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RELENDO CARLITO AZEVEDO ou UM CASO EXEMPLAR DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

1

Logo que surgiu, o poeta carioca Carlito Azevedo passou a se destacar em meio à massa de versejadores que voltaram a assolar o país a partir dos anos 90, livres, ao mesmo tempo, das demandas vanguardistas e da presença intimidante dos gigantes do verso moderno brasileiro (além de chancelados pela geléia geral do “pós-modernismo”). [1] Mas em que, precisamente, se destacaria aí Carlito Azevedo? Em ser o mais competente no exercício das principais características de seus pares, como a diluição, o preciosismo, a autossatisfação, a pequenez do foco e o minúsculo do vigor.

Porque apesar da globarbarização (apud Tom Zé) político-econômico-social, que tem sua contraparte cultural na globanalização (apud Francisco Faria), parece ser aceitável os poetas de cá versejarem como se estivéssemos no Rio de 1960. Naquele país em que, justamente por causa da barbárie paroxística “lá fora”, o Brasil da redemocratização, após a Segunda Guerra, parecia o paraíso reencontrado em um mundo que recém fizera emergir à superfície o próprio inferno. Acontece que o oceano Atlântico encolheu bastante desde então, e o Brasil foi definitivamente invadido pelo mundo.

Nada, porém, que impedisse Carlito Azevedo de se debruçar sobre as almofadas de seu divã, e dali concentrar seu olhar nas banhistas de Copacabana – atitude, em si, não somente compreensível mas também louvável, e mesmo invejável, não fora através de um surpreendente pastiche de tardo-modernismo com parnasianismo redivivo (ou redimorto). Devidamente aplaudido por incontáveis críticos, incluindo alguns que viram precisamente nesse debruçar – e nesse pastiche – a suprema virtude poética contemporânea.

De fato, notadamente à época da publicação de sua antologia Sublunar (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2001), instaurou-se em parte da crítica uma espécie de corrida, a ver quem perpetrava a análise mais satisfeita da obra de Carlito Azevedo. A palma coube então a um texto em que tudo é concedido, e nada é compreendido. Mesmo porque, nele não se encontra uma só vírgula de análise de poesia propriamente dita:

Sobressai o olhar contemplativo. […] Há um gosto manifesto pelo imaginário requintado, por vezes exótico. […] Uma flor no quarto, a fumaça da xícara de café, a figura de um jarro são alguns detonadores da reflexão poética. […] Prevalece um refinamento meditado. […] Há miniaturas delicadas. […] Coisas simples, como o encanto da paisagem, aliado ao bem-estar sensorial da habitação e do convívio, levam a um sentimento de reconciliação, numa efusão com os amigos, o mar, a lua e a casa. […] Os poemas sugerem evocações do passageiro, a emitir sinais de alumbramento e enigma. (Viviana Bosi, “O olhar extático: do cotidiano ao supra-real”, Folha de São Paulo, Mais!, 20/01/2002).

Resta saber o que é mais irrelevante: tal poesia ou tal crítica.

Em conversa displicente com amigos e familiares, ao comentar o tempo, ou o atraso do ônibus, cada um de nós é dramaturgo, ou poeta em potencial. […] Só sobra para o artista o opaco e enigmático dia-a-dia da sua vida. […] Como a poesia de Bandeira, a de Carlito é também finissecular. Vale dizer, respira “maldoror”, “mal daurore”, melancolia. Diante dos mais vociferantes instrumentos cirúrgicos, o pulmãozinho do rouxinol suspira na mesa de operação e nos dá até logo. Com Sublunar, Carlito Azevedo afirma-se como o aguardado poeta pós-cabralino. A nossa mais legítima voz pós-moderna. (Silviano Santiago, “As ilusões perdidas da poesia (antologia mostra que Carlito Azevedo é a estrela de uma geração para a qual só restou dramatizar o insignificante e o dia-a-dia)”, Jornal do Brasil, 15/12/2001)

Não bastasse ter-se tornado cada vez mais comum se baratear João Cabral, agora também vamos de Bandeira (de Drummond nem vale a pena falar: todo mundo, Carlito Azevedo inclusive, bien sûr, já é devidamente “drummondiano”). Em todo caso, o que interessa aqui é observar que sua “poesia finissecular” “suspira com um pulmãozinho de rouxinol”. De fato. Nesta alusão (a um poeminha do autor), o crítico é ao mesmo tempo lúcido e preciso. Mas não dura muito. Na verdade, não dura nada: afinal se trata justamente de louvar esse suspirar de pulmãozinho de rouxinol.

Todos os pássaros de pequeno porte são bons para detectar quantidades ínfimas de gases venenosos, e por isso usados em minas e laboratórios. Ocorre que são bons porque, na presença da mais mínima quantidade de um gás venenoso, imediatamente morrem. Morrem, assim, uma morte muito mais útil do que a vida de rouxinoizinhos humanos que, além da voz fraca e de uma visão de mundo do tamanho de seu dia a dia insignificante, nada mais têm a oferecer aos tempos perigosos e dificilmente compreensíveis do início do século XXI (imperdoavelmente, os dois textos acima são posteriores a 11 de setembro de 2001; imperdoavelmente, não porque se deva exigir, apesar de tudo, que a poesia trate sempre dos grandes temas da época, mas porque louvar que trate de temas ínfimos de modo ínfimo parece um pouco demais).

