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POESIA BRASILEIRA Contemporânea SOCIAL CLUB

1.

Nos anos 1960, a poesia ainda era levada a sério no Brasil. Por isso, Mário Faustino podia escrever resenhas dizendo a um poeta qualquer que ele não dava para a coisa; que havia outras atividades nobres e atraentes além da poesia; e que, em suma, o tal sujeito simplesmente deveria desistir de ser poeta. Faustino morreu em 1962. A poesia ainda seria levada a sério nos anos 1970. Mas a partir dos anos 1980, começou um processo de mudança drástico.

Em 1985, terminou a ditadura militar, e com ela a importância política das artes em geral como forma de “resistência” (pois os artistas “de direita” ou da direita ou alienados não eram levados em conta). Em 1989, caiu o muro da Berlim, e com ele a ideia da esquerda como incubadora de uma alternativa real de poder à democracia representativa e ao capitalismo. A esquerda iniciaria sua longa marcha rumo à confusão teórica, ao oportunismo político e à irrelevância histórica.

O fim da “resistência” e das utopias, somado ao esgotamento do ciclo histórico experimental do modernismo, que teve fôlego para perdurar até a época de Faustino, afinal se traduziu e se resumiu, no campo poético brasileiro, pela expressão “poesia de pós-vanguarda”, característica de um “momento pós-utópico”. Ou ao menos foi assim resumido e traduzido por Haroldo de Campos.

Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto totalizador de vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamente ancorado no presente.

Haroldo escreveu a passagem acima em 1984.[1]  Ela seria muita citada, mas talvez pouco questionada. Pois ao definir a “poesia viável do presente” como “pós-vanguarda”, o que pretende é manter a vanguarda, apesar de sua morte histórica, no centro da referência poética. Mas isto é, no limite, “silogístico”. Dizer que a América, depois de Colombo, é pós-colombiana (assim como é pré-colombiana antes dele) faria sentido, se não fosse desnecessário por sua obviedade, pois a chegada dos europeus foi o ato inaugural da construção da América, que sem ela não existiria como tal. Há uma relação genética, de paternidade, entre a América atual e aquele fato. Mas as vanguardas do século XX não mantêm tal relação com a poesia contemporânea. Seria bem melhor se mantivessem. Mas não mantêm.

A afirmação de Haroldo  comporta certo grau de estranheza. Como poderia a poesia atual não ser pós-vanguardista, se o momento vanguardista é passado, e se esse passado se interpõe entre o presente e um passado anterior em que, do simbolismo para trás, a poesia era identificada com certas formas fixas e com certos temas e tratamentos vocabulares poeticamente corretos, abandonados pelo longo momento vanguardista do século XX e depois não recuperados? Se a recuperação tivesse ocorrido, se um retorno à velha ordem poética se sucedesse às vanguardas, estaríamos como na Europa de 1815, quando o Congresso de Viena anulou as conquistas da Revolução Francesa e as mudanças napoleônicas, levando o Velho Continente para um momento não pós, mas contrarrevolucionário. Se este não é o caso, como pode a poesia atual não ser pós-vanguardista, como pretendia Haroldo de Campos?

Porque, se não houve uma contrarrevolução poética, tampouco houve uma verdadeira continuidade da “revolução”. Mantendo a comparação com a política (de onde veio o termo vanguarda), o melhor paralelo talvez não seja com o fim do Antigo Regime, mas com o da civilização clássica. Pois se há alguma continuidade entre o Império Romano e a Idade Média, há muito mais ruptura. Por exemplo, enquanto a civilização clássica era urbana e mediterrânea, na Idade Média as cidades foram virtualmente abandonadas, assim como a centralidade do Mediterrâneo, trocado pelo interior. No período de transição, o das invasões bárbaras e da ascensão do também destrutivo (para a cultura clássica) cristianismo, não houve de imediato uma nova ordem, uma nova forma de governo, mas caos, confusão e anarquia. Como o que aconteceu na seara poética depois do fim da nova ordem revolucionária modernista e vanguardista.

A poesia atual não é, então, verdadeiramente pós-vanguardista, pois o é apenas em termos cronológicos. Ela não aprofunda ou sequer institucionaliza as conquistas da “revolução”, tampouco as “antropofagiza”, como já se disse, com isso se querendo rearfirmar a nobre filiação modernista da poesia atual e, ao mesmo tempo, anular seu caráter amorfo, anêmico, confuso e também irrelevante.

Pois em outra diferença profunda com o momento vanguardista, quando a poesia era cultural e mesmo politicamente significativa, a poesia atual, salvo exceções, não tem relevância em nenhum sentido e em nenhuma direção.

Voltando ao início deste texto, essa é, provavelmente, uma das principais e mais paradoxais causas da anemia conexa da crítica de poesia. Não apenas inexiste um mapeamento sistemático “a quente”, com os incontáveis novos lançamentos poéticos sendo consistentemente analisados, como a crítica sofre de um incontornável “clubismo”: além de reabordar grandes poetas do passado, os atuais “sócios” do “clube poético”, sejam do time dos próprios poetas ou do dos críticos, contentam-se (e como) em se comentar entre si. E sempre seguindo as regras da boa convivência. Afinal, trata-se de um clube.

