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Outra vida, de Rodrigo Lacerda

O narrador da novela Outra vida, de Rodrigo Lacerda, é um tipo singular de intruso. Em sua onisciência, ele não apenas expõe seus personagens, mas também analisa-os e, principalmente, fala por eles. A cada página que vencemos nessa longa digressão, nesse hino de infelicidade, nesse lamento nascido da autoilusão e do desencontro, nos deparamos com o narrador incansável, sempre pronto a interferir, comentar e prender-se aos personagens: em certo trecho, quem conseguiu expressar alguns monossílabos foi o marido idiotizado por seus complexos – na linha seguinte, o narrador se incorpora à criatura, introduzindo nela seus próprios pensamentos; páginas à frente, a perspectiva é alterada, o narrador, sem deixar dúvidas, assume o comando – mas, logo depois, o fenômeno se repete: a esposa frustrada verbaliza rapidamente sua ansiedade, e quando imaginamos que o deus ex machina permitirá um monólogo interior ou um diálogo, a interferência ressurge, ele se imiscui, silencia sua criatura, reassume o papel despótico e coloca na boca da mulher palavras que revelam, apenas, suas próprias reflexões.

Tal recurso, pouco utilizado nos dias atuais, não é um mal em si. Balzac fez maravilhas com ele, ao radiografar certas classes sociais ou a vida de famílias e indivíduos em luta para ascender socialmente. No caso do narrador de Outra vida, contudo, enquanto ele devasta o que acredita ser o pensamento mais íntimo de seus personagens, somente inocula neles sua própria ideologia, suas próprias convicções sociais ou políticas. Ele jamais se esforça por aparentar isenção, mas transforma suas criaturas em marionetes do que pretende defender.

 

O doutrinador

A princípio sutil, nosso narrador apresenta seus personagens: na lanchonete da rodoviária de uma importante capital, marido, mulher e filha aguardam pela chegada do ônibus que os levará de volta à sua cidade de origem – derradeira tentativa de recomeçar a vida. Ao falar sobre a menina de cinco anos, ele oferece os primeiros sinais do que nos espera. A garotinha acaba de recusar o chocolate quente oferecido pelos pais, pois é “amargo” – e o narrador não perde tempo, inserindo sua crítica ao consumismo: “Amargo é qualquer chocolate diferente do que ela tem todo dia, sem o ‘gosto de festa’ ou o ‘sabor que alimenta’ aos quais a propaganda convenceu-a de que está acostumada”.

Poucos parágrafos adiante, o pai assiste à indefectível televisão de todas as lanchonetes de rodoviária; entretanto, apesar de ser ele o telespectador, quem nos relata cada detalhe das cenas de guerra é o narrador, que o faz sem esquecer de expressar seu julgamento sobre as “fontes não identificadas, contraditórias, evidentemente manipuladoras; e tudo isso ancorado numa voz sem dono, ou de um dono sem caráter, que ao mesmo tempo condena e explora o belicismo das notícias”. Não satisfeita, a voz que narra se entusiasma com o bloco de notícias seguinte: “Aí vêm cientistas de todos os cantos da Terra, confirmando para daqui a pouco o apocalipse movido a gás carbônico. Estranhamente, não fazem o mea culpa; afinal, inventaram o modelo civilizatório que agora responsabilizam pelo fim do mundo”. Segundos depois, a atenção do marido se desvia para a esposa que retorna, pois havia se afastado para conversar com seu amante. O marido olha a mulher que fala ao celular e conclui: “Gosta de um telefone”; mas o narrador aproveita e expressa sua ironia: “Está perfeitamente acostumada ao mundo privatizado das telecomunicações”.

Na página seguinte, quem observa é a esposa. Ela vê, a distância, a mulher que amamenta um bebê. O narrador nos descreve minuciosamente a cena, dando a impressão de revelar as reflexões da observadora – e não resiste à elucubração de cunho biológico ou antropológico: “Como todos os bebês, deseja aperfeiçoar a espécie humana, fundindo-se ao corpo do qual nasceu, e, com isso, adquirir o dom da autoalimentação”.