Em todo caso, pássaros sabem cantar. Já poetas como Carlito Azevedo (pois não se trata de um caso singular, mas exemplar), além de não terem fôlego para glosar o mundo contemporâneo, não têm os meios para encantar o mundo da linguagem. Senão, vamos afinal à obra, que se inicia com Collapsus linguae.

 

2

Collapsus linguae (Rio de Janeiro, Lynx, 1991) é, sob certos aspectos, o melhor livro do autor. O que, neste caso, não é necessariamente positivo. Porque um dos elementos dominantes da recepção de um primeiro livro é ser um primeiro livro. Pois se alguém começa bem, em que pesem todos os defeitos comuns às estréias – influências marcadas até a imitação, indefinição de estilo etc. –, relevam-se tais defeitos em nome de sua superação futura, trocados por qualidades novas. Mas se, ao contrário, esse primeiro livro se revela afinal o melhor do autor (como se constatará), a condescendência prospectiva quando da estréia há de dar lugar ao rigor retrospectivo. Portanto, agora se pode – e se deve – afirmar que o melhor livro do autor está eivado, ora, de influências marcadas até a imitação, de indefinição de estilo etc.

Há sub-Augustos de Campos (“Traduzir”, “D´après Grosjean”), sub-Pignataris (“Grafito semiótico” – com direito a trocadilho característico do pior concretismo), sub-Cabrais (“Uma outra prosa”), sub-Oswalds (“A situação atual da poesia no Brasil”), entre outros subs. Há dispensáveis metalinguagens déjà vu (“Da inspiração”). Há pseudoexperimentalismos (“Langue d´oc”). E há, naturalmente, vários exemplos dos defeitos próprios do autor, que tomarão corpo e lugar nos livros seguintes – transformando, assim, esse livro em seu melhor.

Refiro-me, especificamente, a certo kitsch feito de prosaísmo, de francesismo (aqui ainda restrito às epígrafes), de segunda pessoa do singular e do (mau) gosto por palavras “literárias”, “raras”, “nobres”: “lábios-lis” (“Na noite gris”, p. 20), “cinábrios”, “olhos castanho-damasquinados” (“Pequena paisagem”, p. 28), “constelário”, “fremir” (“A uma passante pós-baudelairiana”, p. 32-3), “fibrilas”, “xistosidades” (“Fábula (real) dos lagos do México”, p. 50).

Não obstante, Carlito Azevedo possui uma incomum e surpreendente capacidade de angariar elogios. O que talvez se explique, ao menos em parte, por muitos dos elogiadores pretenderem dar a ver, não tanto a obra em si, quanto algum aspecto seu que, por qualquer motivo, lhes seja caro, ao que a poesia de Carlito Azevedo se presta maravilhosamente. Por exemplo, no caso do poema assim descrito pelo concretista histórico José Lino Grünewald na “orelha” do livro: “Um dos pontos mais altos – concretos – da poesia recente: o poema ‘Traduzir’. Talvez seja o momento de maior invenção do livro”.

 

 

Pena que, na verdade, tal “ponto alto”, “concreto” e “inventivo” da “poesia recente” não passe de uma imitação despudorada de Augusto de Campos. Pois é deste uma longa série de poemas que chamo de “aquadradados”: nos quais todas as linhas têm o mesmo número de caracteres, resultando então em manchas quadradas ou retangulares. Nesses poemas, Augusto de Campos, depois da eliminação dos espaços entre as palavras, lhes faz incidir cortes arbitrários, “aquadradando” o texto: toda a semelhança não é nenhuma coincidência. Além do mais, ele normalmente restringe os textos de seus poemas “aquadradados” a frases únicas repletas de relações paronomásticas: “pensa no quase amar do quasar quase humano” (“O quasar”); “excesso de exser poesia afazer de afasia” (“Afazer”). Carlito Azevedo: “duas linguagens diferentes uma sonante & a outra ausente lua minguante lua crescente”.

Nos piores momentos dessa série, Augusto de Campos intercala arbitrariamente elementos iconizantes aos textos dos poemas “aquadradados”. Carlito Azevedo, portanto, copia-o tão perfeitamente que lhe copia mesmo os defeitos, pois os parênteses foram aqui literalmente enfiados goela abaixo do texto, não tendo com ele qualquer relação estrutural, mas apenas temática (isto é, “anedótica”): estão ali porque parênteses parecem luas, e o poema se refere à lua. Enfim, Carlito Azevedo decidiu decorar o poema com um parêntese para cada fragmento de três caracteres de sua frase, do mesmo modo que poderia haver dois parênteses ou nenhum (os parênteses mudarem de posição relativa dentro de cada fragmento, ao longo das linhas, apenas piora o caráter arbitrário da decoração lunescente – assim como é arbitrária a divisão da frase em fragmentos de três caracteres, em vez de quatro ou seis, pelos quais também é divisível).

No entanto, há em Collapsus linguae um poema que se sobressai, “Estragado” (p. 15), no qual à dicção coloquialista, à linguagem modernista dos versos livres e brancos (além de curtos) e a tudo aquilo que não tem (os defeitos citados), se soma certo mau humor informado contemporâneo:

No jardim zoológico
um ganso

as patas afundam na lama
e ele imperial
como uma macieira em flor

mas está estragado
como qualquer um pode ver
está estragado

pensa que foi para isso
que o resgataram do dilúvio

mas não

resgataram o signo
estragaram o ganso

Mas se tal dicção faz aqui a sua estréia, também aqui faz a sua despedida. E despedida definitiva, a ponto de o poema não constar de Sublunar, antologia selecionada pelo próprio autor. Como também se despedem os pruridos “experimentalistas”. O que não se despede, pois veio para ficar, é a falta de pudor beletrista – na qual, portanto, submergiremos no seu segundo livro.

