiência revolucionária em outros países, nenhum de nós, enfim, problematizara algum aspecto do marxismo, ou mesmo inventara um campo novo para pesquisar. Tendíamos a uma concepção muito estreita do movimento e muitos achavam, mesmo, que a ação era tudo. Pessoalmente, ao ler a trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky, fiquei escandalizado com os bolcheviques; Lênin pedira que Stálin fosse à Áustria, fizesse uma pesquisa e produzisse um artigo sobre as nacionalidades. Mesmo sem conhecer o texto de Stálin, achava que aquilo era um luxo, que era uma revolução altamente intelectualizada, comparada com a nossa e com a cubana. A cubana aparecia como o exemplo novo e revitalizante: uma teoria pos festum e assim mesmo muito pouca. (p. 133)

Ora, sabemos que Gabeira é, em muitos aspectos, superior à média de seus pares. Ele escreve melhor, é mais honesto (apesar mesmo das grandes e graves tergiversações de seu livro), é mais complexo e não é apegado ao poder. Basta, para esclarecer por contraste, pensar em outro nome famoso da “resistência de esquerda” da época, José Dirceu. Tomando ambos como exemplos, é evidente que José Dirceu está mais próximo da média e da maioria de seus pares do que Gabeira. Duvido, por exemplo, que ele costumasse ouvir a pergunta “O que é isso, companheiro?” (mas posso muito bem imaginá-lo fazendo a pergunta). E o que são, afinal, os José Dirceu? Medíocres dogmáticos do Terceiro Mundo, aparatichks subdesenvolvidos que, se tivessem tomado o poder pela via revolucionária…

A vantagem da democracia não está em impedir que figuras cinzentas e arrogantes como José Dirceu (ou meramente medíocres como Lula) cheguem ao poder, mas em impedir que exerçam o poder de forma irrestrita e por tempo ilimitado. O stalinismo, por outro lado, obriga um país inteiro a ficar submetido indefinidamente aos Pol Pot, aos Kim Jong Il, aos Ceausescu. Há coisas ainda piores do que a ditadura militar brasileira. Em todo caso, se Gabeira e seus pares tivessem vencido, eu provavelmente partiria para a resistência armada ou para o exílio. Ficar submetido a um Médici por quatro anos é terrível. Ficar submetido a governos militares por vinte anos é intolerável. Mas ficar submetido a um José Dirceu por toda uma vida está além do concebível. Pensando bem, melhor partir para o suicídio de uma vez.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).