2.

O último exemplo de uma tentativa sistemática de fazer uma crítica de poesia “a quente foi o de Manoel da Costa Pinto na Folha de S. Paulo (2003-2010). Ou seria, se não se tratasse de uma crítica morna, anódina, com o modelo de uma coluna social, exemplo mais que perfeito da maior praga que assola a crítica contemporânea de poesia, a paráfrase autocorroborada – pela qual o crítico pinça um verso de um poema e o cita como centro de sua “análise”, que não passa de paráfrase do mesmo verso. Assim:

Como “a vida é uma coisa torta”, o poeta não aborda seus temas de forma direta – além de impor certa “tortuosidade” à sua linguagem…

A passagem é falsa: nem o verso nem seu comentário existem, mas fora essa desafortunada circunstância existencial, nada os distingue da forma dominante de crítica de poesia, da qual Costa Pinto é um dos principais expoentes. Não por acaso, tal crítica é sempre uma corroboração das “qualidades” poéticas do autor abordado – pois a paráfrase não pode senão corroborar, a não ser quando usada como deformação irônica. E não é o caso: pois esse tipo de crítica leva a irrelevância muito a sério. Além disso, a ironia é contra o estatuto de boa convivência dos sócios do PBCSC.

Na verdade, tudo é contra o estatuto, além da própria corroboração. Os sócios do clube, portanto, só costumam se armar de brios quando outro sócio é descorroborado. Esse vezo clubista ficou patente há pouco, no episódio mais patético da última FLIP, a festa anual do coirmão CSLBC (Clube Social da Literatura Brasileira Contemporânea), sempre “abrilhantada” por convidados internacionais, e atualmente organizada pelo mesmo Costa Pinto. Este é amigo de Márcio Seligman-Silva, acadêmico brasileiro de respeito, convidado para compor uma mesa com Claude Lanzmann, mais do que respeitável escritor e documentarista francês. Lanzmann se recusou a responder a algumas perguntas do mediador, por um bom e bem explicado motivo: desejava dedicar a ocasião para falar de seu último livro – enquanto Seligman-Silva insistia em abordar outras obras do autor pelas quais tem mais interesse. Tomado de brios pelo “desrespeito” ao seu amigo, Costa Pinto deu então uma entrevista acusando Lanzmann, um judeu, de atitudes nazistas:

É uma coisa nazista. Infelizmente uma pessoa que trabalhou tanto com essa matéria-prima acaba reproduzindo uma atitude dessas. [2]

Normalmente, apenas um ignorantão ou um antissemita cometeria uma estupidez dessas, comparar um intelectual judeu a um nazista, e isto pelo “crime” de recusar algumas perguntas em uma entrevista. Mas felizmente há aqui outra possibilidade: a reação descalibrada de alguém calibrado para sempre agradar aos membros de seu clube, que perde de repente os parâmetros ao se deparar com um comportamento um pouco diferente. Prova de que a reação foi descalibrada está na tentativa perfeitamente vã de desdizer o que disse logo em seguida:

Não quis dizer que a atitude dele é nazista nem equiparei a atitudes nazistas.[3]

Acostumado a vender gato por lebre em sua crítica de poesia invertebrada, o crítico e festeiro literário acredita poder desdizer o que deveras disse simplesmente dizendo que não quis dizer o que disse deveras. Um crítico literário de verdade, cuja profissão é analisar textos, não acreditaria numa “saída” tão fácil. E tão invertebrada.

Outro caso paradigmático de atuação descriteriosa contemporânea é o de Carlito Azevedo à frente da revista carioca Inimigo Rumor. Exemplo cabal está em seu volumoso número 14, todo dedicado ao “poema em prosa”, e motivo de vergonha para o próprio Carlito, que declarou sobre a trajetória da revista:

Gosto de quase tudo, me arrependo de pouca coisa e me envergonho de apenas duas: uma delas foi ter baixado demais a guarda no número sobre poema em prosa.[4]

Trata-se de um hoje tão raro quanto louvável exemplo de sinceridade intelectual. Isto dito, perde muito de sua força pela contradição com a primeira parte do parágrafo (“Gosto de quase tudo, me arrependo de pouca coisa…”): pois em que pese a publicação, ao longo dos anos, de alguns ensaios interessantes e de boas traduções, quanto aos novos poetas brasileiros, sua guarda não foi baixada apenas nesse número. Na verdade, jamais foi erguida.

Para além dos jornais e das revistas literárias, a internet poderia, talvez, ocupar hoje o espaço vago da crítica “a quente”, não fosse o fato impeditivo de a mesma internet ter-se tornado a grande cloaca da mediocridade geral.