 

3

As banhistas(Rio de Janeiro, Imago, 1993), a partir desse título que lembra mais de um quadro francês do fim do século XIX, tem a pretensão de ser sério, importante, “nobre”, “sofisticado”. Portanto, mistura prosaísmo, alta cultura francesa, segunda pessoa do singular, vocabulário preciosista e preocupações de gabinete, como se estivéssemos todos a bordo do Titanic – antes do naufrágio, naturalmente. Antes do naufrágio do Titanic ou do positivismo lógico, tanto faz. Antes, em suma, da Primeira Guerra, e do colapso do sonho burguês de um mundo razoável e perfumado. Portanto, eis como o livro começa:

A flor alvacenta do
damasqueiro, o seu
fruto aveludado e a
haste sinuosa… [2]

Mais de um crítico se deleita com os cortes de Carlito Azevedo. Talvez tenham esquecido que isso faz parte do bê-á-bá do modernismo. Além do mais, há uma tradição brasileira moderna de cortes bem mais significantes do que os praticados por ele (como os de “Bestiário para fagote e esôfago” de Augusto de Campos, 1955), o que os torna apenas o que são: um recurso comum da linguagem poética contemporânea. Se outros, ainda mais conservadores, os usam menos ou mais conservadoramente, não é tanto mérito de Carlito Azevedo quanto demérito dos demais. After such knowledge, what forgiveness?.

De todo modo, em termos morfosssemânticos, em apenas quatro versos curtos temos “alvacenta”, “damasqueiro”, “aveludado” e “sinuosa”: mais adjetivos – e “literários” – do que substantivos, muita descrição e pouca materialização. Para isso, existe a prosa. De fato, se a sintaxe é aqui correta, não é nada poética. Porém poderia sê-lo, se fosse, por exemplo:

a flor quase branca
do damasqueiro
o fruto, veludo na
haste sinuosa

Além de uma maior substantivação, transformar-se-ia a mera posição central de “damasqueiro” em situação bivalente, pois conectado agora tanto a “flor” quanto a “fruto” – como, não por acaso, na realidade. Mas deixemos de exercícios. Se o livro assim começa, eis como prossegue:

aproxima-te
agora desta última:
ela
esta que não está na tela:
ela
aproxima-te e te detém longamente
deixa que isso leve toda a vida – também
cézanne levou toda a vida tentando
esboçando (obsedado em papel e tinta
e lápis e aquarela e tela e proto/tela)
estas banhistas fora d’água como peixes mortos na lagoa
ou na superfície banhada de tinta
– uma tela banhada é uma banhista hélas! e não usamos mais modelos vivos
[…]
antes de te misturares ao vendaval da vendas
à ânsia de mercancia
cola o teu ouvido ao dela:
escutarás o ruído do mar
como eu neste instante
na ilha de paquetá
ou na
ilha de ptyx? [3]

A “vocação pictórica” da poesia de Carlito Azevedo é conhecida, pois cantada e decantada pela crítica. Porém se trata, na verdade, de mero “pictorismo” conteudístico, isto é, o vezo de fazer exaustivas referências ao universo da pintura, sem que disso se materialize alguma informação nova sobre a mesma – como em “No centenário de Mondrian” de Cabral – ou qualquer formação poética – como na relação da poesia visual com as artes gráficas (a exceção que confirma a regra é o poema “mira”, de Sob a noite física [p. 31], cuja descrição da sintaxe de Mira Schendel tenta dialogar com ela). Para além desse vezo, o que vale então ressaltar aqui, em meio ao prosaísmo irrefreado e ao francesismo afetado (cézannes e helás e ptyx mallarmaicos), é esse “vendaval da (sic) vendas” em plena “ânsia de mercancia”.

Pois não saberá o autor, apesar de tão “poético”, que não apenas o campo semântico e a forma, porém a própria história de um vocábulo lhe dá – ou tira – significado? Quem acreditaria num verso erótico que usasse a palavra nádegas? E por que ninguém acreditaria? Porque nádegas, em português do Brasil, conota distanciamento, perífrase, higiene, pudicícia, hipocrisia. Apesar de denotar a mesma bunda de sempre. “Ânsia de mercancia” é tão “forte” para se referir à barbárie do cidadão reduzido a consumidor que é como um verso pornográfico escrito por um impotente. Claro que o advérbio e o tempo verbal só pioram a coisa: “antes de te misturares” pressupõe que alguém hoje possa, bastando fechar a porta do salon, ou indo para trás de um biombo de seda, se isolar da “mercancia”. Porém a “mercancia” está no interior das casas, e dentro das cabeças “warholianas”, no âmago da psique de narcisistas-voyeuristas (e não voyeurs) que vagam como zumbis entre a sala e a cozinha, ao ritmo da TV, como entre a casa e o shopping. Sigamos também nós:

o melhor amor, contra naturam
ama-se
por isso amo (carícia em
riste) por isso amas (não asas,
azagaias): corais no corpo contra
o tédio do amor (essa mistura de
torpor, gaia inconsciência e
palavras em estado de
ronsard) [4]

