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Uivo e Ginsberg em HQ

Palestra realizada na livraria Travessa, Rio de Janeiro, no dia 10/04/2012, por ocasião do lançamento de UIVO, de Allen Ginsberg, em graphic novelcom arte de Eric Drooker e tradução de Luis Dolhnikoff (São Paulo, Globo, 2012)

Nos anos 1950, o mundo e os EUA viviam o auge da Guerra Fria, sob a ameaça real e imediata de uma Terceira Guerra Mundial, que seria a última, pois nuclear. E os EUA, em particular, viviam em pleno macarthismo, quando a própria democracia americana esteve, se não ameaçada, bastante estressada. O conservadorismo, a hipocrisia e certa histeria conservadora e hipócrita imperavam de maneira agressiva, que fariam a retórica e as ações recentes de George W. Bush encolherem e empalidecerem. O mundo todo, refém da corrida armamentista em sua fase inicial desenfreada, e entregue a disputas por procuração entre as duas superpotências, que armavam guerrilhas e grupos terroristas de esquerda ou davam apoio a golpes e ditaduras de direita, do Sudeste Asiático à América Latina, passando pela África e por uma Europa dividida pela “Cortina de Ferro” imposta por Stálin (o Muro de Berlim estava para ser construído), o mundo todo era uma espécie de grande Guantánamo mental. Os que acreditam estar hoje o planeta em um momento histórico particularmente bélico por causa de um Afeganistão aqui e de um Iraque ali estão, felizmente, enganados. O poema de Ginsberg, de 1956, não se chama Uivo à toa:

Ao publicar UIVO, eu estava interessado em deixar uma bomba-relógio emocional que continuasse a explodir na consciência dos EUA, caso nosso complexo industrial-militar-nacionalista se calcificasse num aparato policial repressor.

Chego então ao tema desta palestra, “Uivo e Ginsberg em HQ”, para dizer que ele talvez seja uma contradição. Porque Uivo é um poema escrito para ser dito, para ser declamado, e não para ser lido, muito menos para ser visto. Pois ele é, em um sentido lato, um poema político (ainda que não um poema engajado), feito para a ágora, para a praça, para o campus. Não por acaso, a “medida” dos versos de Uivo foi definida por Ginsberg como a de uma respiração: cada verso ou grupo de versos deve então caber idealmente em uma expiração. Uivo é, portanto, um poema oral em mais de um sentido. Refiro-me aqui à estrutura do poema. Pois além do ritmo “respiratório”, digamos assim, ele se baseia em um recurso clássico da retórica, do discurso político, da oralidade, que é a anáfora, ou seja, a repetição, a cada nova frase, de uma mesma palavra ou expressão inicial, criando uma espécie de lista de questões ou afirmações relacionadas, somadas, que mantém a audiência envolvida ao esperar por uma conclusão que se anuncia e se adia pela própria repetição ou reiteração. O exemplo mais conhecido é o do filósofo e orador romano Cícero, que iniciou suas famosas Catilinárias com variações, a cada parágrafo, de uma mesma questão: “Até quando…? Por quanto tempo…?”. Ginsberg começa cada grupo de versos com orações adjetivas antecedidas pelo pronome “que”, “who”, que não tem função interrogativa, mas descritiva: “que fizeram isso, que passaram por aquilo, que…”. Ora, uma descrição é, ou uma narração, ou uma imagem: se for a descrição de uma situação ou de uma coisa ou pessoa. E narração e imagem são a própria base da linguagem da graphic novel. Portanto, Uivo é um poema oral na sua natureza política, no seu ritmo “respiratório” e na sua estrutura anafórica, mas é, ao mesmo tempo, um poema visual na sua condição narrativa e nas suas imagens verbais, que descrevem situações e pessoas. Isso já resolveria, ao menos em parte, nossa contradição inicial entre a oralidade de Uivo e a linguagem visual da graphic novel.

Mas o próprio Ginsberg publicou o poema em livro. Portanto, apesar de ele ter sido escrito para ser falado, Ginsberg não excluía a leitura impressa, a leitura silenciosa. Porque ela é um acréscimo, uma outra possibilidade de contato com o poema, além da sua audição, da sua oralização. O mesmo pode ser dito de sua quadrinização.
Isso quanto ao aspecto da linguagem. Porém a quadrinização de Uivo é ainda um acréscimo geracional. E aqui passo a palavra ao próprio Ginsberg:

Pensei que com a percepção televisiva de curta duração de hoje, a graphic novel seria uma espécie de atualização do meu trabalho.