Prestemos atenção, caros leitores: o marido não cursa o mestrado em teoria da comunicação, mas trabalha como técnico eletrônico, funcionário inferior de certa estatal, nomeado graças à influência da sogra; e sua esposa não é uma bióloga adepta do evolucionismo, mas trabalha numa loja qualquer, tendo iniciado sua carreira como balconista. Nosso narrador, portanto, mais que onisciente e intruso, tem ideias a defender, é um doutrinador, um catequista que julga tudo e todos segundo seu monismo nada peculiar, revelado sem timidez.

A fim de clarificar esta conclusão, vejamos outra cena. Enquanto o marido recorda o dia em que a filha nasceu, a voz que narra interfere, a fim de apresentar os estereótipos que a norteiam: “Os sogros, sentados ao fundo, conheciam maneiras mais reservadas. Olhavam o genro com distanciamento. A formalidade e o selo da hierarquia social estreitavam-lhes a compreensão das pessoas. […] Aquele casal, mais nobre e mais severo que seus pais, da mesma religião porém menos praticante, valorizava o orgulho e a dignidade, e não o amor e o perdão, como as duas virtudes essenciais”. Explico: os sogros são donos de uma salina, empresários que, apesar de decadentes, consomem suas economias, resistindo a diminuir o padrão de vida – e no papel de defensores do capitalismo, devem, necessariamente, ter uma compreensão estreita de seus semelhantes; quanto aos pais do marido, um casal de açougueiros, esses estão santificados pela vida humilde, pelo orçamento insuficiente – e podem, portanto, cultuar “o amor e o perdão”.

Essa visão maniqueísta da sociedade retornará sob o olhar da esposa. Ao descrever a revistaria da rodoviária, para onde a mulher se dirigiu, a fim de se afastar do marido irritante, o narrador introduz sua cunha: “Nas revistas de celebridades, os ricos ostentam seus privilégios para se diferenciar do populacho, que, em vez de se revoltar, coleciona-os em papel colorido”. Ansioso pela revolução cuja força reordenará definitivamente a sociedade, nosso narrador deve alegrar os leitores que partilham da mesma ideologia…

 

Epifanias de genialidade?

Em sua desesperada tentativa de libertar os personagens do jugo que, acredita, é intrínseco ao universo da classe média, o narrador só consegue aprisioná-los em armadilhas de palavras que ficariam bem na voz de palestrantes de um congresso psicanalítico ou da convenção anual dos sociólogos. O marido – corrupto menor em busca de redenção, confessou o próprio crime e devolveu o dinheiro da propina – sente-se odiado pelo chefe. E o narrador nos explica, quase de maneira científica, o motivo: “É odiado […] por ser como é, e por reprovar a dinâmica do grupo político hegemônico na estatal, embora tenha sido apadrinhado por ele”. Até mesmo o amante da mulher – por coincidência, o chefe odiado pelo marido – demonstra fantástica agudeza sociológica e política:

[…] Comparativamente, é como se o marido fosse o capitalismo brasileiro, com seu complexo de culpa, e a mulher, o modelo americano, sem medo de ser feliz; ele, na vida, é o lobista tupiniquim, cuja atuação, por hipocrisia, não está sujeita a lei nenhuma, ela é o lobista dos países desenvolvidos, um profissional como outro qualquer, com limites dados pela Constituição; ele é o atraso patrimonialista, sugador, demagógico, ela, o choque de competitividade saudável que faz os indivíduos e os povos andarem para frente.

