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VÍRUS BIOLÓGICOS x CULTURAIS

Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

CDA

A viralização do futuro

Nada impede, e tudo indica, que a pandemia de coronavírus seja somente a primeira do seu tipo. Ou não exatamente do seu tipo.

Depois dele, que, como se sabe, soma a rápida difusão por via aérea à relativamente baixa taxa de mortalidade, outros vírus, com variações, com certeza tão absoluta quanto a morte, virão. Muitos outros. Porque há vários motivos para que venham (como o próprio coronavírus), e nenhum motivo para que não.

O perfil das novas epidemias estará em um arco de possibilidades entre o ebola, que mata tantos hospedeiros, e tão rapidamente, que mal consegue se espalhar (ou se espalhar mal, tornando relativamente fácil a contenção), e o corona, que mata poucos, mas se espalha muito e muito rapidamente. É apenas questão de tempo surgir um vírus de perfil intermediário que, por exemplo, se espalhe rápido, com um tempo longo de incubação, e, depois, mate mais que o corona. Seu nome: caos.

Os novos vírus

Há três fontes principais de novos vírus.

A primeira é a expansão das fronteiras da ocupação humana para cada mínimo recanto do planeta. Isto está na origem, entre outras, das epidemias de HIV, ebola e chikungunya, a partir de vírus de animais de áreas isoladas da África Central, alcançadas no final do século XX.

A segunda fonte são hábitos alimentares e práticas tradicionais que facilitam a migração de espécies virais animais para humanos (com destaque para a China e a Índia, a primeira com a comercialização e a manipulação promíscua de animais selvagens vivos em mercados urbanos, a segunda, com um igualmente promíscuo convívio com várias espécies animais em inúmeras circunstâncias [diferentes daquelas da produção agroindustrial, alvo de controles sanitários]).

A terceira fonte provável de novos vírus é a manipulação biológica por agentes não governamentais, vulgo bioterroristas.

Essas três fontes principais de novas pandemias virais estão aqui em ordem decrescente de probabilidade. Mas nenhuma pode ser descartada, ao contrário. Com o passar do tempo, elas devem, inevitavelmente, se somar ou sobrepor, pelo simples fato de que nenhuma será eliminada do horizonte do provável.

Novos vírus virão.

A ciência pode salvar a civilização – ou não

A única saída é um poderoso incremento das capacidades médico-científicas. A soma do desenvolvimento da engenharia molecular, dos conhecimentos sobre o sistema imune e da potência computacional devem diminuir os tempos de criação de novas vacinas contra novos vírus, além de ampliar o arsenal de instrumentos de ataque direto a eles (antivirais). Mas dada a opacidade do futuro, só o que se pode agora garantir é o fato de a humanidade e/ou a civilização estarem em uma corrida pela sobrevivência.

Os obstáculos intrínsecos dessa corrida são muitos e muito árduos. Como os envolvidos com o surgimento incontrolável de novos vírus e com as limitações atuais da ciência, apesar de todo seu poder e potencial. Além disso, também existem os obstáculos extrínsecos.

Os vírus culturais

Depois da Revolução Agrícola de cerca de 12 mil anos atrás, que extinguiria o modo de vida caçador-coletor e faria surgir a vida gregária, as cidades e a própria civilização, a maior mudança civilizacional foi a Revolução Industrial do final do século XVIII – que encerraria o grande ciclo histórico iniciado com o surgimento da civilização agrária para iniciar a Era Industrial. Esse cataclismo histórico-econômico-cultural não seria bem recebido por muitos grupos sociais. Entre eles, no lado econômico, pelos artesãos, substituídos pelas novas máquinas; no lado cultural, por parte importante dos artistas, temendo por sua “sensibilidade” (por seu “espírito”) face ao novo tecnicismo. O ludismo, a destruição pura e simples das novas máquinas, foi uma das reações dos primeiros; o Romantismo (em reação, igualmente, ao Iluminismo), movimento de volta às tradições populares agrárias (folclore) e do hiper-subjetivismo antirracionalista e espiritualista (marcante nas obras de Blake, Coleridge, Schiller, Nerval, Hölderlin etc.), dos segundos. Duzentos anos depois, a obra literária mais conhecida do Romantismo ainda é Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818), da inglesa Mary Shelley, em que a eletricidade (que dá vida à criatura, e cujo domínio estava então na vanguarda das pesquisas da física) é tratada pelo viés que acabaria por se tornar dominante em muitas searas culturais, o de “brincar de Deus” (quando, na verdade, a ciência leva bastante a sério o não brincar com os fatos mais duros da condição humana).

