O novo milênio se abriu com descobertas e novas avaliações. Quando se põe na balança o conjunto da produção literária brasileira no século 20, descobre-se que a prática do espírito de vanguarda pelos modernistas e o seu domínio sobre artistas jovens e escritores de relevo propiciaram duas postulações estéticas paralelas e em nada complementares.
Talvez as duas postulações devam ser consideradas antípodas.
Em um dos pratos da balança, observa-se uma quantidade admirável de talentos precoces e anárquicos, cada um, a seu tempo e modo, produtor de um, no máximo de dois livros fascinantes. No outro prato, descobre-se que, no frigir dos ovos do milênio, temos apenas um reduzidíssimo número de obras completas que, no conjunto, entusiasmam o paladar dos nossos contemporâneos mais exigentes. Podemos contar nos dedos os autores brasileiros modernistas que escreveram e nos legaram uma reunião apreciável e homogênea de livros, em que se salientam as graças de um estilo original, as articulações de um pensamento complexo e a coragem na defesa de pontos de vista que botam o dedo nas feridas humanas, históricas e sociais causadas pela desordem econômica mundial.
Em 2002 comemoramos os 80 anos da Semana de Arte Moderna e, no ano de 2003, os 50 anos da morte prematura de Graciliano Ramos. A confluência das duas datas e dos dois acontecimentos históricos pode servir de inspiração para que pensemos na proporção disparatada que se encontra nos dois pratos da balança – ao lado de muitíssimos livros solitários e bons, de variadíssimos autores, estão pouquíssimos conjuntos de livros extraordinários de responsabilidade de um único escritor.
Do lado da Semana de Arte Moderna, permanece o fascínio sedutor pelo que é transgressor, novo e efêmero. A obra literária é resultado de um primeiro contato com ideias atuais, revolucionárias e muitas vezes extravagantes, que seduzem o coração jovem e entusiasmado, a ponto de levá-lo à audácia da escrita de vanguarda e publicação do livro. Do lado de Graciliano Ramos e de alguns poucos, permanece o peso inquestionável da obra literária amadurecida pelo trato com a tradição e com o instrumento de trabalho (a língua portuguesa falada no Brasil), construída de maneira lenta e refletida através de anos de luta e sacrifício. No caso do autor de Vidas secas, essa luta se deu em pelo menos duas frentes: contra as facilidades de uma escrita literária que galopava pela folha de papel em branco como um corcel narcisista e contra as misérias humanas e sociais do nosso subdesenvolvimento pós-colonial.
Há críticos e historiadores da literatura que foram sensíveis a essa proporção desproporcionada e procuraram avaliá-la, tomando posição favorável ao pequeno grupo que a algazarra modernista desfavorecia, de que fazem parte Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A intenção deles era a de justificar a opção feita por esses poucos escritores e, ao mesmo tempo, advogar a favor da construção de textos literários pelo processo autorreflexivo, minucioso e silencioso nos princípios da “psicologia da composição”, para se valer da expressão de João Cabral de Melo Neto. Em um segundo momento, contrapunham o pequeno grupo dos defensores da Arte – que se espelha em uma vida inteira e a acompanha passo a passo – contrapunham os defensores da Arte, repito, aos borbulhantes, anárquicos e meteóricos passageiros da festa literária.
Também há críticos e historiadores da cultura que defenderam os artistas que fizeram a opção oposta. Foram insensíveis ao processo de amadurecimento gradual, que acompanha o aperfeiçoamento do escritor através de livros sucessivos, e bradavam aos quatro ventos da pátria amada palavras de louvor a favor do foguetório vanguardista. O melhor exemplo dessa segunda postulação estaria nas sempre citadas e proféticas palavras de Andy Warhol. Predisse ele que no futuro cada artista teria apenas, e no máximo, alguns poucos minutos de sucesso. [ 1] Não é o caso de Graciliano Ramos.
Utopia socialista, razão comum
A profecia de Andy Warhol representa, pois, a negação da experiência jubilosa por que passamos no mês de maio de 2003: celebrar com respeito, entusiasmo e admiração a complexa e multifacetada obra de Graciliano Ramos que, antes de ser produto do arroubo juvenil do artista, é o resultado de toda uma vida dedicada ao trabalho com as palavras. Arte e vida se confundem. Manipuladas pelas mãos desse incansável operário das letras, as palavras, apesar de serem mais leves que o ar, têm peso, eficácia e são capazes de explicar e compreender o homem brasileiro e sua inserção no devir histórico da humanidade.