[Nelson Rodrigues] dizia que, no seu tempo, os idiotas chegavam devagar e ficavam quietos. O que se percebe hoje é que os idiotas perderam a modéstia. [5]

Perderam a modéstia mas ganharam a internet, onde expõem sua idiotice e sua mediocridade sem pudores e sem limites, notadamente em sites tão cheios de textos e de elogios cruzados quanto vazios de critérios e de qualidade literária. Não importa, pois afinal se trata de uma espécie de mural do clube. E deste se espera apenas que respeite as regras do próprio estatuto, não as medidas da verdadeira estatura.

3.

Esta poesia da presentidade, no meu modo de ver, não deve todavia ensejar uma poética da abdicação, não deve servir de álibi ao ecletismo regressivo ou à facilidade. Ao invés, a admissão de uma “história plural” nos incita à apropriação crítica de uma “pluralidade de passados”, sem uma prévia determinação exclusivista do futuro [grifo do autor].

Na segunda parte de seu famoso parágrafo sobre a poesia “pós-vanguardista”, Haroldo de Campos, ao dizer com perfeita lucidez como ela não deveria ser, acaba por descrever com rara acuidade como ela afinal seria. Poética da abdicação (dos critérios) sob o álibi de um ecletismo não renovador, mas irrelevante e regressivo (de que são exemplo tantos poemas rebaseados no eu lírico), marcada pela facilidade (pois se não há mais critérios, tudo tem igual valor, além de, também, ter valor a priori). Prova maior do domínio da facilidade é o prosaísmo que cerca a poesia por duas pontas: a do “poema em prosa”, que de poema tem apenas o nome, e a da prosa entrecortada e margeada à esquerda, que de poesia tem apenas o margeamento à esquerda. A admissão de uma “história plural” não incita à apropriação crítica, mas inteiramente acrítica, pois acriteriosa.

Nos anos 1960, a poesia ainda era levada a sério no Brasil. Nos anos 2010, a poesia é falsamente levada a sério, pois não tem qualquer ressonância e qualidade.

A ciência tampouco tem ressonância imediata e direta. Pouquíssimos sabem ou podem entender o que se passa nos laboratórios das universidades. Mas a ciência, em forma de tecnologia e conceitos, acaba por se capilarizar, e se constitui, na verdade, em um dos elementos mais influentes da cultura contemporânea, incluindo a brasileira. A poesia não tem ressonância porque não tem relevância.

Não importa. Os poetas seguem defendendo sua obra irrelevante e sua irrelevância falsamente operosa como se algo além de sua vaidade (o mesmo que vanidade, a qualidade do vão, do inútil e do vazio) estivesse em jogo. Ninguém liga para a poesia brasileira contemporânea, com exceção dos próprios poetas e dos críticos de poesia, de quem os poetas esperam toda a corroboração possível, única forma possível de corroboração ante a indiferença do mundo. Daí o modo irascível e irracional com que reagem a muito eventuais críticas que façam jus ao nome. O elogio fácil é uma droga poderosa, pois sendo barata, é farta, e fartamente distribuída: uma espécie de crack da crítica. A crítica que não adula o ego nem adoça a autoimagem deflagra então uma súbita crise de abstinência, ao ocupar o tempo e o lugar do elogio fácil sem produzir nenhum barato.

As artes plásticas não estão melhores do que a poesia. No Brasil, um fazedor de colagens kitsch e neoacadêmicas, neofigurativas e “neo-pós-pop”, diluidor mercadológico de tudo o que medeia entre Hieronimus Bosch e Andy Wahrol, como Vic Muniz, ecoa um mistificador inglês cansado de tentar sequer fingir não sê-lo, vendendo pseudoespantos para a nova burguesia internacional em forma de animais metidos em aquários de formol (Damien Hirst). Mas ao menos as artes plásticas são uma forma de investimento. A poesia não tem nenhum valor inclusive em termos monetários.

Para que, afinal, alguém se daria ao trabalho de se dedicar à crítica criteriosa, se o próprio objeto analisado é irrelevante?

Posso apenas dar uma resposta pessoal. Trata-se de uma recusa de considerar tal irrelevância uma fatalidade, uma necessidade, uma inevitabilidade – enfim, uma antiutopia, uma distopia vitoriosa, porque realizada. Se, com o fim das utopias, o futuro não está mais dado, o futuro não está mais dado. Para o bem e para o mal.

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Notas

 

[1] “Poesia e modernidade: o poema pós-utópico”, Folhetim, Folha de S. Paulo, 14/10/1984.
[2] Fábio Victor (enviado especial a Paraty), “Curador da Flip compara Lanzmann a nazista e depois faz mea culpa”, http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/941591-curador-da-flip-compara-lanzmann-a-nazista-e-depois-faz-mea-culpa.shtml.
[3] Ibidem.
[4] “O caderno poético de Carlito Azevedo”, entrevista a Heitor Ferraz Mello, http://www.cosacnaify.com.br/noticias/inimigorumor/entrevista1.asp.
[5] “‘Idiotas’ de Jobim irrita Dilma, mas é abafado”, http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110702/not_imp739782,0.php.

 


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).