O ludismo estrito senso morreria rápido. O Romantismo, nunca.

Os elementos da ideologia que ele também foi (para além de uma estética), e ainda é, sobreviveram ao seu período histórico.

A linguagem criativa mais afeita ao Romantismo é a poesia. Por ser a expressão do eu lírico, ou seja, a voz direta de uma individualidade “profunda” e profundamente orgulhosa (ao contrário da prosa de ficção, em que a voz do autor dá lugar às das personagens), a poesia e os poetas são, ontem como hoje, em sua imensa maioria, tardorromânticos, militantes ou não, conscientes ou não (com a grande exceção do alto modernismo internacional, que em vários países, incluindo o Brasil, encampou o antilirismo e a modernidade urbana e industrial). Isso explica, ainda que não justifique, diversos fenômenos, como a fácil adoção de formas não ocidentais, ou seja, não racionalistas, como o haicai (de origem budista, temática naturalista e realização espontaneísta) e, no limite, a própria incapacidade da poesia atual de abordar o tecnicizado mundo contemporâneo (e o decorrente desinteresse do chamado público leitor – que, ao contrário, não desdenha a prosa de ficção, incluindo a ficção científica, cujas narrativas hoje se destacam no cinema mainstream).

Resistência, multiplicação e difusão dos vírus culturais

Se a poesia foi, desde o início da Era Industrial, infectada pelo vírus reativo do eu lírico hipertrófico (de que os modernismos seriam cura passageira), as outras artes não passaram incólumes. Algo semelhante aconteceu com as artes plásticas. Mas aqui, paradoxalmente, não foi o tardorromantismo a causa da afecção, e sim o próprio modernismo senso lato.

A partir do impressionismo, com a morte das convenções neoclássicas, a materialidade da obra de arte ganha autonomia. O grande código de representação que era a perspectiva é quebrado (cubismo, abstracionismo, primitivismo), e as pinceladas se sobrepõem à figura, não o contrário. Isso leva, num primeiro grande momento, à explosão de forças pictóricas (e também escultóricas, como no Balzac de Rodin) que caracteriza as vanguardas do início do século XX. Mas haveria um enorme efeito colateral. Três agentes debilitantes se integrariam para desintegrar a arte como um fazer, uma poiésis (dizendo-o em grego), logo, uma poética. A autonomização da arte em relação à representação leva à autonomização da arte em relação à sua própria matéria e ao seu próprio fazer. A arte se desfaz, então, em palavras. Mas não para se tornar poesia, a arte verbal por definição, e sim para se transformar em ruído, em nonsense, em nada: seu próprio nome já não a nomeia, e ela precisará de um sobrenome, arte conceitual. Em que o conceito afinal passa à frente da própria arte, do objeto artístico.

A arte, com sua data de validade vencida, ganha uma bula, o conceito, a “proposta”, e a bula, por sua vez, toma o lugar do antigo remédio, que se torna seu adereço. Arte conceitual é a arte do conceito. Mas a arte do conceito é a filosofia. Artistas conceituais são artistas debilitados armados de doses homeopáticas de filosofia anêmica. Isso abriu o sistema imunológico da arte para a infestação derradeira do mercado. Se o moderno mercado de arte existia desde o fim do século XIX, amparado pela nova grande burguesia, no fim do século XX a mercantilização de uma arte anêmica serviu-lhe de último e devastador suporte de sobrevivência. Em termos marxistas, a arte não é mais nada além de produto. A arte não é mais nada. Nada, em todo caso, de significativo para a cultura e a civilização.

O outro elemento que contribuiu para a grande patologia terminal da arte foi, também, efeito colateral do modernismo senso lato. Com a anemia da matéria e da forma do objeto artístico, que levou à sua extinção e à ascensão de um “espírito”, da pequena “metafísica” do objeto artístico que é o “conceito”, também ocupou o lugar vazio do objeto extinto a pessoa do próprio artista. O artista é sua performance enquanto artista, e sua performance enquanto artista, a sua arte. Um vírus diferente daquele do inchado eu lírico tardorromântico então se dissemina.

É o artista inato, mutante nascido da cópula entre o fim conceitual do objeto artístico, a hipertrofia do artista conceitualizado e o veneno ideológico do democratismo. Como sintetizou o alemão Joseph Beuys, “todo homem é um artista” (e, presume-se, também toda mulher). Para não alongar em demasia a descrição do atual estado clínico da arte, se todo mundo é artista, ninguém o é particularmente.