Leiamos um curto trecho de Memórias do cárcere, que traduz o estoicismo filosófico – ético, estético e político – de Graciliano Ramos: “Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período – riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas”. [ 2] Em Graciliano, emoção e escrita se entrecruzam. Também se entrecruzam reflexão sobre a espontaneidade dos sentimentos cotidianos e o trabalho duradouro que a arte deve exercer, a posteriori, sobre eles. Borrar a espontaneidade dos sentimentos significa questionar os preconceitos sub-reptícios que nos são impostos pela formação burguesa, que nos enriqueceu, e de que padecemos, se pensarmos nas injustiças de que é vítima a maioria da população.
Eis a forma que Graciliano encontra para acertar o passo com os desígnios de uma nova literatura para uma sociedade futura: ao borrar os desacertos do passado, melhor se enxergam os caminhos do futuro. Ao borrar a palavra equivocada lançada na folha de papel, o artista sai em busca da palavra certa no lugar certo. A depuração da experiência, que fundamenta a memória, e a depuração do estilo, que alicerça a narrativa, têm o fim de não deixar o cidadão e o artista caírem nas ciladas armadas pelos poderosos do momento e pelos pequeno-burgueses, ávidos, que sempre estão a oferecer ao primeiro – o cidadão – o salvo-conduto da má-fé de que fala Jean-Paul Sartre, [ 3] e ao segundo – o artista – os grossos dividendos do mercado e os louros espúrios da Academia.
A partir daquela dupla depuração é que pode surgir no campo estreito e esplendoroso da arte de Graciliano Ramos a ideia de uma utopia socialista. A atitude radical do escritor alagoano – e de alguns outros grandes artistas da modernidade – não é consequência de temperamento agressivo e autoritário. Por detrás da atitude radical, como ele próprio nos alerta, está o borrão na folha de papel, que recobre e elimina a escrita apressada, equivocada e preguiçosa. Por detrás da atitude radical está, não tenhamos dúvida, a força da indecisão, ou melhor, a prática constante dos borrões. Só depois de feito o borrão é que brota, alicerça e se afirma na folha de papel em branco a certeza e a coragem da decisão, produto que é do império da razão.
Apesar de nunca ter defendido as extravagâncias políticas e religiosas de T. S. Eliot, Graciliano Ramos comunga com ele uma concepção de arte moderna classicizante e universal, pouco reconhecida, e muitas vezes menosprezada, pelos apressados defensores dos sucessivos –ismos (futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo etc.), que alimentaram a modernidade e o modernismo brasileiro, e com eles dialogaram.
Em 1919, em ensaio intitulado “Tradition and individual talent”, [4 ] Eliot sentiu necessidade de distinguir, no capítulo destinado ao estudo do que se chama evolução literária, a parte do talento individual e a parte da tradição. Ou seja, a parte que, na evolução de uma literatura nacional, toca ao escritor isolado em tête-à-tête narcisista, e a parte que toca ao escritor quando este, pelo conhecimento da história literária em que deseja inscrever seu projeto, se insere no movimento geral da arte universal.
Os escritores que nos legam livros que são apenas produto do talento individual – por mais extraordinário que seja este – saltam, dão cambalhotas no ar, recebem aplausos e desaparecem com o correr dos anos. Já os que nos deixam escritos amadurecidos lentamente, ao compasso da vida que brilha e da história humana que se esvai, produzem efeitos inesperados e definitivos no leitor. Ao lê-los e ao refletirem sobre os seus escritos, o crítico e o historiador da literatura percebem concomitantemente o “atraso” do sistema literário vigente e são levados a repensá-lo, induzidos que estarão sendo pela força sócio-histórica que esses poucos e definitivos livros carreiam. São esses livros que os levam a revalorizar e a reorganizar, a partir de novos e insuspeitados parâmetros, o acervo artístico de uma nação ou da humanidade. Como diz Heráclito em um de seus fragmentos, que Eliot, aliás, cita: “Embora a razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento próprio”. [7] O pensamento original não brota ex nihilo. Ele nasce no meio da comunidade da razão e, sendo a favor dela, é também contra o status quo que ela sedimentou.