“Palavras em estado de ronsard”?! Imagino que o poeta pretenda aqui ser antilírico: “ronsard”, portanto, há de ser Pierre Ronsard, famoso pela poesia amorosa, e então listado nos itens do “tédio do amor”: porém poesia é forma poética, e a forma, ou seja, a sintaxe, o vocabulário, a pessoa verbal, tudo aqui conspira contra o pretendido antilirismo meramente semântico do poema, de modo que o que se obtém, afinal, não é antilírico, mas pró-equívoco: pois estamos em meio a rimas como “amor / torpor”, e mais “azagaias”, e “gaia”, e “contra naturam”… As únicas palavras justas de todo esse emaranhado são, sem dúvida, “tédio” e “torpor”.

pelo crepúsculo torna-se
um imenso torso (imerso
em vãos de luz tamisada)
de jeune-fille en fleur [5]

Trata-se de uma árvore. No Rio de Janeiro de hoje, não na Paris da belle époque. Acredite quem quiser. Ou puder:

Pistilo em maio: já viu?
ah o anti-artesanato furioso dos
ferrões (‘faut cultiver as fiorituras
das abelhas sobre flores equilibristas)…
Em verdade, aqui, neste jardim, entre
tânagras de cílios de terracota e a
tauromaquia dos espinhos…[6]

Pistilo em maio”?! “O antiartesanato furioso dos ferrões”?! “‘Faut cultiver as fiorituras das abelhas”?! “Sobre flores equilibristas”?! “Entre tânagras de cílios de terracota e a tauromaquia dos espinhos”?! É isso mesmo? Mas como, se não entendo nada?

Em todo caso, o poema mais paradigmático do livro ainda é “O monograma turqui”(p. 50). Desde o título: nada poderia ser mais “de gabinete”, cheirar mais a mofo, a afetação e a falso dandismo extemporâneo do que a junção de monograma, que evoca nobilidade e heráldica, com turqui, certo tom opaco de azul escuro, cujo nome evoca o Oriente. Portanto, adentrando o poema, logo nos deparamos, numa prosa flácida, com “persiana” (turqui, Turquia, persiana, Pérsia), “borboleta”, “peso metafísico”:

Viu-se
embaraçada nas
lâminas da persiana
uma borboleta (seu monograma
turqui
como um peso metafísico
impresso sobre as asas parecia
hesitar entre o sol de fora e a
mornidão de dentro) eu
e
você paramos para vê-la mas
de modo algum solícitos […]

Para acabarmos, vários versos depois, e com direito a um tanto de segunda pessoa do singular, num volume de Wordsworth que não deveria ter sido aberto:

nada
além de dez segundos e
já faz tanto tempo que
jamais lembraríamos não
fora reabrires
(e diga-me agora: para quê?)
um antigo wordsworth
e
veja!
o monograma
turqui

Nada / além de dez segundos e / já faz tanto tempo que / jamais lembraríamos não / fora reabrires” é prosa ruim, truncada, com excesso de palavras e escassez de precisão: por exemplo, o texto pede, depois de “nada além de dez segundos”, e há tanto tempo, em vez desse cacofônico “já faz” (que pretende ser uma anáfora de “jamais”, no verso seguinte, mas imperitamente). Além do mais, há o problema da cena narrada: pois tudo não passa de uma borboleta presa por dez segundos numa persiana, em algum lugar morno (sem dúvida), e tempos depois revista num volume de Wordsworth que não deveria ser aberto. Por quê? Porque seria um mau poeta? Trata-se de uma espécie de crítica? Uma citação? Ou será porque a malfadada borboleta terminara ali esmagada, e isso horroriza as personagens? Mas, para tanto, alguém devia ter aberto o livro antes, no dia em que a borboleta azarada prendeu-se na persiana e, então, também dentro do livro. Por isso o “reabrires”? Mas se o casal estava lendo Wordsworth aquela tarde, por que nada é dito a respeito? Tudo isso seria preocupante, não fosse irrelevante.

Seja como for, mantendo perfeita homogeneidade discursiva, os títulos das partes do livro são “As banhistas”, “Gnaisse”, “Contra naturam”, “A lâmina glauca (rasgaduras de água)” e “Agulhas de amianto”. Eis aqui, concentrada, a arte de nosso poeta: mesmo quando, depois de todo esse enjoativo beletrismo, usa uma palavra como amianto, ela vem ao lado, não de farpa ou de lasca, mas de agulha (a despeito de “agulhas de amianto” ser uma fórmula consagrada). Pois Carlito Azevedo faz poesia como certas senhoras fazem tricô:

Órion
desabalada
deixando cair
os pingentes de
sua écharpe
sobre a água
de outra
estrela [7]

Echarpe, sem nenhum acento e com todas as letras, já está lexicalizada há muito tempo, mas Carlito Azevedo, evidentemente, prefere a forma francesa. Lancemos, portanto, a écharpe por sobre os ombros, e saiamos da praia très chic de As banhistas para nos pôr Sob a noite física (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996).