Em suma, a quadrinização de Uivo desdobra do poema, em termos de linguagem, uma dimensão visual já contida em sua natureza descritiva, e, além disso, em termos de recepção, permite um aggiornamento, uma revitalização, uma atualização. Ou ao menos, a possibilidade disso. Pois a época é marcada pelo predomínio das linguagens visuais, a começar de smartphones e a terminar em páginas de jornal cada vez com mais fotos e menos textos, passando por tablets e pela própria internet. Ora, Uivo foi concebido como um poema oral porque foi criado como um poema político, de intervenção. Se hoje a linguagem visual, incluindo a dos quadrinhos em geral e a das graphic novels em particular, é a dominante, editar o poema quadrinizado não deixa de ser uma forma de torná-lo participante de novo. Estamos, enfim, livres de nossa contradição.

Mas ainda resta falar da extrema adequação entre a linguagem do poema e a linguagem gráfica de Eric Drooker, o artista gráfico desta edição de Uivo.

A linguagem gráfica de Drooker é uma síntese, entre outras, de três influências principais: as histórias em quadrinhos, principalmente as “underground”, na linha e na linhagem de Robert Crumb; a importante tradição da xilogravura norte-americana; por fim, o expressionismo europeu dos anos 1930, notadamente no traço anticonformista de Georg Grosz. A isso se juntou certa tradição muito americana do artista “working class”, que remonta a Walt Whitman e aos anos da Grande Depressão, associando uma temática voltada para os excluídos do “american dream” ao ativismo político, que nos EUA habitualmente assume a forma de envolvimento com questões locais. Eric Drooker foi, nos 1980, um ascendente artista de rua próximo do movimento squatter, que promovia a ocupação de imóveis e locais públicos abandonados, juntando artistas, ativistas e sem-teto, e fazia uso, então, principalmente de cartazes colados em muros e postes, além de flyers, em um forte estilo figurativo em preto e branco.

A linguagem gráfica de Eric Drooker (hoje um artista plástico consagrado) foi, portanto, originalmente criada para ser vista na rua, na praça, na ágora. Fechamos assim um círculo, pois como dito de início, esse era o destino e a natureza da linguagem oral de Uivo. Resta falar de proximidades de visões. Ginsberg:

Comecei a colecionar os pôsteres de Drooker logo após um choque inicial, vendo em imagens contemporâneas o mesmo perigoso conflito de classes de que me lembrava da infância […].O que me “chocou” nas gravuras de Drooker foi sua tradução gráfica da crise econômica, semelhante à depressão dos anos 1930 […]. Drooker ilustrou o estresse infraestrutural das cidades, a decadência das moradias, o “sem-tetismo”, a comida do lixo e o sofrimento amargo de famílias, negros e jovens marginalizados, em detalhes tão vívidos que o verdadeiro horror autoritário de nossa luta de classes tecnoeconômica malthusiana contemporânea de um devorando o outro fica imediatamente visível […]. Depois de acompanhar seu trabalho por uma década, me senti lisonjeado de que um artista tão radical das últimas gerações considerasse o corpo de minha poesia ainda interessante, e mesmo inspirador […]. Nossos caminhos frequentemente se cruzaram.

E suas linguagens, afinal, se entrecruzaram. Não se trata, portanto, da ilustração de um poema, mas de um diálogo interlinguístico. O resultado é, simplesmente, uma verdadeira graphic novel, ou seja, uma narrativa poético-gráfica de um poema também visual, ou narrativo-descritivo. E narrativo e descritivo, se não da mesma realidade, pois há a distância de épocas, de uma abordagem semelhante de realidades afinal não tão distantes.

Allen Ginsberg era um judeu gay americano e foi o líder (malgrado ele mesmo) do movimento beat. Mas Uivo não é, afinal, um poema beat, nem contracultural, nem judaico, nem gay, a despeito de ser também tudo isso, mas um grito humanista. Uma forte afirmação, uma corajosa e vigorosa reivindicação da vitalidade humana, apesar de tudo. O poema também é uma acusação, uma denúncia, um lamento, uma defesa e uma ilustração, porque, sendo um grande poema, contém muitos sentidos e aponta em diversas direções. Daí ter se tornado tão influente sobre a poesia e as artes norte-americanas na segunda metade do século XX, e tão marcante daquele momento histórico, para além das fronteiras do país. Para ficar em apenas dois exemplos conhecidos, não existiria Bob Dylan sem Ginsberg, e o beat que integra a palavra Beatles é uma homenagem de John Lennon ao movimento liderado por Ginsberg – e faço esta afirmação apesar dele, que jamais se considerou líder de nada, nem integrar qualquer movimento, mas sim o desejo, o anseio, a necessidade de ação política, artística e cultural de uma geração. De qualquer forma, o poema se tornaria influente e marcante sobre a própria sociedade americana, num último exemplo histórico, talvez, de força da linguagem poética, que viria a diminuir irresistivelmente com o refluxo da centralidade da cultura e da arte, a partir do esgotamento do ímpeto modernista nas últimas décadas do século XX.

