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Poesia em tempos prosaicos

Todos os tempos foram, a seus modos, prosaicos, dirão ao ler este título. E o dirão mal: a poesia é anterior à prosa, em termos históricos (e mais extensa, em termos geográficos). Houve tempos poéticos: a poesia é a linguagem do mito.

Incluindo os próprios mitos poéticos: a poesia não é uma linguagem, mas um “estado de espírito”, e o “Poeta”, um médium da Musa. Uma versão apequenada domina a pálida paisagem da poesia contemporânea: o poeta é um médium de si mesmo. E sua poesia, sua voz mais “autêntica”. O público pouco se interessa – há mais poetas que leitores de poesia –, mas isso nada interessa ao poeta todo interessado em si próprio.

As vanguardas do século XX mataram o velho eu lírico. Mas ele renasceu. O zumbi do eu lírico atende pelo sonoro nome de eu solipsista. Solipsismo (do latim solus [sozinho] e ipse [mesmo]): a crença e a doutrina segundo as quais a única realidade é o eu e suas sensações. Ele soma à incapacidade, à inapetência, à inaptidão e à inação em abordar a grande confusão contemporânea (porque grande e grandemente confusa) à fuga narcísica para si mesmo do cidadão reduzido a consumidor, e do indivíduo encerrado no subjetivismo militante tornado uma pequena ideologia. Por exemplo, identitarismo/transgenerismo: as coisas são o que/como eu sinto que são. Paulo Leminski: “poeta é quem se considera”.

A poesia solipsista é o máximo de separação, de abstração (de abstractio, separação) do mundo que a linguagem verbal, necessariamente semântica – ou seja, referente a algo além de si mesma – comporta. Esse máximo de abstração possível é igual ao mínimo de referência factível. A referencialidade centrípeta da poesia solipsista é mínima, reduzida à pessoa ensimesmada do poeta, que completa assim o ciclo de seu apequenamento histórico a partir da condição máxima de porta-voz da memória da tribo da Antiguidade.

 

O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva […]. (João Cabral, 1998, p. 99)

 

Mas o poema é transitivo. A linguagem poética é morfossemântica. Não existe linguagem verbal abstrata (separada [sic] de um referente), como existe a pintura abstrata ou a música instrumental. O poema é uma semantiforma (manchas de tinta e notas musicais são assemânticas). A semântica de um poema (seus significados e suas relações entre si e com seus significantes) é congênita à sua forma (seus significantes e suas relações entre si e com seus significados). À semântica da poesia solipsista (“intransitiva”) corresponde uma forma poética fraca: uma forma pouco poética. Uma forma pouca. A linguagem abomina o vácuo: a forma poética apequenada tem seu espaço de realização, o poema, ocupado pela prosa (pelas prosas: a poesia em prosa, a prosa poética, a poesia prosaica).

A poesia não preexiste à articulação de certas palavras de certa forma (a poesia não preexiste de nenhuma forma, com o perdão dos tardorromânticos). Poesia é a articulação de certas palavras de certa forma. A dupla articulação linguística (da linguagem verbal) combina unidades menores (fonemas e morfemas [letras]: significantes) para criar unidades maiores (palavras e frases: semantiformas). A poesia é uma desarticulação motivada da linguagem verbal. O poeta é um desarticulador. E um rearticulador. O poeta é um articulador.

A poesia, desarticulada e rearticulada, é medida e descontínua. A prosa, ao contrário, é contínua e desmedida (o que o mero margeamento à esquerda tenta mas não pode ocultar, a não ser para quem quer ser enganado: uma lista de compras não é um poema). Em meus próprios termos, a poesia é a linguagem verbal recursiva discreta.