 

4

A via-láctea se despenteia. [4]

Este é, portanto, o verso que abre o livro – depois de uma epígrafe, bem, de Pablo Neruda (por que não de Thiago de Mello, produto genuinamente nacional?). E aqui Carlito Azevedo supera Bilac. Para nosso maior parnasiano, podiam-se ouvir estrelas. Já Carlito Azevedo lança uma galáxia no toucador. Tal verso sintetiza toda uma estética e toda uma visão de mundo: para Carlito Azevedo, que usa binóculos invertidos em tempos de telescópio Hubble, galáxias reduzem-se a um amontoado histérico de cabelos humanos. Mas suas prosopopéias não param por aí. Eis, então, como termina o poema: “século convulsivo”. Isto é má poesia não apenas pela tremenda banalidade (afinal, trata-se do século XX). É má poesia porque é um uso imperito da figura de linguagem. Ora, “século convulsivo” pretende ser crítico. Mas ao adotar a prosopopéia, Carlito Azevedo retira aos homens a posição de sujeito, logo, de agentes da barbárie, e reduz tudo a uma abstração. Quem tem culpa se um “século” dá para ser “convulsivo”? Afinal, talvez o coitado sofra de epilepsia. Já se for convulsionado, por exemplo, por Auschwitz, Hiroshima, aids etc., a coisa (e a poesia) mudam de figura. Mas não mudam.

Depois de começar com os versos “literários” de “O menino passou na ventania / o momento passou de epifanias”, “Ao rés do chão I” (p. 15) apresenta um belo dístico central: “É, doendo, o tempo, essa doença / da infância, a gerar velhos de nascença?”. Mas apenas para que, ao rés do chão do poema, a coisa toda desande de vez, no beletrismo final de “(ciscos de água luzindo nos lancis) / relembrem, extraluzes, o céu gris?”. “Céu gris” por “céu cinza” ainda é aceitável, dependendo do contexto do texto. Ocorre que lancis é o plural de lancil, forma “literária”, “nobre”, “rara”, para o popular meio-fio. E o poema se chama “Ao rés do chão”. Um poeta que realmente dominasse seu ofício, em vez de se deixar dominar pelos fogos de artifício das soluções “poéticas”, terminaria necessariamente, em vez de lancil, com a palavra meio-fio (e sem perder a rima): palavra chã em todos os sentidos, que ocuparia uma posição basal, concentrado e agregando-se significados pela própria posição no poema – o qual, circular, terminaria pela materialização de seu título. Falando em círculos,

A manhã e alguns atletas desde cedo que estão dando voltas – à Lagoa.[9]

Além do habitual prosaísmo, há aqui um claro exemplo de quanto Carlito Azevedo oscila, indefinido, entre o tardo-modernismo e o parnasianismo redivivo. Já faz tempo, quase um século, que Mário de Andrade, dando um “pito” em Drummond acerca de um poema em que pessoas chegavam “à estação”, disse-lhe numa carta: ”Não escreva como os portugueses escrevem, mas como os brasileiros falam!”. [10] De fato, no Brasil ninguém chega à estação – mas na estação –, assim como não se dá voltas à lagoa. Mas talvez se desse, pelos idos de 1870…

Cai o pano
(cai silêncio
no piano)
Cai o pano
(onde estamos?
cotidiano) [11]

A depreender do título, o poemeto se refere ao balé Coppélia, estreado, de fato, naquele ano. E num ambiente fin de siècle, com uma dama de saia rodada e anáguas abanando enfaradamente um leque, semelhante monólogo seria bastante convincente: “Onde estamos? Cotidiano…. Mas no cotidiano de hoje, ao qual a situação de espectador e o poema pertencem!? Com o poema seguinte, pelo menos, no mínimo conseguimos chegar aos anos 20:

[…] o assim chamado
belo
hoje queira seguir abrigando
novos territórios
e eu mesmo
geralmente o prefira convulsivo-ou-não-será […] [12]

Pois se trata de citar, ainda que para falseá-lo, André Breton: “A beleza será convulsiva ou não será.” Vejamos então a que tipo de beleza convulsa se refere:

Severo e estranho rumo
conduz-nos ao mais puro
prazer: roçar a pétala
da margarida-pérola,
luzente, eletrizando-se
no atrito entanto doce… [13]

“Roçar” a pétala de uma margarida que, não bastasse sê-lo, ainda é “pérola”, em meio a um bem arranjado buquê de hexassílabos rimados, adornados por um vocabulário “poético” (severo, puro, luzente, entanto) é então “o mais puro prazer”? E não só puríssimo, como também “eletrizante”? Breton, aqui, escreveria um manifesto. Já Rimbaud comentaria, breve, como num jantar dos Villains Bonshommes: “Merde!”. Porque, se fosse para ser mais detalhista, eis o que ele diria ao poeta a propósito de flores – e, mais especificamente, de margaridas:

Et de lourds papillons d’eclat
Fientent sur la Pâquerette.

De fato, estes são versos (47-8) de “Ce qu’ont dit au poète à propos de fleurs” (“O que se diz ao poeta a propósito de flores”). Ou seja: “Grandes borboletas brilhantes / Defecam sobre a margarida”. Rimbaud é o homem que quis tornar-se vidente. Carlito Azevedo, dando enfim sua grande contribuição à história literária, o fez consegui-lo. Pois “A margarida-pérola” é em versos de seis sílabas. E eis o que escreveu Rimbaud em outra passagem (vv. 69-72):

Mais, Cher, l´Art n´est plus, maintenant,
– C’ est la verité – de permettre
À l’Eucalyptus étonnant
Des constrictors d’un hexamètre.