Porque a própria ideia de reformar profundamente a sociedade, de mudar o rumo da história, não teria afinal na contracultura, que se seguiu ao movimento beat, um preâmbulo, um início, como então se acreditava – mais por esperança do que por realismo –, mas sim um epílogo, como se revelaria em seguida, com o fim final de todas as utopias e o começo do que Philip Roth chama de “o triunfo da superfície” e eu, de “a grande confusão contemporânea”. Ora, Ginsberg e seus companheiros de viagem e de geração ainda acreditavam na profundidade e na clareza – ao menos, na clareza daquilo que deveriam e queriam profundamente repudiar, que era o próprio estado das coisas, isto é, das relações humanas. Daí eu afirmar a condição humanista de Uivo.

Se Ginsberg não se deteve ante a enorme força do conformismo e do conservadorismo de seu tempo, Eric Drooker, nos anos 1980, não desanimou ante a força enorme da indiferença e da banalidade contemporâneas. Um gritava seu grande poema nas praças e nos campi de todo o país, o outro espalhava silenciosamente seus pequenos cartazes nos muros e nos postes de Nova York. Ginsberg, afinal, estava certo ao ver nexos e proximidades entre as artes de ambos, apesar das diferenças de linguagem e de momentos históricos.

Com o fim da Guerra Fria, que não se deu pelo triunfo das utopias, e sim por sua derrota histórica (incluindo a entusiasmada utopia contracultural), o “complexo industrial-militar” afinal não se calcificou num perfeito aparato policial repressor, os EUA não se tornaram uma ditadura, sequer depois do 11 de Setembro, e o mundo entrou em um período morno, cujas marcas maiores talvez sejam a indiferença e a banalidade. O que não exclui o medo, que nada tem de indiferente ou banal. Mas o medo contemporâneo é um medo apequenado. Isto não significa que ele seja, em si, pequeno. Mas sim que é menor naquilo que move seu crescimento, nas suas razões. Refiro-me ao aspecto particular, privado (mesmo se compartilhado), e afinal “consumista” desse medo. “Consumista” no sentido de que ele acaba por integrar o pacote de opções do supermercado geral e universal: “o meu medo”. Porque não se trata mais de um medo político, de um verdadeiro medo coletivo, ou seja, de um temer pela história, do temor de que a história não se encontre, no final, com a justiça, tornando a própria história um enorme erro, uma gigantesca injustiça, que era o medo ou o receio de Ginsberg e de sua geração. A grande apreensão é, hoje, econômica, ou seja, se haverá ou não recessão, desemprego mas, principalmente, queda do consumo. Afinal, consumir é viver.

Ginsberg, ao contrário, não se ocupava de seu medo pessoal, nem se preocupava com a segurança, palavra hoje tão banalizada, em mais de um sentido. Ele foi processado e Uivo proibido em 1957, por imoralidade. Depois de ter sido inocentado e o poema liberado, jamais deixou de afrontar, de confrontar e de satirizar o establishment, ou o “sistema”, como se dizia então. Mas isso corre o risco de transformar Uivo em poesia “antissistema”, em poesia “engajada”. Ginsberg ele mesmo o foi, como ativista de causas sociais (movimento dos direitos civis), políticas (guerra do Vietnã) e culturais (direitos das minorias e multiculturalismo, antes que isto se tornasse um produto do “supermercado cultural”). Mas seu poema não o é (com exceção da seção “Moloch”). Ele é um retrato poeticamente poderoso de um EUA à margem do “sonho americano”, que conhecia seu ápice junto com o ápice do pesadelo da Guerra Fria.

Repudiando ambos, o pesadelo do holocausto nuclear e o sonho de consumo conformado e conformista, Ginsberg e seus companheiros de viagem iniciaram uma jornada tripla: a primeira pelas profundezas da cultura americana, onde encontraram a cultura negra, o blues, o jazz e também o ativismo social, para não falar de uma liberdade sexual insuspeitada pelo atávico puritanismo branco; outra, por suas distâncias, seus desertos e suas miragens, iniciando a cultura on the road; e uma terceira para dentro e para fora de suas mentes e de seus corpos, o que mais tarde ficaria sintetizado pela tríade sex, drugs and rock´n ´roll, com a diferença de aqui se tratar de sex, drugs and jazz (para não falar de “viagens” espirituais, tendo por guia principal o budismo). Uivo concentra e condensa tudo isso, além das biografias episódicas de Ginsberg e seus companheiros de viagem.

Uivo já foi referido como um épico moderno. Ele é um épico moderno. Portanto, não têm heróis nem batalhas, a não ser a batalha heroica e desesperada contra a loucura, o caos e o desespero. E cuja força reside somente no poder de sua linguagem poética.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).