 

Cada grupo de palavras adquire a condição de uma pequena unidade, que se junta a outras unidades numa cadeia – o que determina sua estrutura, isto é, sua sintaxe. Pois cada novo passo não repete simplesmente o anterior, como um mantra, mas recaptura informações prévias, numa interdeterminação, ou motivação, dos elementos morfossemânticos. Recursividade gerando discrição (discreto significa comedido e descontínuo). Discrição recursiva gerando interdeterminação morfossemântica. Interdeterminação morfossemântica gerando poeticidade.[1]

 

Polimorfismo gerando polissemia, polissemia impregnando o polimorfismo. Multissemantiforma. Prismatismo proteico. A mais radical realização da linguagem poética é a de alguns poemas de cummings. Em “a leaf falls on loneliness”, a discrição é levada ao limite, com os caracteres individuais das palavras (escolhidas por conterem elementos morfossemânticos significantes-significativos) isolados (ou quase), em divisões dispostas verticalmente (a(l/e/af/fa/ll//s)/one/l/iness). Cada caractere ou par ou trio é um verso, no sentido etimológico, algo (uma unidade) que retorna (retornar, em latim, é verto – cujo particípio é versus). O polimorfismo polissêmico emerge da versificação das palavras: a letra l, por exemplo, torna-se, pelo mero isolamento, também o numeral um, enquanto a palavra one emerge da divisão de loneliness. A solidão dos caracteres mimetiza a solidão da microcena de outono, personificada por uma folha (que cai – e gira em af/fa).

As prosas “prismáticas” de Proust e Rosa são exceções (notórias por sê-lo), e assim confirmam a regra do caudal linear da prosa, que é a codificação escrita da fala (da narrativa oral), linear-temporal. Poesia e prosa são mutuamente excludentes: não se pode ser discreto, comedido e recorrente e, ao mesmo tempo, contínuo, desmedido e temporal-linear. Não se pode retornar se segue sempre em frente. Não se pode ser polimorfo sendo linear. Quanto mais prosaico um poema, menos polimorfo/polissêmico. Menos poético. A “prosa” sobre a pessoa do poeta e suas circunstâncias da poesia solipsista se materializa na poesia pouco poética da poesia prosaica.

Paradoxalmente, existe a boa poesia em prosa – ainda que seja exceção e que, na verdade, como regra dessa exceção, seja prosa poetizada (não existe prosa em poesia). Paralelamente, quanto mais em prosa um poema, menos em poesia. Cabral:

 

O prosador tenta evitar
a quem o percorre esses trancos
da dicção da frase de pedras:
escreve-as em trilhos, alisando-a,

até o deslizante decassílabo
discursivo dos chãos do asfalto
que se viaja em quase-sono,
sem a lucidez dos sobressaltos.

 

O prosador tenta evitar os trancos (e os barrancos, como os do enjambement) da atravancada linguagem poética. A poesia é como um caminhar num riacho pedregoso. Vai-se devagar, marcando o pé a cada passo e entre recuos. Por um riacho pedregoso, caminha-se muito poeticamente.

Quanto mais verdadeiramente poetizada a prosa, menos fluente. É uma das grandes ironias de Joyce (que delas era pródigo) ter iniciado (e terminado, circularmente) o Finnegans Wake com a palavra riverrun, que é correr duas vezes (o rio em si e o verbo). Pois sua prosa não corre, não flui. É a mais pedregosa prosa da história literária. Não por quaisquer rebuscamentos sintáticos, sequer por seu multilinguismo, mas por ser radicalmente (até a raiz de seus vocábulos e de suas relações-referências morfossemânticas) poética. E por ser densamente re-corrente (o que não seria má tradução de riverrun). Finnegans Wake não é prosa, é poesia épica (poesia narrativa, à la Homero). Por isso é “difícil de ler”. Em primeiro lugar, ler um poema em ritmo de prosa não funciona, porque o poema atravanca a leitura, que então briga com o que é lido. Em segundo lugar, não é fácil ler um poema compacto de centenas de páginas, enquanto é extremamente fácil ler uma verdadeira prosa extensa, muitas das quais são ditas “page-turner”, “viradoras de página”: ninguém nunca o disse de um poema (mas se diz que uma prosa, um conto, um romance, se pode “contar” [parafrasear], enquanto um poema tem de ser “recitado”, palavra por palavra: semantiformas). Finnegans Wake não é prosa: é poesia linearizada em prosa (sob a dupla tensão concorrente da discrição da poesia e da extensão da prosa), portanto, de certa forma, poesia em prosa.

Diferentemente, no solipsismo prosaico se sobrepõem, se somam e se alimentam dois prosaísmos: o dos significados e o dos significantes. Multiplicam-se os prosaísmos e suas inter-relações formais (a penúria delas) e semânticas (sua pletora). A poesia solipsista-prosaica dilui a anomia em anemia.