A mulher, por sua vez, além de bióloga é uma psicanalista nata, capaz de raciocínios muito profundos: “Havia sempre algum sentimento regendo o encontro de dois corpos. Engano era achar que o sentimento deveria sempre ser amor. O sexo podia ser presidido por necessidade de afirmação, ou pela revolta contra imperativos controladores; ou por trás do sexo podiam estar o tédio, o desprezo, a posse, o medo de morrer cedo, o gosto pela experiência, o ciúme, ou até a sede de autoconhecimento. Podia ser inclusive em relação a uma terceira pessoa, que nem estivesse participando”. É surpreendente que tal mulher, preparada para fazer tais abstrações, tenha engravidado contra sua vontade, casado com um homem medíocre, permanecido anos numa relação que jamais a satisfez e ainda hesite quanto ao seu futuro.

A animosidade dessa esposa infeliz, aliás, produz sínteses dignas de figurarem em algum panfleto subnietzschiano: “Se Deus realmente existisse, o sentimento de autorrealização e os laços de afeto jamais entrariam em contradição. Mas, a despeito do que os pais deles imaginavam, e agora o marido também, o corrupto convertido, Deus se tornara um engravatado de maus modos, balofo, suarento e fraudador do INSS”. Como vemos, além de bióloga e psicanalista, ela também gosta de filosofar.

Não há limite para os exercícios intelectuais desses personagens. Suas vidas estão arrasadas, eles buscam às cegas novas alternativas, a chance do recomeço, mas são dotados de um discernimento que, a todo instante, contradiz o estado em que se encontram. Assim, o marido medíocre, incapaz de se autoafirmar, acredita, “de modo intuitivo, […] que cada combinação de impressões, sentimentos e medos só não era totalmente caótica porque estava subordinada a um ciclo físico-psicológico que uma hora chega ao fim”.

Pergunto-me: essas reflexões são fruto de epifanias de genialidade ou os personagens não passam de bonecos de um ventríloquo que não se satisfaz em contar a história e precisa, a qualquer custo, demonstrar seu conhecimento, suas ideias elevadas?

Esse livro impregnado de jargões psicanalíticos e sociológicos soa, portanto, em grande parte artificial – e muitas vezes monocórdio. É verdade, a narrativa retrata um casal sem rumo que chafurda nas próprias frustrações, mas não seria possível um instante de relaxamento, um riso que surgisse a contragosto? Não. O que vemos é a permanente crítica social, às vezes transformada em libelo:

Por todos os lados, via as pessoas sacrificando justamente aquilo que era mais precioso. O crescimento populacional sacrificava o espaço, provocando acúmulo de objetos, de lixo, de prédios, permitindo lares cada vez mais sufocantes, banheiros cada vez menores, salas e quartos cada vez menores; as ruas sacrificavam a tranquilidade, com os engarrafamentos, as filas, as aglomerações; as pessoas sacrificavam sua segurança, mas não apenas a segurança da integridade física, negativa, também uma forma de segurança positiva, que existiria somente em um contexto pacífico, de raízes bem plantadas, da convivência com os mais velhos e com os outros em geral; a equivocada eleição de prioridades sacrificava as melhores qualidades das pessoas e do país. Assim ele chegou ao buraco para descobrir que estava mesmo fadado a terminar um idealista corrompido.

E ainda que, para alguns, essas sejam verdades irrefutáveis, o narrador poderia anunciá-las de maneira menos cerimoniosa, não sob a forma de discursos que pretendem revelar à classe média o caminho da sua nova alvorada, mas nas palavras de certo personagem que, imbuído de tais preceitos, decidisse defendê-los, por exemplo, num simples diálogo.

Há bons momentos, claro, quando o narrador opta por não amordaçar seus personagens e deixa que expressem suas ideias por meio do lirismo ou da agressividade que permeiam a vida de todas as pessoas. Nesses trechos, quando a naturalidade vence o artificialismo, a verdade das relações humanas avulta; e a voz que narra, agora destituída de empáfia, revela-se sutil. É pena que eles não prevaleçam – e que deixar de ser doutrinário seja uma escolha impossível para o narrador de Outra vida.