Os bons autores “tradicionais” (as aspas são necessárias para que não se os confundam com os escritores conservadores, que se afirmam pelo espírito acrítico em relação aos valores do passado, como é o caso, na época de Graciliano, dos poetas que se reuniram em torno da revista Festa) terminam sendo responsáveis pela reescritura da História e da História da literatura universal, na medida em que fazem do passado um trampolim necessário e ousado para a interpretação do presente com vistas ao futuro. Tomemos de empréstimo alguns versos aos Quatro quartetos, livro maior de T. S. Eliot, publicado em 1943. Ei-los na tradução de Ivan Junqueira:
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente. [ 6]
O velho Graça não chega tarde ao cultivo das letras, como se depreende dos textos iniciais que estão no volume Linhas tortas: [ 8] chega, no entanto, tarde ao livro publicado e distribuído pelas livrarias do país. Seu primeiro romance, Caetés, [7 ] foi editado no ano em que cumpriu 41 anos. Talvez por ter chegado tarde ao leitor de livros, chega enriquecido por uma reflexão pessoal e intransferível sobre a arte de narrar. Muito dessa arte, sabemos, foi tomado da leitura dos realista-naturalistas portugueses, em particular de Eça de Queirós, o mais vigoroso e iconoclasta romancista e pensador do século 19 português.
Dele não só tomou de empréstimo a qualidade castiça do idioma português, como também o espírito político revolucionário, sempre crítico das injustiças que as formas despudoradas do colonialismo e do pós-colonialismo continuavam a operar pelas margens do mundo europeu, quando tudo indicava que os tempos socialistas eram chegados. Sem tempo hábil para desenvolver a ideia, gostaria, no entanto, de lançá-la. Deixaria a tarefa – se correta for a hipótese – para as novas gerações. Eis a ideia.
Graciliano e João Cabral
Acredito que exista outro paralelo a ser feito entre a prosa de Graciliano e a poesia de João Cabral de Melo Neto. Todos sabemos que a descrição do Nordeste por Cabral tem muito a ver com sua descoberta e leitura dos grandes poetas castelhanos. Confessa ele em entrevista: “Nos arredores da cidade [de Barcelona], vi paisagens áridas como as do Nordeste, era uma espécie de volta a Pernambuco”. [ 9] Em tom provocativo, acrescento que, de maneira semelhante, o Nordeste de Graciliano Ramos tem muito a ver com a Irlanda que Eça de Queirós pinta nas extraordinárias Cartas da Inglaterra, [10 ] que nosso romancista devorou com entusiasmo juvenil. De maneira simples, eis a hipótese: o efeito Irlanda, via leitura de Eça de Queirós, está para Graciliano, assim como o efeito Espanha, via atividade diplomática, está para João Cabral.
Começarei a elaborar a hipótese de trabalho com algumas palavras de Antônio José Saraiva, tomadas do seu livro As ideias de Eça de Queirós, e continuarei por outras poucas palavras tomadas de empréstimo a uma das cartas da Inglaterra do próprio Eça. Leiamos Saraiva e, ao mesmo tempo, substituamos mentalmente algumas referências à Irlanda por referências à situação social e econômica do Nordeste do Brasil, que todos conhecemos tão bem. Por exemplo, onde se lê land-lord inglês, leia-se latifundiário nordestino. Comecemos por Antônio José Saraiva:
Só nos fins do século [XIX] a exploração [da Irlanda] pela Inglaterra deixou de ter caráter colonial. Com efeito, a terra irlandesa estava dividida em enormes latifúndios por alguns grandes proprietários ingleses, e o alento dos naturais da ilha era consumido até ao último sopro para manter o fausto e o esplendor dos referidos proprietários estrangeiros. […] Esta questão da Irlanda é talvez a que deixa um sulco mais fundo e mais comovidamente humano nas Cartas da Inglaterra. E aqui, como no caso do Egito, Eça sabe ver para além do pitoresco romântico as leis rígidas que presidem aos fenômenos sociais: a fome da Irlanda é o resultado do regime da propriedade e das relações dos land-lords com os trabalhadores da terra. [11 ]
Teríamos de ler em seguida, e por extenso, toda a carta da Inglaterra que leva por título “A Irlanda e a lei agrária”, publicada em 20 de fevereiro de 1881 na Gazeta de Notícias. Contentemo-nos com algumas frases soltas:
Há também outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietária, os land-lords, indignam-se e reclamam o auxílio da polícia inglesa quando os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionária – comer. […] Como proprietário do solo, pois, o Lord arrenda-o às famílias que de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandês prende-se ao solo como uma árvore pelas raízes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar um torrão árido que o não nutre. […] A natureza quando não se apresenta ao trabalhador irlandês sob o aspecto de solo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pântano. Oferece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco. E diz-lhe com a sua ternura de mãe: “Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistência”. [12 ]
Se as ideias socialistas de Eça de Queirós, em particular as que atacavam de maneira corajosa os dramas do colonialismo e do pós-colonialismo europeu, tiveram enorme impacto na formação intelectual de Graciliano Ramos, sabemos que o estilo do autor de Os Maias, presente e forte em Caetés, como nos mostrou Antonio Candido em Ficção e confissão, [13 ] será pouco a pouco abandonado em favor de uma escrita brasileira. Documento dos mais extraordinários para indicar essa ruptura estilística é a carta que dirige à dona Heloísa de Medeiros Ramos, sua esposa.
Esbocemos primeiro o quadro histórico. Em 1932, tendo se demitido do cargo de Diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, Graciliano vai passar algum tempo em Palmeira dos Índios. Lá, funda uma escola na sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Amparo. É ali que reescreve o romance São Bernardo, que será publicado em 1934, no Rio de Janeiro. Heloísa tinha ficado com os filhos em casa do pai, em Maceió. Escreve-lhe Graciliano no dia 1.º de novembro de 1932:
O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro [grifo nosso], um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou passando para o papel. [14 ]
Existem duas versões do romance São Bernardo. A primeira, escrita originariamente em língua portuguesa, devedora por certo dos ensinamentos dos clássicos lusitanos, é transcrita (Graciliano vai além, escreve: traduzida), ganhando novo léxico e nova sintaxe, com vistas a uma segunda versão, em que predomina “um brasileiro encrencado”, um brasileiro de matuto. Esse processo de abrasileiramento do português nos trópicos por certo lembra os desentendimentos estilísticos que José de Alencar defendia na corte de D. Pedro II. E lembra, sem dúvida, os versos do poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, que todos conhecemos:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada. [ 15]
Abandonados o léxico e a sintaxe lusíadas, abandonado o dicionário luso, o de Morais ou o de Cândido Figueiredo, Graciliano Ramos, tal um etnógrafo em viagem pela própria terra natal, busca o dicionário vivo que sai da boca dos amigos e companheiros. Graciliano acrescenta na citada carta:
O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa [o romance] tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes, para a fixação da língua. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico? [ 16]
Pode-se concluir, em apenas aparente contrassenso, que o estilo clássico de Graciliano deve muito à fala de Sebastião Ramos, dos irmãos Cavalcanti, Otávio e Chico, e do padre José Leite, primo-irmão de Heloísa.
Sem conhecer um ensaio de Mário de Andrade, inédito até os anos 1970, Graciliano com ele comunga ideias sobre o papel do escritor na “fixação” do idioma nacional. Escreve Mário:
Um erro se justifica por aceitação inconsciente e unânime. E então não é mais erro. […] Mas uma língua existe porque nela tal dicção é certa e tal errada. E provém da colaboração coletiva. O escriba fixa a filha de todos, trançando-lhe os cabelos, limpando-lhe o nariz porventura; e se o faz com genialidade chama-se Dante ou Camões. [ 17]
Escreveu Mário ou Graciliano Ramos, acrescentamos nós. Graciliano também desconhecia o teor da carta que Mário envia a Manuel Bandeira em 8 de novembro de 1923. Nela diz:
Não são os regionalistas grifando os erros ditos pelos seus personagens que prepararão Dante, mas os que escrevem por si mesmos na língua vulgar, lembrando erros passíveis de serem legitimados. [ 18]
Agindo como etnógrafo em viagem pela terra natal, é que Graciliano Ramos foi pouco a pouco transpondo as barreiras impostas pela forma castiça do português escrito em Portugal. Consegue proeza quase impossível – a de criar por cima do rebuscamento vigoroso de Eça de Queirós uma língua brasileira parcimoniosa e acre-doce, cética e classicizante, semelhante à do nosso Machado de Assis.