 

[O] “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar. (Cabral, opus cit., p. 101)

 

A síntese de todo esse quadro, feita por Cabral em duas conhecidas conferências (1952-1954), divide-se em dois aspectos principais. O primeiro se refere ao abandono, pelos poetas, da figura do leitor (derivado, entre outras coisas, do ultrassubjetivismo simbolista, origem do hiper-individualismo idiossincrático moderno e modernista, e da decrepitude das formas poéticas tradicionais, origem dos experimentalismos distanciadores do público médio) e ao seu afastamento da cena do mundo.

 

O espetáculo da sociedade aparecerá [ao] jovem autor coisa muito confusa e ele não saberá descobrir, nela, a direção do vento. Por isso, preferirá recorrer ao espetáculo da literatura. A partir da vida literária que se está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. O confrade lhe é mais real do que o leitor. Ora, no espetáculo dessa vida literária ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pessoais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obsessiva, grupos de artistas com que identificar-se e a partir de cujo gosto condenar todo o resto. (idem, pp. 56-7)

 

O segundo aspecto trata das consequências para a própria linguagem poética.

 

[Hoje] não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos foram os artistas capazes de fundar um tipo de expressão original. [A] criação de poéticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos à especialização de alguns de seus aspectos, pois, em última análise, a criação de poéticas particulares não passa do abandono de todo conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especialização significa um aprofundamento, absolutamente necessário se se quer fazer a arte avançar. Essas pessoas parecem contar com uma idade futura, em que todos esses aspectos particulares serão aproveitados numa síntese superior. Entretanto, creio que esse aprofundamento é apenas aparente. Desde o momento em que arte se fragmenta, desde o momento em que sua máquina é desmontada, sua utilidade, a função que aquela máquina exercia, ao trabalhar completa, logo desaparece. Os que a desmontaram têm agora consigo peças de máquinas, pedaços de máquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele serviço a que a máquina inteira estava habilitada. […] Portanto, o que verdadeiramente existe no fundo dessa fragmentação é o empobrecimento técnico. (idem, pp. 62-4)

 

Se esse era o quadro em meados do século XX, no início do século XXI ele é outro, porque o mesmo, porém pior.

Algumas coisas, então, se explicam, ainda que não se justifiquem. A enorme quantidade de poetas e de poemas, e sua imensa irrelevância. Sua multiplicação (da irrelevância, de poetas e da irrelevância dos poetas). A persistência na pequenez (os poetas não buscam nada além de reafirmar-se, logo, de reafirmá-la). A colossal indiferença do público leitor: os únicos poetas populares hoje no Brasil são Chico Xavier e Paulo Leminski (ambos mortos). Parnaso de além-túmulo, do primeiro, sempre neopsicografado e reeditado, tem centenas de milhares de exemplares vendidos (portanto, a poesia natimorta vai bem de saúde). A popularidade de Paulo Leminski decorre, em parte, de uma grande mistificação do “poeta pirado”, do poeta “safo” (ainda que não sáfico), do poeta “antissistema” etc., e em parte de circunstâncias particulares da obra: décadas de dificuldades das herdeiras para se poder republicá-la alimentaram certa “demanda reprimida”, enquanto o espalhamento dos poemas pela internet realimentava a mesma demanda. Não por seus méritos, mas ao contrário: Leminski, em seus próprios termos, unia o capricho ao relaxo. Sua popularidade nas redes (e nas livrarias), no espírito do tempo, deve-se ao segundo.

A poesia lírica (que é toda poesia atual) não morreu, como morreram factualmente a épica e a poesia dramática. A poesia lírica definhou até o ponto limite da sobrevivência mais desvitalizada. É essa sombra de si mesma, sombra que vagueia, vaga, sem corpo, ou no lugar de seu próprio corpo, de sua presença corpórea, de seus músculos, de sua ossatura, de seus pulmões, de sua voz audível, esvanecidos, que hoje atende pelo sonoro, mas oco, como um eco, nome de poesia brasileira contemporânea.


[1] L. D. “A razão da poesia”. In Eutomia – revista de literatura e linguística. UFPE, julho de 2012, n. 9. Disponível em <https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/EUTOMIA/article/view/883/665>.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).