[Não quer mais a arte, querido,
– é verdade – que permitamos
ao impressionante eucalipto
os constritores de um hexâmetro.]

Parece porém que Carlito Azevedo, se lesse aqui “eucalipto”, leria eucalipto, e apenas eucalipto. Portanto, haveria de crer que, se mudar de vegetação, a lição de Rimbaud já não se aplica. Pois só isso explica encontrarmos, ora, ainda mais flores enfeixadas em versos de seis sílabas: [14]

Quer ir além do corpo?
lá onde aéreas pétalas
de nada e de torpor?
O olhar pára, decifra,
oculto entre vermelhos,
um perfume em Saxífraga. [15]

Quer ir além do preciosismo? Eis o que significa saxífraga, segundo o velho Aurélio: “O gênero-tipo das saxifragáceas, que abrange plantas herbáceas, ger. perenes, que em sua maioria habitam as regiões árticas e temperadas, e dotadas de exuberantes flores pentâmeras e folhas ger. basais, agrupadas em moitas”. E isso em meio a torpores, olhares, vermelhos, perfumes, além de anteposições “literárias” de adjetivos (“aéreas pétalas.”). Já o mundo, de um jardim idílico, só guardou mesmo o adubo – como sabem há muito os poetas que merecem o nome.

– En somme, une Fleur, Romarin
Ou Lys, vive ou morte, vaut-elle
Un excrément d’ oiseau marin?

[– Em suma, uma flor, rosmaninho
Ou lírio, morta ou viva, vale
um excremento de ave marinha?]

Seja esse poeta Rimbaud ou Cabral:

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer.

Não faltam, porém, como já referido, críticos que apontaram em Carlito Azevedo esse ou aquele aspecto “cabralino” (desde a morte de Cabral, não faltam críticos apontando nesse e naquele versejador aspectos “cabralinos”). No entanto, isso é ofender Cabral e a verdade. Pois nem Carlito Azevedo, que publica livros repletos de buquês poéticos, nem seus pares, que publicam livros com títulos como Saxífraga (pois ali se trata de uma homenagem afetada ao livro homônimo, e de fato bastante perfumado, de Cláudia Roquette-Pinto), podem ter qualquer coisa a ver com o homem da “Anti-ode”.

Verdade que alguns, lucidamente, limitam tais comparações a aspectos que, em Carlito Azevedo, são na verdade externos, como a serialização – meramente temática – de vários de seus poemas. Mas se de fato há tais aspectos “cabralinos” na obra de Carlito Azevedo, descolados de inteligência poética original, só podem ser, como são, diluições (o mesmo vale para os aspectos “drummondianos”, aos quais se soma – ou se subtrai – a falta da fina e profunda ironia, de todo “groucho-marxismo” do itabirano: pois Carlito Azevedo se leva evidentemente muito a sério).

As exceções são os pares “Avenida Rio Branco: afluentes” (a e b) e “Na noite gris” (1991 e 1996)”. [16] Exceções porque em ambos a serialização é estrutural. Porém em “Na noite gris” há certo preciosismo expressionista que compromete os poemas. Exatamente o oposto de “Avenida Rio Branco”. Daí ser este, provavelmente, o melhor poema de Carlito Azevedo.

 

texto

 

Trata-se de um seco retrato sinedótico, a um só tempo, da urbe e da urbanidade, em que o olhar de um passante, que aqui não é flâneur, é invadido por retalhos da cidade. Notar que “esgarçados” se desmembra, sonoramente, em “ex-cartazes rasgados”, numa perfeita contaminação entre significado e significante. A própria falta de quaisquer outros elementos além dos nomes das ruas, dos cartazes desfeitos e do sol introduz no poema o vazio melancólico dessas ruas a tal hora inóspita. E mesmo a única palavra que, num contexto equivocado, seria “literária”, rascante, dadas sua aspereza e sua secura sonora, e a secura e a aspereza da cena, é pertinente. Notar, por fim, os cruzamentos de posição entre a estrofe 3 de a, que se torna a 5 de b, enquanto a 3 de b é a 5 de a – porém internamente invertida. Assim como as estrofes 4 são as mesmas, não fora a inversão da posição dos versos, aqui acompanhada da inversão de sentido (“reconstrói” / “desconstroem”). Seu significativo é não ser tal movimento apenas um artefato: pois a mútua impregnação de formantes do poema reproduz o espalhamento das mesmas características da hora pelas ruas percorridas. “Avenida Rio Branco”, em suma, é um pequeno grande poema que não parece um poema de Carlito Azevedo. Senão, eis a resposta que dá em seguida à pergunta-título “O dia o que traz consigo?” (p.44):

manhã asselvajada
jardim utópico
narciso errático

A mesma cidade, o mesmo poeta, porém irreconhecíveis. Pois apesar de a manhã ser “asselvajada” (o que fica fora do poema), de o “jardim” ser “utópico” e o “narciso”, “errático”, e apesar ainda da secura gramatical e do paralelismo sintático, o poema, mais uma vez, pela inadequação vocabular desinformante, ao modo de “ânsia de mercancia”, tem um tom afetado, falseado e falseador.