Machado de Assis
E como trouxemos à baila os dois Ms, Mário de Andrade e Machado de Assis, demos continuidade ao baião. Agora para lembrar um artigo impertinente e sagaz de Mário de Andrade sobre Machado de Assis, que se encontra em Aspectos da literatura brasileira. [ 19] Ao ler o nosso romancista maior, Mário sufoca o pensador antropófago e transgressor que existe nele, para poder melhor enxergar um traço estilístico original do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. Esse traço estilístico servirá para que ergamos uma ponte que ligue as ironias sobre a vida burguesa na corte de Pedro II às vidas secas dos retirantes no Nordeste.
Leiamos um trecho do ensaio de Mário sobre Machado. Ele começa por distinguir duas linhas dominantes na tradição literária luso-brasileira: a dos barrocamente excessivos, de que são exemplos Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós em Portugal, e Castro Alves e Euclides da Cunha entre nós, e a dos clássicos parcimoniosos, de que Machado de Assis é exemplo no Brasil. Mário privilegia uma das duas linhas: a dos barrocamente excessivos. Para o nosso raciocínio, temos de inverter os signos da valoração feita por Mário. Onde está o polo positivo na análise de Mário (ou seja, o elogio dos barrocamente excessivos) estará o polo negativo no nosso raciocínio. E vice-versa: onde está o polo negativo em Mário (os clássicos parcimoniosos) estará o polo positivo do nosso raciocínio. Em outras palavras, não nos interessa neste momento a observação aguda de Mário em toda a sua amplitude, já que suas conclusões me parecem equivocadas. Interessa-nos o andaime estilístico que ele monta para salientar a originalidade de Machado de Assis (de resto rejeitada por ele, insistamos).
Por esse andaime, às avessas, é que vamos subir, a fim de enxergar melhor o peso da tradição machadiana na obra enxuta e depurada de Graciliano Ramos. O andaime servirá, ainda, para que possamos nos valer da régua e do compasso que permite construir uma ponte que irá unir o século 19 de Machado, “das mesmas setenta palavras”, segundo Mário de Andrade, ao século 20, das “vinte palavras sempre as mesmas”, segundo João Cabral de Melo Neto. A ponte que une Machado a Cabral se chama Graciliano Ramos.
Eis a frase de Mário de Andrade que queremos ressaltar:
Machado de Assis […] era o homem que compunha com setenta palavras. Era aquele instrumento mesmo de setenta palavras, manejado pelos velhos clássicos, que ele adotava e erguia ao máximo da sua possibilidade acadêmica de expressão culta da ideia. [ 20]
Não há como não atar essa aguda observação de Mário sobre o estilo parcimonioso de Machado ao poema de João Cabral de Melo Neto, que dá continuidade à linhagem dos nossos escritores secos e sólidos. Refiro-me ao poema intitulado “Graciliano Ramos”, incluído no livro Serial. Leiamos duas de suas estrofes:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
[…]
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre. [ 21]
Essas duas estrofes, por sua vez, evocam outra do jovem João Cabral, a ser extraída do poema intitulado “A lição de poesia”, incluído no livro O engenheiro:
Vinte palavras sempre as mesmas
De que [o poeta] conhece o funcionamento,
A evaporação, a densidade
Menor que a do ar. [ 22]
Ao contrário dos irmãos hispano-americanos, que desde a primeira hora optaram pelo surrealismo e, mais recentemente, pelo realismo mágico e pelo neobarroco, nossa melhor literatura, desde o século 19, optou por definir-se estilisticamente pela economia rigorosa no trato das palavras, como se, neste país onde domina a pobreza visceral da maioria dos viventes, a “expressão culta da ideia”, para retomar a expressão de Mário de Andrade, só pudesse ser articulada pela parcimônia do seco e pelo fascínio do sólido. Como diz Guimarães Rosa no Grande sertão: veredas: “quem mói no asp’ro, não falseia”. [ 23]
Em Graciliano Ramos, essa escrita do seco e do sólido, em lugar de repetir-se monotonamente de romance para romance, encontra sua redenção em um fato inusitado na literatura brasileira, na qual os melhores romancistas e poetas tendem a fazer da forma individual do primeiro livro uma fórmula para os demais. Cada livro de Graciliano é diferente do anterior sem o ser totalmente, já que os une uma visão comum do homem e do seu universo, dada por uma postura linguística, que termina por traduzir a formação filosófica do artista. Foi o crítico Otto Maria Carpeaux [ 24] quem percebeu pela primeira vez o fato de que cada novo livro de Graciliano trazia um tipo diferente de narrativa.