Anote-se, de passagem, a ilustrar o dito de Beuys, que a “ruptura” da poesia do século 21, da poesia das redes sociais, é com as ideias mais elementares de alguma tradição. “Ruptura” como destruição do sentido da prática de poesia em si. “Ruptura” com o rigor, reflexão, debate de ideias, “ruptura” com as próprias ideias. O que existe é uma poesia extrínseca, na qual todos são, ao cabo, importantes poetas, sem, no entanto, tomarem para si a responsabilidade de subir minimamente o patamar. Em outros termos, excesso como mímesis da acumulação capitalista neoliberal.

Retornando: a redução da arte ao mercado de arte tem seu gêmeo de massa na arte idem. A antiga arte popular dos tempos agrários transforma-se em arte pop na Era Industrial tardia (a atual). Arte pop + capitalismo de consumo massificado = arte-espetáculo, outra mutação do objeto artístico, desta vez em entretenimento.

O meio é um (outro) vírus

Quando, nos anos 1960, o filósofo Marshall Mcluhan cunhou sua famosa e incompreendida afirmação de que “o meio é a mensagem”, ela era tanto constatação quanto uma premonição. Seria preciso esperar o advento das mídias sociais para que seu sentido ganhasse robustez e clareza. Um programa de mensagens escritas que, de início, aceitava apenas textos de 140 caracteres, como o Twitter, apesar de depois passar a aceitar textos um pouco mais longos, determina a mensagem ao determinar a dimensão da mensagem. O mesmo vale para a disseminação viral de fáceis fotos amadores em programas como o Instagram. A soma da disseminação de textos necessariamente curtos e da proliferação desenfreada de imagens espontâneas impedem qualquer comunicação de ideias e de fatos estéticos de alguma densidade. Os novos meios determinam as novas mensagens ao mesmo tempo rápidas, às vezes ríspidas e ralas (quando não infantis, preguiçosas e estereotipadas, como nos emoticons [ícones de emoções]).

O grande vírus cultural do anticientificismo

Mas o mais perigoso vírus cultural é o anticientificismo – contra o qual a ciência não encontra vacinas eficazes. Ainda que não mortalmente, ela já foi, é e será ameaçada muitas vezes.

Um dos agentes mais agressivos chama-se construcionismo. Ele afirma que a ciência não é mais uma construção social (obviedade das obviedades), mas que o é pura e inteiramente: nada dos conhecimentos científicos é conhecimento, tudo é construção de fato, mero artefato laboratorial. Não existe conhecimento científico. O papa do construcionismo, Bruno Latour (autor de Vida de laboratório – a construção social dos fatos científicos), um dos últimos “luminares” do há muito decadente pensamento francês, afirma, entre outras conclusões, que o faraó Ramsés II não pode ter morrido de tuberculose em 1213 aec, como revelado em 1976, após análises de sua múmia, porque o bacilo de Koch não existia antes de o próprio Thomas Koch tê-lo descoberto, ou melhor, “construído socialmente” em 1882. Felizmente, o construcionismo hoje habita apenas algumas áreas mais ideologizadas das ciências humanas. Mas nada é capaz de garantir que não possa recrudescer em tempos sombrios. A homeopatia, por exemplo, contemporânea do Romantismo que, como ele, opõe-se à “redução” da “sagrada” vida humana às leis da físico-química, se agora está relegada às chamadas “medicinas alternativas” (depois de sua enorme influência na medicina até o início do século XX), não perdeu a popularidade que a acompanha desde sua criação; o atual retorno do medieval terraplanismo acontece ao lado do crescimento da rejeição às vacinas – não por acaso defendido por algumas homeopatias.

As grandes crises sociais, sejam econômicas, políticas ou sanitárias, costumam ter como um de seus efeitos colaterais o incremento da crença, da crendice, do charlatanismo, das soluções “mágicas”. A pandemia do coronavírus parece, até agora, ter tido o efeito inverso, de reforçar a confiança no conhecimento científico, a despeito de todas as cepas de anticientificistas.

Apesar de tudo, superestimar o anticientificismo não é hoje necessário; mas subestimá-lo não é e jamais será prudente. Como afirma certo saber tradicional, civilizações demandam muito tempo para serem erguidas, mas pouco para serem destruídas. Na verdade, às vezes muito pouco, como o tempo de disseminação de uma nova partícula viral.

A arte, sem crítica, sem filtros, perdeu sua força imunológica: infelizmente as substâncias patógenas, conservadoras, do amadorismo rústico e das redes sociais a dominam.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.