 

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Carlito Azevedo, não obstante, tem talento com as palavras. E esse é talvez o seu grande problema. Não o tivesse, não poderia dele dispor para angariar “reconhecimento”. Os sinais mais gritantes disso estão, evidentemente, na própria obra. São, porém, reforçados pela quantidade crescente de suas dedicatórias (não é raro o livro ter uma, a parte do livro outra, e os poemas terceiras, de modo que, para ler um poema, passamos por três dedicatórias diferentes); pelo cálculo das respostas de suas entrevistas (vício perdoável, por ser generalizado no meio); e particularmente pelo cólofon de Sob a noite física – obra-prima de oportunismo populista e autoimportância, fechando o livro com uma verdadeira “chave de ouro”. Tão longo é esse cólofon, e tão extemporâneo (apesar de sua ânsia cronológica), que é tedioso ter de digitá-lo.

SOB A NOITE FÍSICA ACABOU-SE DE IMPRIMIR EM GATINEAU
11/13,2 SOBRE PAPEL PÓLEN BOLD 90G/M2 (MIOLO) E
CARTÃO DUPLEX 250 G/M2 (CAPA) NA GRÁFICA IMPRINTA
PARA A LIVRARIA SETTE LETRAS EM OUTUBRO DE 1996,
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CORNÉLIO PENNA,
40º ANO DO LANÇAMENTO DA POESIA CONCRETA,
30º ANO DO LANÇAMENTO DE A EDUCAÇÃO PELA PEDRA,
20º ANO DO LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA 26 POETAS HOJE,
ANO DA MORTE DO POETA RENATO RUSSO (1960-1996)
E DO LANÇAMENTO DA PRIMEIRA BIOGRAFIA DE ANA C.

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DESTA PRIMEIRA EDIÇÃO FORAM TIRADOS 20 EXEMPLARES
NUMERADOS E ASSINADOS PELO AUTOR.

Deixando de lado o fetichismo aurático das duas últimas linhas: se antanho os cólofons extensos e idiossincráticos eram de praxe, hoje, desusados, só podem ser revisitados por cálculo. Neste caso, a lista dos “homenageados” é tão ampla, e tão completamente estapafúrdia, que seu oportunismo é gotejante. “Poeta Renato Russo”? Aquela verborragia medíocre e sentimentalóide? Ao lado dos 40 anos da poesia concreta? Será que Carlito Azevedo realmente crê que seja assim tão fácil agradar e enganar a gregos e troianos? Renato Russo foi chamado de “poeta” pela mídia porque, para o grande público, é evidente que um sujeito “emocionado”, e que ainda por cima canta com voz de baixo longas frases melosas vestindo batas brancas, só pode ser um “poeta”. Aqui, integra a lista por ser esta uma obra-prima da fácil arte de fazer “amigos”. Assim, há – e deve haver – de tudo um pouco. Portanto, se Renato Russo comparece a fim de que Carlito Azevedo possa mostrar seu viés “democrático”, a gradação que vai da poesia concreta a Ana Cristina César (darling do meio poético carioca), passando por Cabral, serve simplesmente para, entre vivos e mortos, percorrer o arco mais amplo possível dentro do meio poético.

E no entanto, o momento pede poetas que desconfiem do reconhecimento. Além de mallarmaicos (“Considero a nossa época um interregno para o poeta, que não pode se misturar a ela, caduca demais, e em ebulição preparatória, para que ele tenha outra coisa a fazer além de trabalhar em segredo com vistas a mais tarde ou a jamais”), estes são tempos marxistas. Não mais, evidentemente, do marxismo de Karl, mas de Groucho: “Não fico sócio de um clube que me aceite como sócio”. Já Carlito Azevedo (entre quantos outros) quer ser sócio. Não do seu tempo, que não tem vagas abertas – pois, ao contrário, fechou todos os clubes elegantes. Mas do clube dos que querem reabrir o clube.

Esses não são poucos: daí tanta gente se ter permitido equivocar com Carlito Azevedo. Por quê? Porque toda essa gente não está equivocada. Vêem em Carlito Azevedo o que querem ver, ou seja, seu talento literário. E quem, sendo crítico ou antologiador, quer a priori afastar um talento literário? Se há aqui algum a priori, é o desejo legítimo de reconhecer e apontar os talentos. Pois, como dito, Carlito Azevedo tem talento. Porém não tanto, talvez, para a poesia quanto para certa “imitação” de poesia. Porque lhe falta algo. Não o como – Carlito Azevedo, de fato, tem domínio técnico, o que demonstra em vários momentos e de muitos modos –, mas o o que e o porquê, que aquele determinam e enfibram (por isso máquinas não fazem – nem farão – poemas). Daí Carlito Azevedo parecer escrever, afinal, para ser reconhecido como poeta. Daí, enfim, sua obra ter de ser tão insuportavelmente “poética”.

Mas se isso é mesmo verdade, como mais ninguém o terá percebido? Portanto, outros o perceberam. Alguns, não por acaso, não integrantes do meio literário:

Há no livro um exagero de referências. Há aqui e ali sinais de esterilidade metalingüística. Há às vezes um preciosismo técnico com jeito de exibição virtuosíssima. Há cantadas às mulheres amadas com um quê de insinceridade.  (Mário S. Conti, Folha de S. Paulo, 01/12/2001)

Basta fazer as contas: a soma de “exagero”, “esterilidade”, “preciosismo”, “exibição” e “insinceridade”, qualquer criança sabe, é igual a falsidade. Principalmente se explicitamos que o “livro” acima referido, e assim sintetizado, não é um livro qualquer, mas Sublunar, que coleciona apenas o melhor do autor (segundo o próprio). Pois se trata de uma reedição revista e reduzida de todos os demais. Mas se assim é o seu melhor – e assim é o seu melhor –, que será de seu pior?