Retomando a aguda descoberta de Carpeaux, Antonio Candido, no ensaio “50 anos de Vidas secas”, explicitou de maneira convincente e detalhada a evolução literária do romancista e autobiógrafo.
De fato, é notório que, por exemplo, a parte mais importante da obra de José Lins do Rego consiste na retomada dos mesmos temas, no mesmo ambiente, e que há muito disso na de Jorge Amado. Mas Graciliano queimava meticulosamente cada etapa, no sentido quase próprio de quem destrói a fôrma para recomeçar adiante. Tanto assim que depois de dizer o que queria em quatro romances, que são outras tantas experiências sucessivas, deixou o gênero de lado e passou para a autobiografia.
Esse medo de encher linguiça é um dos motivos da sua eminência, de escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. [ 25]
A passagem da ficção à autobiografia revela, em última instância, o intelectual engajado que já existia no criador de narradores e personagens de ficção. Ao mesmo tempo romancista, dedicado às questões estéticas da contemporaneidade, e cidadão, entregue às questões ideológicas do seu tempo, é impossível para nós distinguir na vida-obra de Graciliano Ramos a parte da experiência estética e a parte da experiência vital. Esse é o maior elogio que se pode fazer ao artista cidadão.
- A famosa máxima de Andy Warhol – “In the future everybody will be world famous for fifteen minutes” – data, segundo seus biógrafos, de 1967 ou 1968. Foi difundida pela revista Interview.
- Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. 9.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Martins, 1976, v. I, p. 55.
- Jean-Paul Sartre. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943.
- [T. S. Eliot. “Tradition and individual talent”, em Selected prose of T. S. Eliot. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1975, pp. 37-44.
- Heráclito apud T. S. Eliot, Quatro quartetos (epígrafe), em Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
- T. S. Eliot, Quatro quartetos, op. cit., p. 199.
- Graciliano Ramos. Linhas tortas. 4.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/ Martins, 1976.
- Idem. Caetés. 8.ed. São Paulo: Martins, 1969.
- Antonio Carlos Secchin. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios cabralinos. 2.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 330.
- Eça de Queirós. Cartas da Inglaterra, em Obra completa, vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
- Antônio José Saraiva. As ideias de Eça de Queirós. Lisboa: Gradiva, 2000, pp. 30-31.
- Eça de Queirós. “A Irlanda e a lei agrária”. Gazeta de Notícias, 20 fev. 1881, em Obra completa, vol. 3, pp. 1108-1115.
- Antonio Candido. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1992, pp. 14 ss.
- Graciliano Ramos. Cartas. Edição especial fora do comércio, MPM Comunicações, s.d., pp. 130-131.
- Manuel Bandeira. “Evocação do Recife”, em Estrela da vida inteira. 11.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, pp. 104-107.
- Graciliano Ramos, Cartas, op. cit., p. 131.
- Brasil: 1.º Tempo Modernista – 1917/1929. Documentação. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1972, p. 222.
- Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1958, pp. 33-34.
- Mário de Andrade. “Machado de Assis”, em Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, s.d.
- Ibidem, p. 106.
- João Cabral de Melo Neto. “Graciliano Ramos”, em Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, pp. 75-76.
- Ibidem, pp. 354-355.
- João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 11.
- [Otto Maria Carpeaux. “Visão de Graciliano”, em Origens e fins. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1943, pp. 339-351.
- Antonio Candido. “50 anos de Vidas secas”, em Ficção e confissão, op. cit., p. 102.