 

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Pior que responde pelo nome de Versos de circunstância (Rio de Janeiro, Moby Dick, 2001) – último livro antes do próprio Sublunar. Portanto, resta apenas nos debruçar rapidamente sobre ele para esgotar este rápido percurso por sua obra.

Aqui, seremos breves. Pois Versos de circunstância tem uma grande qualidade: é curto (12 poemas). Mas não o suficiente para impedir a confirmação de que Carlito Azevedo parece condenado ao beletrismo estéril.

Os versos de circunstância, antiga fórmula (e prática) versando sobre um incidente, uma homenagem, uma efeméride, da qual o autor tira seu título, pressupõe o domínio inequívoco do tema sobre a forma, de modo que, ao revisitá-la hoje, é preciso calibrar finamente a simplicidade da forma com a circunstancialidade do tema, para que tudo não deixe de ter qualquer interesse assim que o autor coloca o ponto final no último verso.

No entanto, Carlito Azevedo, tendo de criar versos cujo valor deve repousar na têmpera única de uma voz particular versando sobre acontecimentos incidentais, tudo que faz é deixar ainda mais prosaica sua dicção kitsch.

Flaubert foi um prosador que abordou cada parágrafo como um poeta aborda um verso: daí ser dele a expressão “le mot juste”. Se acrescentarmos à busca dessa “palavra exata” a da materialidade da linguagem, estamos próximos de uma descrição bem razoável da atividade poética. Já Carlito Azevedo faz exatamente o contrário. Assim, à prosaica palavra inexata, costuma acrescentar um viés abstratizante, que só faz aumentar em Versos de circunstância.

Portanto, em “Vaca negra contra fundo rosa” (p. 5), lê-se um redundante “Até os cinco anos de idade“, em vez de simplesmente “até os cinco anos”; “Ela usava vestidos viventes”(p. 6), homenagem a Ana Cristina César, é, desde o título, “vaporoso”, para terminar com um “alvéolo suspirante”; “Sobre uma fotonovela de Felipe Nepomuceno” (p. 7) pretende ser pop, e talvez por isso contenha uma frase do calibre de “havia um amor fazendo / tudo doer”, do tipo encontrável em qualquer canção popular (muito) pouco inspirada; “Do livro de viagem” (p. 8) é uma imitação-diluição de Cortázar, mais exatamente, do Cortázar de Histórias de cronópios e de famas, o que é lamentável, já que esta sátira absurdo-lógico-anárquica retorna, pelas mãos de Carlito Azevedo, ao petit monde pequeno-burguês de que o argentino quisera justamente descolar-se; finalmente, em “Paisagem japonesa para Aguirre”(p. 13), ao pretender ser eufônico, Carlito Azevedo escreve: “a taça de café que aquece agora”. Taça de café?! Xícara, xicrinha, copo, “curto”, “média”, “carioquinha”, toma-se café de vários modos no Brasil, mas não em taça. A não ser, é verdade, certos cafés “requintados” (enquanto a maioria o toma mesmo requentado), mesclados a cognac e recobertos de crème… Há de ser um desses, afinal. Nada que impeça, porém, o verso de resultar, além de kitsch, pseudo-eufônico, pois na verdade é cacofônico, centrado na sonoridade de caféquiaqué (“café que aquece”).

Nos limitamos a umas poucas frases de alguns dos Versos de circunstância porque nenhum interesse há em reproduzir qualquer um deles por inteiro. E se a comparação não fosse um despropósito, seria suficiente lembrar aqui de Manuel Bandeira: cuja grandeza pode ser descrita como o ter elevado os versos de circunstância ao estado de arte.

Se a poesia não tem mais chance de obter sucesso de massa, resta-lhe o sucesso de estima. De fato, ela tem obtido grande sucesso de estima, ao menos em seu próprio meio – como o demonstra de modo cabal o caso de Carlito Azevedo. Ocorre que o sucesso de estima, se não for rigoroso, mas fácil, transmuda-se em complacência. E isto é um verdadeiro canto de morte para uma arte cujo interesse não consegue mais mobilizar camadas significativas da cultura do país.

 

 


Notas:

  • Não se trata, ao menos a primeira afirmação, de mera opinião minha: “[Carlito Azevedo é] uma das vozes mais celebradas pela crítica” (Ítalo Moriconi, citado por Roziliane de Freitas, “Contornos do que se vê, lendo”, em Célia Pedrosa [org.], Poesia e contemporaneidade, Florianópolis, Argos, 2001, p. 169).
  • “A morte do mandarim”, p. 14.
  • “As banhistas VI”, p. 25.
  • Contra naturam”, p. 38.
  • “Metamorfose (com Proust e Paz)”, p.40.
  • Banderillas”, p. 42.
  • “Órion”, p. 57
  • “Limiar”, p. 11
  • “Vento”, p. 19.
  • Citado de memória.
  • “Coppélia”, p. 32
  • Le bel aujourd’hui”, p. 20
  • “A margarida-pérola”, p. 40.
  • Ainda que, tecnicamente, hexâmetro (seis pés) não seja o mesmo que hexassílabo.
  • “Relendo Saxífraga”, p. 43.
  • Sob a note física, pp. 36 e 57.

 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).